sábado, 10 de setembro de 2011

COELHO NETO


- E para que lado foi, minha senhora? perguntou a velha.- Vê lá! não esqueças por aí alguma coisa. Olhe os homens. Varre a casa e seque logo. Tomas o bonde na Estrada e segues. Sabes onde é?

- Então, nhonhô? Uai!

Dona Júlia apareceu à porta da rua.
Coelho Netto

O TURBILHÃO

Ao Dr. Francisco Simões Corrêa
HOMENAGEM E GRATIDÃO
Dezembro, 1904
Coelho Netto

Simples Como a Verdade

1

Revistas as últimas provas do conto de Aurélio Mendes o Anacharsis dos "Idílios pagãos", Paulo Jove arredou a cadeira e pôs-se de pé, desabafando. Doía-lhe a espinha e, como havia fumado quase todo o maço de cigarros, tinha a boca amarga e áspera, os olhos ardidos, não só do fumo e da claridade intensíssima das lâmpadas elétricas, como da fixidez atenta em que os mantinha desde as sete e meia até àquela hora alta da noite.

Curvou-se de mãos nas ilhargas, d'ímpeto esticou os braços, arrojou-os à frente com um ahn! surdo de atleta que exercita os músculos entorpecidos e desabou-os depois, com força, sacudindo-se todo, virando, revirando a cabeça, como em ânsia angustiosa. Levantou-os, de novo, acima da cabeça, as mãos juntas, estrincando os dedos enclavinhados e bocejou, espichando-se nas pontas dos pés caindo depois, rijamente, sobre os tacões.

Já as primeiras páginas haviam descido para a clichagem. Embaixo, martelavam pancadas crebas, como de matracas. A caldeira reboava num retroar soturno de caverna que repercutisse, sem descontinuar, o gorgorejo possante de águas encachoeiradas.

Na sala da revisão, estreita e abafada, mal comportando as quatro mesas de serviço, os revisores repousavam; apenas o Brites, esgalgado e míope, lia o antigo de fundo, todo em períodos lamentosos augurando fome e lutas; e o Amaro, conferente, acusando a pontuação de quando em quando batia na mesa pancadas secas com um lápis ou dizia claramente uma palavra, repetindo-a devagar, sílaba a sílaba, enquanto o Brites, debruçado sobre a prova, fazia a emenda resmungando.

O Malheiros, em mangas de camisa, suado, afogueado, derreava-se na cadeira, com a cabeça no respaldo, fumando, de olhos distraidamente cravados no teto, de onde escorriam os fios oscilantes das lâmpadas elétricas. O Bruno, abaçanado, raquítico, nervoso, sempre a calcar sobre a mola flácida do pince-nez, que lhe escorregava do nariz tressuante, todo pendido para o Freire, com uma rosa murcha à botoeira, silvava endecassílabos, preconizando a grande Arte do Mendonça, o inimitável cinzelador do "Fauno Trêmulo".

Paulo enxugou a fronte e, tirando de um prego o colete e o paletó, lentamente, vergado de fadiga, a bocejar, vestiu-os, com os olhos no entusiasta penegirista do Decadismo, que falava precipitado com desabalados gestos, sem dar pelo estremunho do Freire que molemente com uma ponta de cigarro ao canto da boca, sacudia a cabeça em afirmações condescendentes.

Na grande sala, ao lado, vozes morosas apregoavam letras e números.

A colmeia fervilhava. Os compositores - uns de pé, em mangas de camisa; outros em altos bancos, em quatro filas paralelas, estendidas ao longo da sala, cabisbaixos, à luz branca e viva das lâmpadas, precipitavam os dedos nos caixotins, enchendo os componedores com um trepidar metálico de gotas d'água em zinco.

O Mário, d'óculos, apressado, ia de um a outro, examinando: inclinava-se sussurrando, como se comunicasse segredos, e havia, por vezes, um zumbido de vozes surdas, interrompido pela tosse cavernosa de um rapaz bronzeado, esguio e ossudo que, de instante a instante, ia à janela escarrar e lá ficava, curvado, tossindo aos arrancos, cavadamente. como se tivesse o peito devastado e oco.

O Sampaio, diante do mármore, a mascar o charuto, ia desligando os paquets para a paginação, enquanto o Lúcio, retranca, besuntado de tinta, mangas arregaçadas, tirava as últimas provas que os revisores esperavam.

Subitamente um bufo, como da expansão de uma válcula, subiu das oficinas, e foi depois um chiado e logo um silvo de jato, e, lentamente, com rumor de ferragens, como à partida de um comboio, as máquinas moveram-se, abalando o soalho em trepidações contínuas.

O Malheiros, dobrando-se, tomou entre as mãos enlaçadas um dos joelhos e suspirou:

"Não podia ouvir aquilo sem saudade: lembrava-se da sua viagem e pensava no Norte. Parecia-lhe que se achava a bordo, no convés, estirado num banco, ao clarão da lua, ouvindo as fontes pulsações da máquina que impelia o navio pelo mar luminoso." E, sonhando, deixava-se ficar muito quieto, olhos semicerrados, viajando imaginariamente para o seu torrão longínquo: praias longas, ondulando em dunas alvas, praias que o mar bravio lambe e assoalha de espumas, donde os jangadeiros, cantando, arrastam as jangadas que, de velas pandas, aos galões, partem, montando a vaga, perdendo-se nos horizontes azuis.

O Bruno, esse detestava a oficina: o "antro do Dragão". O prelo era: o Monstro devorador do gênio; e, sempre que ouvia a crepitação das correias nas polias ou o rolar dos cilindros das marinônis, murmurava, com ódio e nojo: "Lá está a besta mastigando!"

Nessa noite, mais irritado, irrompeu furioso:

- Eu podia estar na redação, ganhando mais e com outras regalias: escrevo com sintaxe e com arte, tenho a minha porção de ciência e de literatura, coisas que não possuem muitos dos que se inculcam, com vaidade, jornalistas; mas não quero: prefiro ficar por aqui, em nível inferior, conservando a integridade perfeita do meu espírito; ao menos não se dirá que cevo o "Monstro" que lá está experimentando as mandíbulas de ferro em folhas velhas, babando-as de saliva negra, como a jibóia lubrifica a presa antes de a engolir. Faz apetite à espera da ração, o estúpido.

"Eu sei que o escrito é um alimento indispensável ao espírito das gentes: entendo, porém, que os intelectuais devem apenas preparar o néctar divino e não essa mixórdia em que entra tudo - desde o espargo até a couve tronchuda.

"Vejam vocês: um artista como o Penante faz uma bela página de prosa ática - períodos polidos a capricho, como só ele os sabe polir. Compõe o Mendonça, com a magnificência do seu talento, um poemeto de rendilhados versos bizantinos. Escreve o Rocha um daqueles antigos de original beleza, nos quais a gente encontra a Musa cantando, desolada. no serralho da Política, como a Cativa, de Hugo, na alcáçova do Turco, e vêm esses primores aqui para cima, na mesma cesta em que sobem as ignomínias das penas anônimas, como as rosas que chegam do mercado num samburá entre repolhos e nabos.

"Aqui misturam-se com os artigos pífios, cuja sintaxe temos de arranjar, raspando-lhes os solecismos - porque, meus amigos, a verdade é esta: nós somos como os ajudantes de cozinha, que lavam as ervas das hortas tirando-lhes a terra e as lesmas. O mesmo rolo que passou sobre as imbecilidades do a pedido, passa por eles; o mesmo componedor, onde se acomodaram aqueles alexandrinos de ouro e aqueles períodos lapidares, acolhe a mofina salaz e covarde e o atoucinhado anúncio, a ignomínia da charada e o sórdido folhetim desconchavado, sem nexo, sem forma, e, depois, lá vai tudo, como um guisado. ser triturado, digerido e lançado, por fim, na página, alfuja onde fermenta a estrumeira da civilização.

"Bolas! Arte é arte! A palavra é uma centelha, é preciso que tenha uma trípode. Prefiro ser revisor. Não tenho cérebro para regalo da Besta que se contenta com a panelada farta e grossa. O meu cérebro, se algum dia fornecer alimento ao animal, dará o néctar ideal, sem ingredientes pulhas da horta indígena, como a mofina, ou da salsicharia universal, como os telegramas. Isso é a Besta máxima da Vulgaridade. Lá está mastigando cérebros: o cérebro suntuoso do Mendonça e o miolo infame do taverneiro, que anuncia malas de carne-seca ou sessões na sua Beneficente. Que te saiba, bruto! essa polenta ignóbil."

Os companheiros riam vendo o Bruno, de mãos atafulhadas nos bolsos, indo e vindo no estreito espaço que havia entre as mesas da revisão, a cuspilhar, resmungando contra aquela "moenda infame".

O Malheiros gostava de provocá-lo, sublinhando-lhe os disparates:

- Ó Bruno, o monstro come cérebros e faz estrumeira ou prepara o guisado para o público? Vê lá em que ficas.

- Fico em afirmar que é o realejo da palavra! - concluiu, indignado, o puritano da Arte.

Riram. E o Bruno foi resmungar, debruçado à balaustrada da escada que descia para a oficina.

Paulo conservava-se indiferente. Debalde o Bruno bramia e gesticulava, ele não estava de veia alegre: sentia-se mole, exausto, com uma dorzinha de cabeça. Andara todo o dia, rua abaixo, rua acima com receitas e medicamentos, porque a moléstia da mãe agravara-se com a umidade daqueles dias, prendendo-a à cama. Não fora à Escola, estava abatido e com um vazio no estômago como se estivesse em jejum.

Tomou o chapéu e o guarda-chuva a um canto, apanhou um embrulhinho na mesa e, secamente, despediu-se dos companheiros atirando uma leve pancada ao ombro do Brites, que respungou, sem levantar a cabeça: "Boa noite!" O Sampaio, vendo-o sair, perguntou com o charuto nos dentes:

- Então, já?

- É verdade. - E foi descendo lentamente.

No primeiro andar, numa sala escura dos fundos, o pessoal do correio cortava as listas da expedição e o Moraes, plantonista, gordo, pletórico, sempre empanzinado, que tinha fama nos clubes de ser um garfo respeitável, para não ficar só na redação, lá estava encostado à comprida mesa, roncando pilhérias com ânsias de asma e muita gosma.

Descendo mais alguns degraus, Paulo deteve-se, como sempre fazia para olhar um instante, através das grades, a oficina toda tomada pelos complicados maquinismos - desde as marinônis soberbas, juntas, como dois animais de raça, ocupando uma ala à parte, até os pequenos prelos de mão que uma criança movia.

O motor, ao fundo, com a chaminé esgalgada como um pescoço de girafa, furava o teto atravessado de longos eixos sobre os quais giravam polias movidas pelas correias, que eram como os nervos daquele possante organismo.

No meio da sala, ao rés-do-chão, dois cilindros brancos rodavam rapidamente ligados por uma larga faixa. Sobre um deles caía um estilicídio perene: eram os rolos de papel que, depois de umedecidos, deviam ser levados às marinônis para que, impressos e cortados, saíssem aos milheiros. com a primeira luz da madrugada, propagando sucessos e desastres.

Homens iam e vinham apressados, outros cercavam o mármore, onde jazia a página e, com pedacinhos de papelão, iam acamando certos tipos para que ressaltassem na estereotipia; outros levavam grandes folhas de estanho, reluzentes como prata e mergulhavam-nas nos fundidores, onde se derretiam como se fossem de neve e, com o volteio daquelas rodas céleres e as vozes e os passos dos que se moviam e o chiar das correias que estralejavam, de quando em quando, um constante e estranho rumor de vida agitava a oficina onde as lâmpadas suspensas brilhavam como grossas gotas de luz.

- Parado, coçando a barba, como em grande cuidado, um velho olhava para uma das marinônis, em cujos cilindros já reluziam as matrizes. De repente afastou-se, tomou várias folhas de papel tisnadas, andou com elas em volta do "Monstro" vendo, revendo, curvado, de cócoras. Meteu o papel entre os cilindros, ergueu-se, deu um puxão à alavanca e a máquina moveu-se com rapidez trepidando, a espichar aquelas folhas de papel que os rolos apertavam e impeliam manchadas de tachas sórdidas, como as primeiras vasas anunciadoras do parto.

Paulo, satisfeita a curiosidade, desceu ouvindo sempre o estrondoso rumor do trabalho. Era o "Monstro" do Bruno, pior que o touro brônzeo de Fálaris, porque do seu bojo saíam, não os gemidos de uma só vítima, mas o clamor de toda a humanidade, a resenha da vida universal, cuja percentagem de angústias sobreleva-se avassaladoramente à parte mínima de prazer. E, olhando, parecia-lhe ouvir o arquejo doloroso do mundo, a zoada ansiosa do enxame humano atroando, subindo daquelas finas lâminas flexíveis, como a voz cativa irrompe quando a despertam nos tubos sensíveis do fonógrafo. Desceu.

No corredor, encostado à parede, com as pernas estiradas, um homem dormia, a cabeça pendida sobre um dos ombros, os pés nus, imundos, o peito da camisa aberto, uma bolsa a tiracolo. A porta, em torno dum negro que vendia café, às canecas, um grupo chalrava alegremente, na treva.

Paulo subiu a Rua do Ouvidor obscura e calada.

Um vento frio soprava. O céu negro, sem estrelas, ameaçava aguaceiro e, como chovera copiosamente à tarde, com ventania e trovões, poças d'água refletiam a luz dos combustores. Um cão magro percorria a sarjeta farejando.

Na esquina da Rua dos Ourives estacionava a patrulha. Os soldados, emblocados nos capotes, fumavam pachorrentamente, e os cavalos muito juntos, a cabeça baixa, pareciam dormir fitando, de vez em vez, as orelhas agudas como se perscrutassem rumores no vento.

Uma luzinha tíbia, como de lamparina, atraiu para uma casa os olhares do retardatário. As portas eram fortes e negras, como de ferro e, por um postigo engradado, via-se o interior de uma ourivesaria com os mostradores atopetados de jóias de preço e de baixelas que reluziam.

Taroucando tamancos, dois homens passaram por ele discutindo e, já longe, romperam em gargalhada estrondosa.

Chegando ao Largo de S. Francisco teve uma exclamação e deitou a correr para um bonde que partia, quase vazio, com as cortinas descidas. Tomou-o na volta, apesar do aviso do condutor: "Que ia recolher." Morando na Rua Senador Pompeu tanto lhe servia aquele como outro. Sentou-se, acendeu um cigarro e, de pernas cruzadas, imaginando fortunas e aventuras, foi-se deixando levar, como em sonho, sem ver, sem ouvir, alheio ao real que o cercava. Repentinamente, porém, lembrou-se da mãe. Que seria dele se a boa velha morresse?

Achacada, sempre a gemer, arrastando a perna túmida e pesada, era ela, ainda assim, quem lhe prestava auxílios, cuidando da casa, regulando as despesas, porque a irmã, sempre a pensar em enfeites, fazendo e desfazendo penteados ao espelho, polindo as unhas, passava os dias na cadeira de balanço, a ler romances e, à tarde, encharcada de essências, com muito pó-de-arroz, debruçava-se à janela, para ver os trens e receber bilhetinhos que os rapazes metiam por entre as rexas da persiana.

Era bonita e esbelta, de um moreno quente de crioula, tez fina e rosada, olhos negros, boca pequena, sensual, de lábios carnudos e úmidos. Os cabelos, quando os desprendia, passavam-lhe da cinta em ondas negras e reluzentes. Tinha uma voz lânguida, como ressentida de tristeza; falava em tom dolente de queixa e o seu olhar quebrantado, sonolento, amortecia-se em êxtases sob as longas pestanas curvas.

Paulo dominava-a com aspereza, exprobrando-lhe a vida desmazelada e, quando a velha, na intimidade, referia-lhe algum pequenino escândalo de Violante, rompia, assomado, ameaçando pregar a janela, atirar ao lixo todas aquelas caixas, todos aqueles vidros que entulhavam o toucador. Mas a irmã tinha crises - rolava pela casa, aos gritos, rangendo os dentes, rasgando a roupa, escabujando. E a boa velha, lamentando-se, corria os cantos, procurando remédios e, de joelhos, com a cabeça da filha ao colo, beijando-a, chamava-a, pedindo ao outro que a não tratasse com tanta aspereza, que tivesse pena dela, e instava para que, com afagos, procurasse chamá-la à razão. Ele obedecia contrariado. E Violante, amuada e mais linda depois da excitação nervosa, com os olhos mais brilhantes e a cor das faces mais viva, ia trancar-se no quarto, resmungando ameaças.

Voluntariosa, criada aos joelhos do pai, que a tratava de "princesa", anunciando-lhe sempre um noivo formoso e rico, que a havia de cobrir de sedas e carregá-la de jóias, foi acostumando o espírito com estas idéias de nobreza e fausto; de sorte que, quando lhe morreu o pai, já mocinha, sentiu-se como deserdada: foi como se, com ele, houvesse perdido uma fortuna que já possuía e um noivo que já a visitava em sonhos, formoso como os príncipes dos romances que ela devorava, revendo-se, com enlevo, em todas as heroínas.

Com a monte do pai, major de cavalaria, condecorado por feitos no Paraguai, todo o peso da casa recaiu sobre Paulo que, então, concluía os preparatórios.

Abandonando a idéia de bacharelar-se no Ginásio, matriculou-se na Faculdade de Medicina, conseguindo um lugar na revisão do Equador e algumas lições particulares, com o que fazia uma soma regular que, reunida ao meio-soldo que a mãe recebia, dava para irem vivendo, se não com luxo, ao menos com decência e fartura.

Posto que não achasse gravidade no estado da mãe, andava apreensivo, receoso, imaginando complicações e, volta e meia, lá ia um médico à casa; eram, às vezes, colegas. E os frascos de remédios enchiam prateleiras.

Com aqueles dias úmidos, Dona Júlia sofria atrozmente: mal podia mover-se na casa; sempre acaçapada nas cadeiras, as mãos espalmadas nas coxas, a gemer, dando ordens à cozinheira, que era a criada única que tinham. Ainda assim, se as dores abrandavam, lá ia ela para a vassoura, varrer, limpar os móveis ou arranjar a sala, porque não podia ver um fósforo no chão, nem um átomo de poeira nos seus velhos trastes do tempo do falecido. E, se a moléstia a prendia à cama, lá mesmo, com a perna esticada e untada, com o cesto de costura ao colo, ia cerzindo roupas, remendando meias ou reformando, pacientemente, os casacos da filha.

Profundamente religiosa, tinha no seu quanto, defronte da cama, sobre a cômoda, o oratório ante o qual ardia, perene, a lamparina de azeite iluminando registros milagrosos e duas imagens: a da Conceição e a do Senhor dos Passas.

Paulo ia pensando na boa velha e, quando o bonde passava pela Estrada de Ferro, saltou, subindo a Rua do Dr. João Ricardo, deserta àquela hora da noite. Grossas gotas de chuva bateram nas pedras, uma lufada de vento passou e, ao clarão de um relâmpago, o céu apareceu negro, acastelado de nuvens. Levantou a gola do casaco e, com o guarda-chuva à frente, como um escudo, a cabeça encolhida, partiu, rompendo a ventania.

2

Foi com surpresa pressaga que, ao avistar a casa, percebeu luzes por entre as persianas, acusando desusada vigília e logo a idéia de um acidente grave sobressaltou-lhe o espírito. Atravessou a rua a correr e bateu açodadamente à porta, aflito, ouvindo soluços e exclamações desesperadas que vinham do fundo da casa. A cozinheira apareceu, embrulhada num xale, com um lenço à cabeça. Ele entrou d'arremesso:

- Que é, Felícia? Que tem mamãe?

- Foi Nhá Violante que desapareceu, exclamou lamentosamente a negra.

Paulo ficou a olhar, num espanto, e, sem tirar o chapéu, avançou pelo corredor, direito à sala de jantar, onde Dona Júlia, com a cabeça entre os braços, dobrada sobre a mesa, soluçava.

- Que é, mamãe? Que foi? Então Violante desapareceu? Como? Quando?

Ouvindo-lhe a voz, a velha senhora levantou o rosto demudado e, pondo nele os olhos rasos de água, arrancou do peito um suspiro, pronunciando o nome da filha, com uma expressão de imenso desespero. Paulo compreendeu imediatamente o horror do crime que haviam levado a efeito na sua ausência. Teve um movimento impetuoso, lançando os olhos ao corredor, como se quisesse partir no mesmo instante, voltar à noite fria, para seguir no encalço da fugitiva. Mas Dona Júlia, abalada, rompendo em pranto convulso, lançou-lhe as mãos aos ombros, encostando-lhe ao peito a cabeça, cujos cabelos brancos, desfeitos, esvoaçavam e, numa queixa dorida, entrecortada, pôs-se a dizer: "Que nunca esperara aquilo de uma menina que ela criara com tantos sacrifícios, privando-se de tudo para que nada lhe faltasse, trabalhando como uma moura para poder satisfazer os seus caprichos de moça. Ah! nunca esperara tamanha ingratidão!"

- Mas como foi? perguntou Paulo, sentando-se numa cadeira próxima.

- Não sei, meu filho, não sei. Eu estava deitada, passara pelo sono, um pouco aliviada, depois do curativo. Acordei de repente com uma dor muito viva, umas alfinetadas que me subiam até o peito, como se me estivessem picando. Quis levantar-me para ir buscar a pomada, que estava em cima da cômoda, não pude: as dores eram muitas, tolhiam-me. Foi, então, que cheguei à parede e bati, como sempre fazia. Bati, bati, chamei, e tão alto, que Felícia ouviu na cozinha, e veio correndo, coitada! saber se eu queria alguma coisa.

"Ah! meu filho! Eu estava adivinhando, o coração dizia-me que havia acontecido alguma coisa. Antes de cuidar de mim, mandei Felícia ao quarto de Violante. Não sei como não morri quando a rapariga voltou espantada, dizendo que tua irmã não estava lá. Não sei como não morri. Foi Deus que não quis. Fiquei sufocada, com um bolo no peito, como se o meu coração fosse rebentar, e, nem sei como, saltei da cama e fui ao quarto dela. Ah! Paulo, meu filho, nunca pensei que aquela menina fosse capaz de uma coisa assim."

O pranto abalou-a de novo, um pranto humilde, infeliz, cortado de gemidos. A negra, então, que se conservava à distância, calada, ousou continuar, e Paulo boquiaberto, esgazeado, levantou a cabeça e fitou nela os olhos.

- Ela nem se deitou: a cama está assim mesmo.

- E com quem foi?

- Quem sabe lá! - gemeu Dona Júlia - algum malvado.

- Eu bem dizia a mamãe que não desse tanta liberdade à Violante.

- Que havia eu de fazer? Ela é moça, todas as moças namoram. Nunca me passou pela cabeça que minha filha fosse capaz de dar um passo como esse. E agora, meu Deus! que há de ser dela?

Paulo, sem responder, ergueu-se, pôs-se a procurar alguma coisa pelos cantos, sobre os móveis. "Meu chapéu...!?"

A negra adiantou-se:

- Vosmecê está com ele na cabeça, nhonhô.

Com o vento da noite, que entrava d'esfuzio pelo corredor, a chama do gás zumbia, ruflava dobrando-se como a de um maçarico; bátegas de água ruflavam nos vidros. Paulo dobrou as calças e, surdamente, pôs-se a rilhar os dentes, curvado, com o pé sobre uma cadeira. Dona Júlia, ouvindo o rumor forte da chuva, que desabara, perguntou lacrimosa:

- Queres sair com este tempo?

- Então?

- Onde vais?

- Vou à polícia. Mas... mamãe não desconfia de alguém?

- Eu? eu, não; eu vivia sempre metida aqui dentro.

A negra resmungou: "Que Nhá Violante conversava de noite com um moço da vizinhança, um que costumava passear de velocípede. As vezes, um soldado parava defronte, junto do muro da Estrada, e ficava até tarde batendo a calçada".

- Um soldado?

- Ele tem farda, explicou a negra.

- E tu és capaz de reconhecê-lo, se o vires?

A negra fez um momo:

- Hum... eu sou, como não? mas eu tenho muito medo dessa gente, nhonhô. Ele é alto, tem bigode preto. Mas nhonhô não me chame, sou uma pobre velha, ando por aí de noite sozinha. Tenho muito medo dessa gente.

- Mas é preciso, Felícia.

- Mas não foi ele não, nhonhô; vosmecê pode ficar certo de que não foi ele; Nhá Violante não gostava dele - cuspia, batia com a janela, fazia toda a sorte de desfeitas quando ele se punha a rondar a casa. Não foi ele não, nhonhô. Quem foi não é daqui, fique vosmecê certo. Numa rua passa tanta gente! Quem foi não é daqui, vosmecê há de ver.

Paulo encarava-a desconfiado, como se a suspeitasse de conivência no caso. Por fim, resolvendo-se, caminhou alguns passos, mas, voltando-se, pediu à mãe que se recolhesse, que se fosse deitar: Estava doente, não devia ficar ali fora exposta ao frio - podia ter alguma coisa séria. A polícia havia de descobrir o raptor. E insistiu: Que ele bem dizia: tantas vontades haviam de dar naquilo. Violante fazia o que entendia e, se ele falava, ai! porque era impertinente, grosseiro e mais isto e mais aquilo. Ali estava o resultado. Pensou rapidamente no escândalo - nos comentários da vizinhança, nos risinhos dos colegas, nas alusões dos companheiros de trabalho.

- Vai, então, meu filho: tem paciência. Vai ver se ainda podes salvar aquela infeliz. E que Deus te acompanhe. Nunca pensei que Violante fosse capaz de fazer isto comigo. Nunca pensei!

- Bem, mamãe. a senhora não consegue nada com lágrimas; vá deitar-se. Eu vou à polícia.

E baixinho, à negra, com voz trêmula, recomendou:

- Não a deixes, Felícia; tem paciência. Ela está doente, pode ter alguma coisa séria com este choque.

- Vosmecê pode ir descansado.

- Até já, mamãe: e vá deitar-se.

Dona Júlia balançou a cabeça desanimadamente, e Paulo enfiou pelo corredor, por onde o vento zunia. Na sala deteve-se, d'olhos altos, trincando os lábios, e, como a negra lembrasse o sobretudo, voltou-se repentinamente:

- Hem?

- Por que vosmecê não leva o sobretudo? Está chovendo tanto.

- Não: não é preciso.

Escancarou a porta e mergulhou na escuridão tempestuosa, com o guarda-chuva diante do peito, chapinhando em poças, sem ver, sem ouvir, atordoado e com os olhos cheios de lágrimas que lhe rolavam pela face.

Diante da Central, obscura e deserta, elevando os olhos neblinados, viu que eram duas horas. Nem um bonde, nem um tílburi: a praça estava vazia, à chuva. O vento, com uivos, em fortíssimas rajadas, apanhando-lhe o côncavo do guarda-chuva, arrastava-o, como se o quisesse levar, em monção propícia, mais depressa e direito ao destino. Em frente, a sombra era densa e os lampiões, brilhando, irradiavam no aguaceiro como aranhas d'ouro em teias de cristal.

Que seria dela? Onde andaria?! Tirou um cigarro do bolso, rebuscou a caixa de fósforos e, como não a encontrasse, teve um ímpeto de cólera, atirando à lama o cigarro úmido e mole.

Caminhando, pensava: "Que poderia fazer a polícia sem uma indicação, com uma noite daquelas? De manhã seria tarde; talvez mesmo àquela hora já a sua pobre irmã..." Deteve-se subitamente, sustado por uma cólera violenta, d'olhos cravados no chão; trincou os lábios e um impropério saiu-lhe da boca ressecada. "E a pobre velha? Que seria dela com tamanho choque?"

Ouviu um tinido de campainha através do surdo rufar da chuva, voltou-se sôfrego: nada! Pôs-se de novo a caminho, com mais ânsia, pelo meio da rua. Um Bêbedo resmungava, chafurdando nas poças, aos trancos.

Passando por uma casa baixa, iluminada, ouviu falas. Sobressaltou-se-lhe o coração num presságio. Talvez estivesse ali. Parou um momento, à escuta, e, atrevendo-se, espiou pelas frestas da persiana e viu, no meio da saleta triste, sobre uma mesa, um pequenino caixão entre velas. Uma mulher contemplava-o chorando e, em volta, outras mulheres, sentadas, cochichavam. Foi-se.

Não! Violante devia estar em algum sítio confortável, algum hotel de luxo, com o sedutor. Conhecia-a bem. Não sairia senão com quem lhe pudesse dar o fausto com que sonhava, vendo as gravuras dos figurinos ou lendo as descrições dos romances. Bem certo estava de que a irmã só se deixara arrastar à infâmia por vaidade, calculadamente, não por impulso d'alma.

Dobrou instintivamente a Rua da Constituição. Os seus passos ressoavam na rua deserta sem que ele os ouvisse, atordoado com os pensamentos que lhe trabalhavam o espírito. Tomou pela Rua do Núncio, desceu a do Visconde do Rio Branco e, achando-se na do Lavradio, houve nele um renascimento de coragem, uma grande e desanuviada esperança. "Podiam encontrá-la ainda pura. Os agentes conhecem todos os recantos e ela, talvez por pudor, resistisse, dando tempo a que a salvassem." E, quase a correr, aos saltos, evitando os lameiros, lançou-se para a polícia. A medida, porém, que se aproximava, como quem se avizinha de uma ilusão, ia-se-lhe a esperança desfazendo n'alma.

Àquela hora o edifício parecia repousar em sono calmo: a própria sentinela, atabafada no capote, com o capuz pela cabeça, agudo e negro, a lembrar um monge, estava encostada a um dos umbrais, d'arma ao ombro, imóvel. Atirou-se pelas escadas e, em cima, no corredor, à meia luz dormente de um bico de gás, viu dois homens num banco, cochilando. Um deles, porém, mais pronto, ouvindo o rumor, abriu os olhos, pigarreou e, firmando-se, encarou-o carrancudo. Paulo, quase sem hálito, pediu para falar ao delegado: Tinha urgência, era um caso grave.

- Se não é coisa de muita importância, o melhor é o senhor entender-se lá embaixo com o tenente, porque o doutor está descansando.

- Não; é mesmo com o delegado que pretendo falar.

- Quem é o senhor? - perguntou o homem molemente, abotoando o colete, enquanto o outro, que acordara, coçando com fúria a grenha hirsuta, engrolava escarros.

- Paulo Jove, estudante de medicina. - Já o homem caminhava quando, adiantando-se, ele ajuntou, em tom confidencial: Olhe, diga que sou do Equador. Tenho urgência, é um caso grave.

O homem correu o reposteiro e desapareceu. Paulo voltou à escada, encostou-se à balaustrada, com o guarda-chuva a escorrer. Só então pareceu dar pelas calças molhadas. Pôs-se a mirar os pés e, tirando o lenço, passou-o pelo peito, pelos ombros, pelas coxas. Estava regelado e, por vezes, uma dor fina atravessava-lhe a cabeça, como se a varasse um estilete.

Um soldado subia a escada, com a espada a bater nos degraus. Em cima respirou com força e tomou à direita, lento, achamboado, desaparecendo num corredor, Impaciente, Paulo ia chegando ao reposteiro. quando o homem, com uma voz gosmosa, o chamou:

- O senhor não pode entrar; espere um pouco.

- Pois não.

Afastou-se e pôs-se a passear, arrepelando os cabelos molhados, a pensar em Violante, vendo-a, acompanhando-a na fuga, pelo braço de um homem misterioso que a levava, com ânsia lasciva, os dois cobertos pela mesma capa, correndo, felizes, por entre árvores, como na gravura idílica de Paulo e Virgínia. Vagarosamente, o que fora anunciar, entreabriu o reposteiro e chamou-o: "Pode vir". Precipitou-se: quis deixar o guarda-chuva à porta, a escorrer, chegou a encostá-lo; logo, porém, retomando-o, entrou em pontas de pés, tímido. O homem indicou-lhe um sofá e foi encostar-se à mesa, bocejando. Pôs-se a olhar - a sala, em silêncio, estava iluminada e, sobre a mesa, acumulada de papéis, havia um capote e embrulhos.

Aquele abandono dava-lhe uma impressão acabrunhadora e, como se aquela sala, que era o vazadouro dos crimes, estivesse impregnada de um fluido mau, com um ambiente sinistro, infeccionada pelas confissões dos réus, como as enfermarias dos hospitais ficam viciadas com a respiração dos doentes, as idéias se lhe foram tornando sombrias. Já não era um doce idílio que ele via introspectivamente, através da claridade da imaginação, que opera, como uma lâmpada mágica, alumiando devaneios e conjecturas - era um crime: Violante a estorcer-se nas mãos brutais de um homem, a gemer, a implorar, meiga e infeliz, com sangue a escorrer-lhe do seio, com lágrimas nos olhos assombrados e, em torno dela, todo o horror de uma espelunca. D'olhos muito abertos, a respiração tomada, viu sair de uma porta fronteira um homem pálido, de barba ruiva, estremunhado, a ajustar ao corpo um robe de chambre de ramagens. O introdutor disse, surdamente, como se não quisesse perturbar o silêncio da casa:

- É este moço.

Paulo adiantou-se para o delegado, que se sentara molemente, tomando na mesa uma espátula, com a qual se pôs a bater na pasta.

- Sente-se - disse em voz pausada e fanha. - Estou às suas ordens.

O estudante chegou-se à mesa trêmulo, esfregando as mãos e, depois de haver lançado um olhar ao contínuo, que se deixara ficar à porta, disse:

- Sou estudante de medicina, sr. doutor: Paulo Jove; trabalho no Equador. O que me traz aqui é o desaparecimento de minha irmã.

O delegado cruzou as pernas e, sem levantar os olhos, friamente, perguntou:

- Desapareceu?

- Sim, senhor; hoje.

- A que horas?

- Das onze e meia para a meia-noite. Em casa não viram e minha mãe só deu pelo fato muito tarde, quando a chamou.

- Foi só?

- Não sei, sr. doutor.

- Não é natural. - E, depois de uma pausa: Desconfia de alguém?

- Francamente. sr. doutor... - meneou com a cabeça negativamente e encolheu os ombros. - Com a minha vida pouco paro em casa. Minha mãe, sempre doente ou a cuidar do serviço, raramente aparece na sala. A criada falou em um soldado. - Deu d'ombros: - Mas não creio.

- Onde mora?

- Na Rua Senador Pompeu.

- Seu nome?

- Paulo Jove.

- E ela, a moça?

- Violante.

- Quantos anos?

- Dezoito.

- Dezoito?

- Sim, senhor.

O delegado ia garatujando em uma folha de papel; deteve-se e, sem levantar a pena, murmurou:

- Traços.

- Como?

Ele repetiu devagar, insistindo:

- Traços.

- Ah! - E Paulo foi dizendo a altura da irmã, a graça do seu corpo flexível, a cor alambreada da sua pele flexível, a abundância ondulante dos seus cabelos negros, o carmim dos seus lábios polpudos, o negror das suas pupilas árdegas, a alvura dos seus pequeninos dentes, a languidez do seu andar preguiçoso, o encanto da sua voz dengosa.

- Bem: vou mandar ver. O senhor não procurou o delegado da sua circunscrição?

- Não, senhor; vim diretamente aqui. Mas se o sr. doutor acha necessário...

Sem responder, o delegado arrepanhou o robe de chambre e, com o papel na mão, pôs-se de pé.

- Tem pai?

- Não, senhor: morreu - era major de cavalaria.

- Pois sim, vou mandar ver; - e foi-se para a ponta do fundo, lento e derreado, tossindo.

Paulo ficou um momento hesitante, a olhar; ouviu o estralar de um móvel e um resmungo na saleta onde entrara o delegado. Já com o chapéu na mão esteve ainda indeciso, como à espera de uma resposta, até que, desanimado, dirigiu-se à ponta, correu o reposteiro e saiu. "Vou mandar ver!..." E, repetindo as palavras do delegado, desceu as escadas, indignado e desesperançado.

Chovia ainda. Carroças desciam a rua, aos solavancos, atroando o silêncio. Parado, com o olhar disperso, numa inércia acabrunhada, como esquecido do seu próprio ser, ficou um instante à porta, até que a frase indiferente do delegado repontou: "Vou mandar ver..." Teve um risinho irônico; voltou-se para a escada, com ódio, repetindo entredentes: "Vou mandar ver..." Impetuosamente abriu d'estalo o guarda-chuva, e ia, de novo, lançar-se a caminho, quando viu um tílburi, que se aproximava vagaroso, ao passo tardo de um sendeiro esgrouviado, pobre besta noctâmbula, velha e exausta, que só àquelas horas ermas, de trevas, saía com a ossada e o mormo, para a tarefa que lhe valia o pasto e o abrigo na cocheira, até que, de todo inútil, fosse tocada pelos moços e achasse um canto para morrer, ao claro sol, sob o azul macio do céu. O cocheiro perguntou, em voz pigarrenta: "Para onde?" e Paulo, deixando-se cair na almofada, deu-lhe o endereço.

Encolhido, sentindo a fria umidade da roupa, ia pensando na irmã: "Talvez a encontrasse em casa, arrependida implorando o perdão". Via-a de joelhos, banhada em lágrimas, agitada pelos soluços e a mãe a afagá-la, numa grande e transbordante felicidade. Mas o cocheiro interrompeu-lhe o sonho:

- Que tempozinho! E anda por ai moléstia que é um horror!

- É verdade.

- A bexiga então... O senhor não imagina. Lá na minha rua dois casos. Ontem foi-se um companheiro meu, deixando mulher e dois filhos. Um rapaz fonte que fazia gosto - vendia saúde. Agora fica praí, sem amparo, a pobre rapariga, com dois pequenos agarrados à saia. Mas que quer o senhor? um homem precisa, não pode estar a escolher. Ele apanhou um freguês para Catumbi e lá esteve com o carro à espera, mais de uma hora, perto duma vala. Até expirar não falou de outra coisa "que apanhara a moléstia naquela viagem. Que se não fosse o demônio da vala..." Mas nós temos de ir a toda a parte, para isso é que saímos.

Atirou uma chicotada à anca ossuda da alimária, que arrancou a trote fazendo ranger o tílburi, tão velho como ela, ameaçando desfazer-se em caminho, e continuou, inclinando-se, de vez em vez, para atirar à rua grossas cusparadas.

- Também não há quem cuide da cidade. Veja o senhor isto: não há molas que resistam.

Uma das rodas ficara entalada numa fossa, o animal ladeava esforçando-se, e o cocheiro, a fustigá-lo, cacarejava sacudindo as rédeas. Safando o veículo, o sendeiro partiu desabrido, apesar dos psius! do cocheiro, que retesava as rédeas.

- Ainda tem fogo. Aqui tem o senhor um bicho que trabalha há doze anos e não é qualquer que lida com ele. Tem ronha! Eu mesmo, às vezes, vejo-me atrapalhado.

Paulo não lhe dava atenção, preocupado, como estava, com o caso da irmã. Mas como fora aquilo? A força?! Não! Violante não era uma criança que se deixasse arrebatar por um desconhecido. Só? Também não! Para onde? E se houvesse saído para casar? Mas qual! Tivesse o tipo tal idéia, certamente não a aviltaria em uma fuga, de mais a mais, sem motivo. Fora contrariada? Não. Namorava, mas dizer que tinha amor a este ou àquele, isso não. Devia ser algum desses bilontras - quantos conhecia ele! - que exploram raparigas, lançando-as no vício. para viverem à custa da sua degradação. Um ímpeto de furor sacudiu-o: encheram-se-lhe os olhos d'água. O cocheiro bocejou alto, atirando uma relhada ao flanco do animal que trotava. Subiam a Rua do Dr. João Ricardo quando um silvo agudo cortou o silêncio da noite fria.

- Já o expresso!? - exclamou Paulo, em sobressalto. - Que horas serão?

- Deve andar perto das quatro.

- Como?! Já!

- Sim, senhor: não pode faltar muito.

Ao voltar o tílburi a rua, Paulo sentiu esvaziar-se-lhe repentinamente o coração como se todo o sangue se houvesse escoado. Lá estava a luz sinistra filtrando-se através das persianas. Era o sinal da vigília.

- Ali! disse.

O tílburi parou à porta e logo a janela abriu-se e a negra apareceu. com a trunfa muito branca e disse para dentro: "É nhonhô..." Ele compreendeu que ainda esperavam a desaparecida; pagou e desceu. O tílburi deu volta e foi-se lentamente, rangendo, como a desmantelar-se.

- Nada? perguntou à negra que lhe abria a ponta.

- Não, senhor.

Vindo da noite fria, sentiu uma impressão tépida, agradável, naquela sala iluminada e lúgubre. A negra pôs-se a fechar a porta correndo o ferrolho e ele caminhou direito à sala de jantar, desanimado, receoso, com o coração aos baques. Que havia de dizer à mãe que o esperava ansiosa, confiada na sagacidade da polícia?

Para os simples a polícia é ainda um conforto porque só a vêem através das lendas. A polícia tudo conhece e porque, raro em raro, descobre um criminoso, entende a pobre gente que ninguém lhe escapa, tanto o assassino como o ladrão, o que mata como o que furta. A pobre senhora acariciava a esperança de que, antes do nascer do sol, ali teria a filha, salva e pura. Paulo bem a conhecia e receava desenganá-la. Antes de chegar à sala ouviu-lhe a voz gemente:

- Então, meu filho?

Não respondeu e, quando a viu sentada em uma cadeira de vime, junto à mesa onde tinha um dos braços estirado, abatida, com os olhos roxos de pranto, fitou-a mudo deixando-se cair em uma cadeira.

- Nada...

- Nada?! Nem notícias, Paulo?

Esteve um instante a fitá-lo, desatando, depois, a chorar: um choro humilde, fraco, muito infeliz, de criança, com a cabeça pendida sobre o colo farto que estremecia sacudido pelos soluços.

Paulo, comovido, com os olhos marejados, quis dizer algumas palavras de consolação - pôs-se de pé, mas diante da mãe, cujo corpo tremia nos entrebuchos do pranto, emudeceu sem sentir as lágrimas que lhe cresciam nos olhos. Lentamente, passando a mão pelos cabelos molhados, foi caminhando cabisbaixo até a porta do quarto de Violante.

Deteve-se um momento, limpou os olhos e, tomando da mesa uma caixa de fósforos, fez luz e entrou. Sobre o lavatório de vinhático, numa palmatória de cristal, havia um coto de vela; acendeu-o.

A luz, que se foi, aos poucos, difundindo, lançou os olhos pelo interior desolado e, cruzando os braços, ficou a olhar como se estivesse diante dum cadáver.

A cama estreita, alva, com um fino cortinado enastrado de fitas, tinha uma ligeira depressão; o travesseiro macio, de paina, com a fronha de crivo, estava machucado. Um lenço jazia aos pés da cama, amarfanhado e odorante.

Ela estivera ali deitada, e planejara a fuga, atenta aos rumores da casa e às pancadas do relógio. Dali saíra, pé ante pé, atravessando a sala, passando sorrateiramente junto ao quarto em que dormia a mãe e fora-se pelo corredor. Abrira a ponta, ganhara a rua e partira sem uma lágrima, talvez sem o mais leve remorso.

Voltou-se: o lavatório estava em ordem, com os vidrinhos de essências, os vasos de flores, as escovas, os pentes. Sobre a cômoda o retrato do pai, fardado, em grande gala, de pé junto a um rochedo; e outros retratos de moças, de crianças; e cromos e a cestinha que ele lhe dera pelo Natal com amêndoas.

No fundo, o guarda-vestidos entreaberto. Puxou a ponta, que rangeu, emperrada, e viu, a um canto, sobre a caixa de chapéu, a boneca, muito loura, com os braços abertos, rindo, toda de azul; e os vestidos escorridos nos cabides, a sombrinha, caixas, embrulhos. Afastou as saias, sentindo um perfume morno e sensual de essência e de carne - faltava a de seda preta, a mais nova. Fora com ela, a linda saia que ele lhe havia dado meses antes, no dia em que ela completara dezoito anos, e que a mãe contara e cosera, cantarolando as suas modinhas tristes.

Não dizia palavra, apenas o seu rosto contraia-se em crispações nervosas e as pemas tremiam-lhe. Fechou o móvel, sentou-se na cama, com os braços caídos, e viu-se ao espelho do lavatório, demudado, os cabelos desfeitos, os olhos fundos e demorou o olhar, mirando-se. Pouco a pouco, porém, foi-se-lhe a imagem desvanecendo e uma sombra passou-lhe pelos olhos; agitou-se, e logo reviu-se, como em ressurgimento,

Fora, os soluços de Dona Júlia sucediam-se, a mais e mais angustiosos. "Que lhe hei de eu dizer, meu Deus!" Não lhe acudia uma palavra, apertava a cabeça entre as mãos, como a espremê-la, trincava os lábios e, de novo, cravava os olhos no espelho, revendo-se. E as jóias? Puxou a gaveta da cômoda - lá estava a caixa de veludo em que ela costumava guardá-1as - abriu-a: vazia! Meneou com a cabeça, contemplando o fundo de cetim negro, onde brilhavam letras douradas, entre medalhas. Fechou-a e depô-la de leve na gaveta, sobre umas gazes tênues. Afastando-se, sentiu que alguma coisa lhe fugia diante dos pés: baixou os olhos - era uma velha botina acalcanhada com o cano engelhado. Perto do lavatório jazia a parelha. Eram as botinas com que ela andava em casa.

Ficou a contemplá-las. Ah! Violante. Em súbito furor, atirou um murro à fronte rosnando: "Eu devia ter sido mais severo, mas mamãe... Encolheu os ombros e, como se lhe houvesse ocorrido uma idéia salvadora, levantou-se às pressas, abriu a gaveta do lavatório, mas ficou inerte, a olhar uma infinidade de selos esparsos. Fora ele que os arranjara com o Prates dos telegramas para a coleção que ela andava a fazer; estavam todos ali, em desordem, colados a pedaços de jornais, em fragmentos de envelopes carimbados. E cartas? Ela devia tê-las. Então, numa fúria, como um ladrão que tivesse pressa, receoso de ser surpreendido, pôs-se a abrir e a fechar gavetas que, às vezes, emperravam e, nervosamente, revolvia retalhos, papéis finos amarfanhados, ferros de frisar, cromos, grampos, alfinetes. Mas a voz lamentosa de Dona Júlia chamou-o:

- Paulo!

Rápido, atarantado, lutou para fechar a gaveta do lavatório, que resistia, empenada, meteu-lhe o peito e, com um impulso fonte, com o qual tremeram, tilintando, a louça e os cristais, levou-a ao fundo, saindo imediatamente. Dona Júlia limpava os olhos.

- Paulo! repetiu.

- Que é, mamãe?

- E agora, meu filho, que havemos de fazer? - Ele pôs-se a torcer a toalha da mesa, sem dizer palavra. - Então essa gente da polícia não pode salvar uma moça?

- Que hão de eles fazer, mamãe? Quem sabe lá! O delegado prometeu interessar-se por ela. Mas a senhora sabe que também não é assim, de uma hora para outra. Eles vão procurar.

- E então?

- Se encontrarem obrigarão o homem a casar, seja ele quem for. Não há outra coisa a fazer.

- Ah! meu filho... E se for um ricaço? O dinheiro vence tudo. Os ricos governam e a minha pobre filha é que fica para aí, perdida. Tu conheces tanta gente, Paulo... Tem pena de mim. Tem pena de tua irmã.

E a pobre velha, de mãos postas, soluçando, deixou-se cair de joelhos, a implorar.

- Tem, Paulo, tem pena de mim. Que vergonha, meu filho! - e inclinou-se, com o rosto nas mãos, os cotovelos fincados na cadeira. Paulo levantou-a:

- Eu farei tudo. mamãe; descanse. Nem conto com a polícia. Eu mesmo vou procurar Violante.

- Sim, meu filho; ela é tua irmã! Nem sabe o passo que deu. - Nervosa, trêmula, arrastando-se para o quarto, pôs-se a dizer: Nem eu sei com que cara hei de aparecer amanhã a essa gente da vizinhança.

Paulo já havia entrado no quarto quando ouviu o baque de um corpo. Precipitou-se, sobressaltado, e foi achar a mãe de joelhos, com a cabeça derreada, de mãos postas, exorando as imagens. Retrocedeu em pontas de pés, com um respeito sagrado e tornou ao seu quarto, na sala de visitas. Felícia, sentada no tapete, as pernas esticadas, os pés hirtos, ressonava. A porta estava entreaberta. Entrou, deu luz ao gás e, diante da estante atochada de livros, desabafou, colérico:

- Cínica! E tudo por vaidade. É a mania do luxo. Uma moça pobre, que não pensava em outra coisa senão em vestir-se... E eu que morresse! E a pobre velha que se estafasse! Ah! coisa nojenta!

Encontrou-se à mesa, onde tinha o retrato da família, num quadro: o pai, a mãe, ele, ela: pequenina, de vestido curto, com uma boneca nos braços, recaída sobre o colo de Dona Júlia, ainda moça e forte. Tomou o quadro e pôs-se a contemplá-lo e, de novo, os olhos se lhe encheram d'água.

O pai, muito severo, de pé, apoiado à espada, fitava-o duramente, como se o responsabilizasse por aquele fato que deslustrava o nome que ele havia, com tanto brio, honrado na guerra e na paz, legando-o puro aos filhos.

E Paulo, com um tremor nervoso, como se efetivamente aquela figura, animada por milagre, lhe falasse, pôs-se a dizer baixinho, em sussurro: "Meu pobre pai! Meu pobre pai!" Mas os seus olhos, empanados pelo pranto, buscavam a criança inocente que ali estava, linda e pura, com os cachos dos cabelos muito negros, confundidos com os bucres louros da boneca.

Depois o quadro e, acendendo um cigarro, sentou-se na cama e ia tirar as botinas que, com a umidade, se lhe haviam colado aos pés, quando ouviu os passos arrastados de Dona Júlia. A velha empurrou a porta e entrou, d'olhos muito abertos, a arquejar, e foi logo perguntando:

- Tu falaste no soldado? Quem sabe se não foi ele? - Paulo encolheu os ombros e a velha, sentando-se, continuou: Eu não atino com outra pessoa. Se não foi o soldado, foi alguém da Estrada de Ferro.

- Qual da Estrada de Ferro!

Depois de uma pausa, ela insistiu:

- Para mim, foi o soldado. Eu, se fosse você, ia de manhã ao quartel.

Paulo explodiu:

- Pois mamãe acha lá possível que Violante, vaidosa como é, saísse de casa com um soldado?!

- Quem sabe, meu filho!

- Ora!... Ela não deu esse passo por amor. Violante não quer bem a ninguém, nem à senhora, acredite. Se ela lhe tivesse um pouco de amizade, não saía de casa, como saiu, deixando-a de cama. Aquilo é a criatura mais indiferente que eu conheço. Se mamãe tivesse ouvido os meus conselhos, não estava agora aí chorando.

- Ora, Paulo... tinha de acontecer.

- Ah! Tinha de acontecer?... Não, não aconteceria se a senhora não lhe passasse tanto a mão pela cabeça. Que fazia Violante aqui em casa? Era uma princesa: Dormia até as tantas e passava os dias polindo as unhas ou colecionando folhetins dos jornais. Se a senhora a obrigasse a coser e a arrumar a casa não aconteceria o que aconteceu. Mas ninguém tocasse em dona Violante!

- Está bom, não queiras agora culpar-me. Eu fazia tudo isso porque sou mãe.

- Porque é mãe... Pois sim. E eu agora que deixe os meus afazeres e que ande por aí, envergonhado, à procura da senhora minha irmã. - Levantou-se indignado: Eu não ponho mais os pés na Escola! Essas coisas sabem-se logo e eu não tenho cara para aparecer aos colegas. "É irmão de fulana, que fugiu." Eu não! - Voltou-se repentinamente para a velha, carrancudo: Olhe, nós estamos aqui aflitos. E ela?...

- Sabe Deus se já não está arrependida! - suspirou a velha.

- Arrependida! Ela fez tudo com calma, levou todas as jóias.

- Levou!?

- Sim senhora, levou! - A mísera inclinou a cabeça sobre o colo com um suspiro; e Paulo continuou: E ainda a senhora quer desculpá-la. Uma perversa!

- Não fales assim.

- Que é, então? Que lhe faltava aqui? Tinha até demais! Luxo?! - Exclamou curvando-se, com a face contraída, os olhos flamejantes, as mãos espalmadas nas coxas: Ah! Isso não, porque eu não havia de roubar. Isso não! - E pôs-se a passear pelo quarto. Desabafava. A sua cólera contida transbordava e, como na expansão duma válvula há o vapor que se liqüefaz, havia naquela fúria lágrimas disfarçadas; era o pranto que irrompia da cólera e a atitude infeliz de Dona Júlia concorria poderosamente para aquela fraqueza. Tomou, ao acaso, um livro na estante, folheou-o vagamente e, atirando-o à mesa, prorrompeu de novo: Quantas vezes protestei contra aquela mania da janela? Diga! Uma pouca-vergonha. As outras moças chegam à janela, é verdade, mas Violante era desde a manhã até as tantas da noite, todos os dias, até com chuva. Nem sei que parecia. E a senhora? A senhora sempre a defendê-la, porque era moça. Está aí.

- Mas tu queres agora culpar-me, Paulo? Eu podia ver?

- Justamente por isso.

- Ora, meu filho, se ela tinha essa idéia nem que eu ficasse agarrada à sua saia noite e dia havia de levá-la a efeito. Tinha de acontecer e quando Deus quer...

- Deus! Aí vem a senhora com Deus. Pois sim. Eu é que não sei como há de ser agora.

- O quê?

- A minha vida. Tenho o jornal... Da Escola não falo, porque lá não ponho mais os pés.

- Então não te formas?

- Eu? Eu, não! Mas não sei como há de ser. Como poderei cuidar das minhas obrigações tendo de andar por aí à procura de Violante? Não sei.

- Ela há de aparecer. Tenho fé em Deus.

- Vá esperando.

- Por que falas assim?! Nem parece que é tua irmã. Deixa lá, é sina de cada um.

- Ah! É sina de cada um. Pois sim...!

- É, meu filho: é sina de cada um.

Com tais palavras, para evitar as recriminações de Paulo, que não suportava "superstições e crendices", foi-se do quarto, arrastando os passos.

Locomotivas silvavam manobrando, os galos amiudavam nos quintais vizinhos. Era a madrugada. Paulo começou a despir-se, atirando a roupa desordenadamente. As artérias das têmporas latejavam-lhe túrgidas, sentia um grande peso no cérebro. Apagou o gás e, no escuro. sentado à beira da cama, com os pés nus roçando o soalho frio, pôs-se a arrepelar os cabelos e viu, na sombra, vagamente, a cena da fuga: a irmã, de preto, com o embrulho das jóias, a caminhar cautelosa, surdamente e desaparecer diluindo-se como uma névoa.

Deitou-se, cobriu-se, não tinha sono. E pensava: Onde iria? Como encontrá-la? Chegou-se mais à parede e, d'olhos fechados, meditava quando ouviu os arrancados soluços de Dona Júlia no quarto próximo. Pôs-se à escuta e os olhos foram-se-lhe enchendo d'água, uma opressão pesou-lhe no peito como se lho fosse esmagando e, de repente. afundando a cabeça no travesseiro, rompeu a chorar desesperadamente.

3

Eram seis horas da manhã quando acordou em sobressalto, como se houvesse sido violentamente despertado. Sentou-se na cama esfregando os olhos, moído de fadiga e os fatos da véspera afluíram-lhe à memória, nítidos e rápidos. A cena em casa, a caminhada através da noite tormentosa, a subida à polícia, o delegado sonolento. Mas, pensando na mãe, pôs-se de pé, descalço e saiu para a sala, já aberta e em ordem.

Tiniam na rua as campainhas das vacas, trens bufavam rodando pesadamente; às vezes um silvo varava o silêncio. Havia sol. A luz dourada entrava pelas brechas das persianas brilhando no verniz dos móveis e, muito longe, soavam sinos, cometas vibravam.

Ia para a janela, mas recuou pensando nos vizinhos, receoso de alguma pergunta e estava parado, enrolando um cigarro, quando bateram à porta: era o lixeiro. Abriu; o homem passou às pressas, meio curvado, murmurando "Bom dia" e foi-se pelo corredor, com o balde à cabeça. Ele deixou-se estar, indo e vindo na sala estreita, até que o lixeiro tornou, sempre apressado, e saiu. Pareceu-lhe tê-lo visto sorrir, um sorriso irônico de quem se regozija com o sofrimento alheio. Teria ele sabido? Encostou-se à rótula olhando pelas rexas - o homem, trepado a uma das rodas da carroça, despejou o balde e dobrou a tampa que bateu com estrépito, saltou à calçada, deu volta, a correr, e, tomando as rédeas, incitou o animal que arrancou.

Na rua havia ainda grandes poças d'água, posto que os paralelepípedos, já enxutos, aparecessem muito brancos, lavados. O céu, limpidamente azul, resplandecia com um brilho de seda; subiam tufos de fumo das locomotivas, grossos, em rolos muito brancos, aos jatos, como flocos que se iam esgarçando, diluindo-se no ar.

Irresoluto, tão alquebrado d'alma como de corpo, com o desânimo, que é a fadiga moral, onde parava deixava-se ficar inerte, d'olhos imóveis, abandonado. Idéias contrárias debatiam-se-lhe no espírito, sentimentos diversos disputavam: ora o ódio irritava-lhe os nervos, ora a piedade umedecia-lhe os olhos.

Cabisbaixo, lentamente, com as mãos para as costas, seguiu pelo corredor e, na sala de jantar, levantando a cabeça, viu, com surpresa, a mãe parada à ponta do quarto de Violante, a chorar em silêncio, como se já não tivesse gemidos. Não lhe deu palavra; deixou-se cair em uma cadeira e ficou-se a olhar, absorto. Felícia trouxe-lhe o café e ele, distraído, pôs-se a mexê-lo vagarosamente.

Ouvindo bater à porta voltou-se ligeiro e disse à negra: que fosse ver, devia ser o caixeiro. Que lhe falasse lá mesmo, não queria ninguém em casa. A negra seguiu pelo corredor enrolando a trunfa em volta da carapinha grisalha e dura. Dona Júlia, sentando-se, disse, com uma doce expressão de ternura:

- Ela não levou as jóias, Paulo,- foi só com os brincos e com o anel que usava sempre.

- Como não levou?!

- Não, estão aqui; - e mostrou uma caixa verde, que fora de sabonetes, explicando:

- Estavam no guarda-vestidos. Nem as jóias, nem a roupa: está tudo aí. - Paulo conservou-se calado, d'olhos baixos, raspando o soalho com os pés. - Vais à polícia outra vez, não?

- Para quê?

A velha encarou-o boquiaberta.

- Como? Pois não vais?

- Eu, não. Que vou lá fazer? Para o homem dizer-me de novo: Que vai ver? Eu não.

- Mas, meu filho, se a polícia não fizer alguma coisa, quem poderá fazer? Queres que tua irmã fique para aí, atirada no mundo, sem uma pessoa que tome as dores por ela? Se não queres ir eu vou e tenho certeza de que hei de conseguir alguma coisa.

Felícia tornou à sala com os jornais que recebera do entregador. Paulo, em dois goles, sorveu o café morno e, cruzando as pemas, tomou as folhas que a negra deixara sobre a mesa. Lançou os olhos, com ânsia, à primeira página, percorrendo todas as colunas, à procura da notícia da fuga de Violante. Bem podia algum repórter ter aparecido na polícia depois da sua saída levando a informação escandalosa. Tranqüilizou-se, porém, lembrando-se da hora adiantada em que se dera o crime - já todos os jornais deviam estar prontos e nem tão importante era o caso para que o plantonista se arriscasse, por ele, a perder o correio.

Mais calmo, acendendo o cigarro, pôs-se a ler o Equador, achando aqui, ali, notícias que revisara: um desastre no mar, uma tentativa de suicídio e o conto de Aurélio Mendes, ao alto da primeira página, enchendo densamente as duas primeiras colunas.

Com o jornal diante dos olhos pensava nos companheiros. Que diriam eles quando a notícia, saindo da composição, lhes chegasse às mãos? O Brites conhecia Violante, e o Bruno, que a vira, uma vez, na redação, numa terça-feira gorda, ficara impressionado pelos seus olhos "que ardiam" - Que diriam eles quando lessem a prova infame? E, como se já sentisse a vergonha que lhe estava reservada, passou a mão pela fronte, depois, atirando um murro à mesa, ergueu-se: "Não! Não volto!" exclamou respondendo a um pensamento. Dona Júlia levantou os olhos marejados encarando-o em silêncio. "Não volto!" repetiu debruçando-se à janela que abria sobre o quintalejo. Lá estavam os caixotes com violetas e malvas, à sombra do muro. Eram os canteiros de Violante.

Ao fundo, num cercado de ripas, as galinhas cacarejavam assanhadas, com fome. Um gato caminhava lentamente pelo muro, ao sol e, entre as folhas miúdas duma esponjeira, uma camaxirra chilreava trêfega, na alegria da luz, entre o brilho das gotas da chuva, engastadas nas folhas.

Paulo, com o rosto nas mãos, os cotovelos no beiral da janela, elevou o olhar pensativo. De vez em vez sacudia a cabeça com um sorriso magoado. Amofinava-o aquela idéia dum possível comentário dos companheiros na sala da revisão, perto dele: o Bruno, sensual, a invejar o homem que arrebatara Violante; o Amaro, com quem tivera uma rusga, a rejubilar vingativo; o Malheiros a rir, com a sua eterna ironia, e os compositores, até o Lúcio, retranca, toda aquela gente a espetá-lo com olhares perversos ou curiosos. Talvez mesmo algum, mais ousado, lhe pedisse pormenores oferecendo-se para ajudá-lo na pesquisa ou com um empenho para o chefe, não porque o quisesse auxiliar, em desinteressada camaradagem, mas para entranhar-se no escândalo, conhecer as minúcias, todos os pequeninos incidentes. "Não! Não volto!" E encolheu os ombros.

Não eram somente os revisores do Equador, toda aquela multidão promíscua do jornal que lhe aparecia, inclemente, a rir, num surdo remoque: eram os estudantes, seus colegas da Escola, troçando o caso em volta do tabuleiro da Sabina, nos anfiteatros, nos corredores, até diante das mesas de dissecção.

Nas ruas também, quando passasse, haviam de mostrá-lo: "É aquele!" E ririam, com escárnio, da sua desonra; talvez o responsabilizassem por ela. Fariam dele um carrasco e da irmã uma vítima - que fugira para evitar tormentos, que se libertara do verdugo, preferindo as misérias do meretrício à vida humilhada e torturada. E ele, inocente, seguia, vexado, sob a dureza daqueles olhares que lhe infligiam um injusto castigo. Teve um novo movimento de cólera e Dona Júlia, que o olhava, perguntou:

- Que é?

Encolheu os ombros, deixando a janela e, molemente, abandonadamente, encostou-se à mesa brincando com a colher que ficara na salva de metal. De repente, numa inspiração, exclamou:

- Vou procurar o Mamede.

- Mamede?! Para quê? perguntou a mãe.

- Para descobrir Violante.

- E Mamede sabe, meu filho!?

- Mamede? Mamede conhece toda a cidade, é íntimo dessa gente da polícia. Se com ele eu não descobrir Violante, então... - esticou o beiço, desanimado. - A senhora bem sabe que ele foi agente de polícia, era um dos melhores; saiu por causa do gênio.

- E sabes onde ele mora?

- Mora em uma estalagem, na Rua do Riachuelo. Vou já. Hoje é domingo; ele deve estar em casa.

- Então, vai. E a polícia?

- Qual polícia! Penso lá em polícia!? Descanse. - Deu alguns passos e voltou-se: Olhe, se eu tivesse dinheiro ainda bem, mas assim...

E caminhou para a cozinha. Felícia talhava a carne sobre a mesa encardida e acumulada; o gato miava, fazendo voltas, com a cauda hirta e, numa gaiola, o gaturamo gorjeava, pulando, todo arrufado e úmido do banho. Paulo saiu ao quintal e, descalço como estava, foi seguindo direito ao banheiro. Felícia, vendo-o passar, correu com um par de tamancos e uma toalha felpuda:

- Olhe, nhonhô.

Ele tomou os tamancos, atirou a toalha ao ombro e empurrou a porta do banheiro sombrio e úmido. Despiu-se e, nu, passeando, a esfregar o peito, d'olhos no chão, esteve algum tempo a pensar.

Na vizinhança, uma voz de mulher cantava; estalavam roupas batidas e, de instante a instante, eram berros de locomotivas que chegavam, que partiam, arrastando comboios. Ficou debaixo do chuveiro, hesitante, com frio; esteve um momento parado a olhar o crivo que pingava, depois uma aranha, que se balançava na teia, a um canto, junto à caixa d'água; por fim, resoluto, puxou a corrente e a água jorrou copiosa. Refrescado, saltou para a tábua e, envolvendo-se na toalha, pôs-se a esfregar-se. Vestiu-se, calçou os tamancos e saiu.

Passando pela cozinha recomendou à Felícia que lhe arranjasse qualquer coisa para almoçar: um bife e ovos - e, apressado, fechou-se no quarto para vestir-se. As botinas estavam encharcadas; tomou uns sapatos amarelos e surpreendeu-se a assobiar, esquecido da agonia que lhe toldava a vida, dantes tão calma e feliz naquela casinha alegre. Vestido, mirou-se rapidamente ao espelho, compôs a gravata e passou à sala de jantar.

Felícia estendera a toalha e já o prato o esperava. Sentou-se; e arrastando uma cadeira para junto dele, ficou a enrolar uma ponta da toalha, suspirando a espaços. Quando a negra apareceu com o bife e os ovos ainda rechinando na frigideira, Paulo partiu o pão e pôs-se a comer às pressas, sem levantar os olhos. Cigarras chiavam nas árvores vizinhas e na rua um vendedor de frutas prolongava um pregão monótono.

- Que vais dizer ao Mamede?

- A verdade.

- Que ela fugiu de casa?

- Então?

Calou-se, pensativa. e tornou por fim, receosa:

- Não sei. Eu, por mim, não dizia. Mamede, com aquele vicio...

- Ora, vício. Mamãe há de ver.

- Enfim...

- A senhora pensa que a polícia é uma coisa e ela é outra. Olhe o Alves.

- Que Alves?

- Um colega meu. Um copeiro levou-lhe de casa todas as jóias da mãe e das irmãs e depois? O Alves fez tudo e, até hoje, não conseguiu da polícia outra resposta senão: "Que os agentes estão na pista do gatuno!" Vai já para um ano, e o Alves tem dinheiro para gastar. A senhora pensa que é só chegar lá e pedir? Pois sim! Vou arranjar-me com o Mamede. Se hei de gastar com um desconhecido, gasto com ele, que é amigo, e com mais probabilidade de êxito, porque Mamede pode ser tudo, mas estima-nos.

- Isso é verdade, concordou Dona Júlia, ajuntando: e tem obrigação. Seria um ingrato se não nos estimasse.

A palestra foi-se tornando calma entre mãe e filho, como se houvessem esquecido o desgosto. Dona Júlia chegou a notar que um dos punhos do filho tinha uma mancha de ferro e propôs substituí-lo.

- Não, serve este mesmo, - disse ele levantando-se e batendo forte com os pés para ajeitar os sapatos. Ainda mastigando, recebeu de Felícia a xícara de café; tomou-o em três goles e, dirigindo-se a Dona Júlia, disse-lhe: E agora não fique para aí chorando: almoce descansada. Eu vou ver. Tenho esperança de conseguir alguma coisa com o Mamede.

Tomou o chapéu, mas Dona Júlia adiantou-se com a escova.

- Espera um pouco, não vás assim! - e pôs-se a escová-lo vagarosamente.

- Lembre-se de sua saúde; a senhora anda doente. Eu estou aqui. Não vá agora amofinar-se por uma ingrata, que nem é digna da sua amizade. Eu, palavra de honra, se não fosse pela senhora, nem me abalava - que se arranjasse. - Dona Júlia curvara-se para escovar-lhe as calças.

- Isso não! É minha filha, é tua irmã!

- Pois sim...

- É teu sangue.

- Meu sangue, não! - negou indignado. - Não, que eu trabalho, faço pela vida. não ando a embonecar-me. Mas ela há de ver o bonito... - Oh!

- Não fales assim, Paulo! Deixa-a. Deus é grande! - E passando-lhe a mão pelas costas, para tirar um fiapo que esvoaçava repetiu: Deus é grande e é pai.

Paulo tomou a bengala e partiu.

- Deus te acompanhe! murmurou a velha.

Ele esteve um momento indeciso, a pensar nos vizinhos, imaginando uma resposta para os que lhe perguntassem pela irmã, mas resolvendo-se, abriu a porta e saiu, de cabeça baixa, como preocupado, para evitar os cumprimentos.

A cidade, depois da noite de chuva, muito arejada e lavada, tinha um aspecto asseado e agradável. O sol tépido brilhava num puro azul e, pelos telhados vermelhos do casario, aqui, ali, clarabóias dardejavam ofuscantes. Um realejo melancólico resmoneava ao longe. Paulo atravessou a rua sem voltar os olhos. Ouvia vozes na vizinhança - uma mulher que silvava psius! os gritos frenéticos de uma criança, latidos de cães. Quando dobrou a esquina sentiu-se aliviado, tranqüilo, como se houvesse escapado a um perigo; moderou o andar.

No quartel estrondava um dobrado entusiástico. Instintivamente foi ritmando os passos pela música; de repente, porém, como se se sentisse observado, fez uma leve parada e seguiu devagar, fugindo aos compassos, até que se achou diante da estação Central.

Gente escoava em massa para o largo, chalrando: pequenos apregoavam jornais, perseguindo os passageiros que chegavam dos subúrbios. Homens, sentados ou acocorados diante de cestas de frutas, acamavam maçãs rosadas ou conversavam alegremente. Grandes tabuleiros de doces atraíam a garotada, os doceiros apregoavam, afugentando as moscas que esvoaçavam em torno dos pães louros, lentejoulados d'açúcar cristalizado e os engraxates, de joelhos junto das caixas, que batiam, chamavam os transeuntes. Bondes faziam a curva, outros seguiam cheios e os de São Cristóvão cruzavam-se, apinhados, com gente nos estribos.

Os carros, em fila, estendiam-se ao longo do terreno vago e em torno de um quiosque cocheiros discutiam em algazarra; outros, atracados, mediam forças ou gingavam em meneios capoeirosos, enquanto um pequeno, junto a um dos carros, estalava um chicote, rindo-se quando a água de uma poça espirrava para os lados, lamacenta e negra.

Os montes, muito azuis, tinham uma nova alegria. A Tijuca, desanuviada, cravava o seu cimo no céu; e o parque em frente, denso e verde, parecia de um arvoredo tenro: lisa era toda a folhagem, como nascida naquela manhã; a grama verdejava viçosa, como se por ali houvesse andado a primavera mondando as plantas, recolhendo versas e ramalho para mostrar, em todo o esplendor da beleza, a sua residência mais amada.

Ia atravessando a rua quando uma matula de garotos arremangados, descalços, brandindo paus, aos berros, abalou da estação, a correr em direção ao quartel, donde partiam, vibrando na serenidade da manhã luminosa, clangores fortes de metais. Deteve-se, empolgado por aquele troar de guerra, que os ecos iam prolongando gloriosamente. Era um batalhão que saía, precedido pela cainçada lépida, que ladrava.

A molecada esperta, aos saltos, corcoveando, em destros arremessos, bradava atirando, desviando golpes, numa excitação de luta e a banda rompeu estrondosa como uma muralha resplandecente que se movesse, seguindo para o campo fronteiro, onde já se haviam reunido grupos de curiosos.

Apareceram depois os oficiais a cavalo - um dos ginetes, negro e luzidio, caracolava garboso: logo depois o primeiro pelotão, com as baionetas rútilas inclinadas, formando um revérbero e passavam, com intervalos, serenamente, pelotões sobre pelotões, até que houve um claro e a bandeira verde, solta ao vento, palpitou vitoriosa. Retiniram cometas, novos pelotões desfilaram: por fim vários soldados, num bando desordenado, saíram na coda e um carneiro, lanzudo e gordo, precipitou-se rebolando entre cães que ladravam, engalfinhando-se, numa alegria estróina. Bondes esperavam travados até que o batalhão atravessou a rua airosamente.

A um brado do comandante, que sofreava o corcel, os pelotões recuaram ficando toda a tropa em linha, imóvel e direita. Súbito, num relâmpago, moveram-se as baionetas fazendo uma linha perpendicular, cintilante. Uma pancada atroou, os tambores rufaram e um dos oficiais, à rédea frouxa, partiu em revista à formatura.

Os passageiros voltavam-se nos bondes para olhar e Paulo, entretido, acompanhava as manobras quando se lembrou do Mamede. Lançou um olhar rápido ao relógio da estação - eram oito e meia. Foi-se lentamente até ao portão do parque, sempre a ouvir a música guerreira que estrugia como um hino forte à luz magnífica do sol.

As aléias estavam ainda úmidas e marcadas de pegadas, mas que frescor na folhagem! O lago, liso e cristalino, refletia o céu e um ganso, alvo de neve, nadava sem mesmo frisar a água dormida. O relvado cintilava emperlado de gotas límpidas e um aroma silvestre de bosque virgem saturava o ar fino.

Ele seguia contemplativo, sentindo o hálito das árvores, cercado pela vegetação forte, refeita com a rega farta da noite.

Passarinhos cantavam nos ramos, iam dum a outro, perseguindo-se; uniam-se no ar como trocando beijos e lá iam, de novo, juntos, d'asas frementes, metiam-se num meandro folhudo, onde, por certo, tinham o ninho agasalhado. Folhas caíam girogirando, flores murchas manchavam a relva, amareleciam ou ensangüentavam as alamedas.

Num banco um casal espairecia vendo o filho, um pequenito enfezado, ir e vir, arrastando a bengala, a fazer garatujas na areia. Súbito, porém, um som rouco e fanho de buzina e um retinir de tímpano alarmaram os dois felizes: o homem levantou-se, tomou o petiz nos braços, mas não teve tempo de voltar ao banco porque dois ciclistas, curvados sobre as máquinas, pedalando com fúria, passaram rápidos, com uma leve crepitação da areia.

Homens caminhavam passo a passo, como convalescentes e uma velha negra, abordoada a um pau, trêmula e tarda, passou com resmungos, num solilóquio de idiota, a cabeça toda branca, a pele engelhada, os olhos sumidos, enevoados no fundo das órbitas. Paulo chegava à praça central quando alguém lhe falou. Era um vizinho, empregado no Correio:

- Por aqui?

- É verdade.

- Os seus, bons?

- Graças a Deus. E os seus?

- Assim... - tocou no boné e seguiu ligeiro, gingando. Outros ciclistas deslizavam, uns céleres, como em vôo rasteiro, outros lentamente, ziguezagueando, oscilando ora à direita, ora à esquerda, esbaforidos, suados.

Bem felizes eram aqueles que por ali andavam descuidados! Para eles a natureza ria, o sol era alegre, jacundos os passarinhos, as flores obrantes e no sorriso de enlevo manifestavam a alegria de viver. Tudo, em torno, acenava-lhes afortunadamente. Só ele ia magoado, com a alma denegrida, fugindo aos homens, receoso das próprias coisas, porque aquelas mesmas árvores, aquele mesmo céu, aqueles mesmos pássaros pareciam recebê-lo com ironia pungente vendo-o infeliz, toldando com a sua tristeza a alacridade daquela manhã triunfal.

Um velho maltrapilho cochilava num banco, sob a ramagem verde e basta duma árvore em flor, com o cajado entre as mãos engelhadas. Era um triste, talvez, tinha também o seu drama; mas abriu os olhos lentamente, cravou-os no céu e, como um sino ressoasse perto, sonoro e grave, tirou o chapéu desabado, descansou-o no banco, persignou-se e, baixando a cabeça branca, de emaranhados e amarelecidos cabelos, ficou imóvel.

Dominado por aquela figura venerável de crente, Paulo descobriu-se, mas com vergonha dos transeuntes, que o podiam tomar por um carola, pôs-se a passar a mão pelos cabelos - no íntimo, porém, fazia votos a Deus, àquele Deus de Misericórdia que a voz grave do sino recordava no esplendor da manhã.

Vivamente outros sinos, mais límpidos, bimbalharam em festivo repique, e lá iam os devotos ao som do reclamo, como ovelhas correndo à buzina do pastor, por entre os pedrouços e a urze brava do monte, aos quais bem podem ser comparadas as agruras da vida.

Quando chegou ao portão, em frente aos Bombeiros, teve de recuar à zoada das trompas de outros ciclistas, que vinham em caravana, apostando, uns mais avançados, rindo, galhofando em tom de vitória. Atravessou a rua e, fustigado pela preocupação, amiudou os passos.

Subindo a Rua do Senado por entre o casario pobre, vendo às janelas os bustos arremangados das caseiras e, na calçada, os homens que gozavam a sua manhã de folga, em mangas de camisa, os braços nus, guedelhudos e fortes, tinha, por vezes, palpites de que a irmã estava refugiada em uma daquelas casas. Ouvia-lhe o riso, reconhecia-lhe o timbre da voz fresca e lânguida; voltava os olhos e, rapidamente, devassava interiores modestos.

Num botequim, junto à barreira esbarrondada, abancados a mesas sórdidas, preguiçavam madraços, e, mais adiante, numa casa de pasto, escura e lôbrega, ao longo de compridos bancos, trabalhadores almoçavam chalrando estrondosamente.

Enxames de moscas esvoaçavam na calçada e um velho, sentado no limiar de uma casa, com a perna esticada, envolta em estropalho imundo, alrotava, estendendo a mão aos transeuntes. Paulo atirou-lhe uma moeda.

Ganhando o aclive da Rua do Riachuelo, seguiu lentamente, curvado, chegando ao alto alagado em suor.

4

A estalagem em que morava o Mamede, antiga chácara senhorial, abria por um portão nobre, com leões de louça nos pilares de pedra. Era um imenso e rumoroso viveiro, alveolado de renques de casotas baixas, de porta e janela, ao fundo de um jardinete, em umas escavacado e seco, em outras caprichosamente plantado até a cerca de ripas que o limitava.

Largo, vasto, subindo em capinzal para a montanha, o terreno era o logradouro comum, gramado em quadros ou com coradouros de pedra sob uma verdadeira teia de cordas onde trapejavam roupas.

No aclive, encostado à barranca, havia um estábulo e mais ao fundo, num cercado de pau-a-pique, muares soltos espojavam-se entre carroças tombadas sobre os varais. Tinas jaziam acanteiradas em fila ou de borco. Sentia-se o descanso domingueiro.

Só uma mulher, vermelha, anafada, com um largo chapéu de homem à cabeça, as saias arrepanhadas na cintura grossa, mostrando as pernas fortes e os pés rijos, em tamancos, ensaboava, jogando violentamente o busto, rebolindo os quadris nutridos. Os seios desabavam-se-lhe, moles e trêmulos, no papo da camisa e os seus braços másculos mergulhavam e reapareciam enluvados d'espuma.

Um mulato calvo, d'óculos, quase no limiar de um dos casebres, aproveitando a luz, cosia à máquina, cantarolando; e uma negra, sentada acaçapadamente, com o pito nos beiços, chupava fumaças distraídas, olhando o céu azul.

Ao fundo, alta e agreste, a montanha impunha-se e, por um caminho íngreme, escavado, uma cabra, aos galões, galgava o alcândor.

Fortum acre de barrela saturava o ar. Poças d'água cinzenta alumiavam ao sol em todo o vasto enxurdeiro.

Paulo sabia que a casa do Mamede era uma das últimas, querendo, porém, certificar-se perguntou a um pequeno que, em camisola e descalço, arrastava um comboio feito com caixas de fósforos. O interrogado partiu correndo e estendeu o braço indicando uma casinha pintada de azul, a cuja frente, além da cerca de ripas, verdejava uma latada.

- É ali.

Paulo agradeceu e encaminhou-se saltando um rego onde dormia, estagnada, uma água negra, velada e pútrida. Antes de bater esteve a olhar, como à espera de alguém. Cantavam na vizinhança, em tom monótono de acalento. Adiantou-se e bateu, tímido a principio, depois forte, bradando:

- Ó de casa!

- Quem é? - rosnaram de dentro, e um mulato espadaúdo, picado de bexigas, em mangas de camisa, cabelo em poupa, apareceu à porta, sungando as calças. Logo que viu o estudante abriu os braços, com alegria ruidosa:

- Ó nhozinho! Que milagre! Vosmecê por aqui? - E, sério, inclinando-se, com o sobrolho carregado: Alguma novidade lá em casa?

Paulo afirmou com a cabeça e o mulato, boquiaberto, num assombro, ficou algum tempo a mirá-lo; de repente, porém, passando-lhe o braço pelas costas, chamou-o: Mas entre, nhozinho; entre. Fez uma volta repentina na soleira e, sorrindo, com os dentes muito brancos, observou, pernóstico: não repare, isto é casa de pobre... e Ritinha ainda nem fez a limpeza.

Paulo encolheu os ombros e, deixando o chapéu a um canto, sentou-se numa cadeira tosca, que tinha o forro de palha muito esgaçado.

- Vai um golinho de café? - Paulo aceitou. - Isto é que é... Sempre o mesmo, hem, nhozinho? Bom como o velho. - E, atirando o corpo para trás, com um gesto largo do braço, descaído e lépido: Em casa de pobre não há outra coisa. Mas é bom! - afirmou com seriedade cômica. - Um instantinho.

Correu um leve reposteiro de chita escura, de ramagens, e desapareceu, gingando.

Paulo lançou os olhos à sala. Estreita, com uma janela e a porta à frente, duas portas ao fundo, encobertas pelos reposteiros de chita que o vento tufava; uma mesa de pinho, a cômoda com imagens de gesso e quinquilharias, quatro cadeiras e um banco com assento de couro. Nas paredes: cromos de antigas folhinhas, gravuras recortadas e uma cópia da Batalha de Avaí. A um canto, um feixe de bengalões mosqueados.

Na janela, empanada por uma cortina de filó, dois vasos de barro com malvas e, numa gaiola, um pássaro triste, amorrinhado, olhava o céu, piando. Um gato cinzento, esgrouviado, espichou-se, corcoveou e veio vindo, com preguiça, pelos varais da latada; ao vê-lo, porém, deteve-se, desconfiado, fitando-o, e, sem perdê-lo de vista, agachou-se, cravou as unhas nas ripas, raspando com frenesi; de repente, num salto, desapareceu no telhado.

Mas o mulato tornou, com a sua alegria ruidosa: "Que Ritinha estava arranjando o café", e, tomando de cima da mesa uma ponta de cigarro, acendeu-a e sentou-se cavalgando o banco, de pernas abertas, descaído, os cotovelos nos joelhos, o queixo entalado nas mãos, e perguntou com mistério:

- Então que houve, nhozinho?

- Violante fugiu de casa, Mamede.

O mulato empinou-se num ímpeto de espanto e, hirto, d'olhos esbugalhados, exclamou:

- Como, nhozinho!? Não me diga isto! Nhá Violante...! Com quem?

- Não sei.

- Quando, nhozinho?

- Ontem à noite.

- E vosmecê não desconfia de alguém?

- Ora, Mamede, eu, com a vida que tenho, pouco paro em casa. Não sei.

- E a velha?

- Mamãe, coitada!

- Ora, Nhá Violante! Uma menina que parecia uma santa... Vosmecê já foi à polícia?

- Fui ontem. Mas não confio naquela gente. O que eu quero é que tu me auxilies. Só conto contigo.

- Comigo!? - exclamou o mulato vaidoso, espalmando a mão no peito.

- Sim, tu conheces essas coisas. Contigo tenho certeza de descobrir o patife.

O mulato encolheu-se, modesto.

- Ah! nhozinho, também não é assim como vosmecê pensa, - disse escarvando a cabeça; - não é assim. Se a gente ainda tivesse uma dica... - Encolheu-se, pensativo, mordicando os grossos beiços, levantando o bico das chinelas. De repente, firmando-se, explicou: Aqui só há um meio - é a gente conversar com os cocheiros. Ela, com certeza, foi de carro, eu sei; ninguém faz essas coisas senão de carro e cocheiro é como mulher: não guarda segredo - o que um faz está na boca de todos. O meio é a gente sair pescando aqui, ali, nos pontos. Mas para isso é preciso andar com essa malandragem e esse serviço não é para um moço como vosmecê.

- Como não? Por quê?

O mulato sorriu superiormente, bambaleando-se:

- Não, nhozinho, eu mexo as coisas cá no meu lado, vá vosmecê tocando lá por cima. Essa gente miúda é o diabo! repetiu. Perto dum moço como vosmecê nenhum abre o bico, não se arranca isto, - e mostrou a unha aguda do polegar. - Comigo não, sou cabra da mesma romaria, ando no lote com eles e com uma misturadinha e uma pabulagem destripo o mais mitrado. Para mim o melhor mesmo é pegar os cocheiros. A gente vai no rasto, farejando, até botar a mão em cima do mestre, depois... o resto é nada. Mas com vosmecê, não. Vosmecê atrapalha os cálculos. Moço assim direito... qual! dizem logo, isso é tira, está sondando. Eu conheço os casos; - e riu. Logo, porém, reassumindo a gravidade, perguntou: E na vizinhança? A gente não pode apanhar alguma coisa? Vosmecê não tentou?

- Não.

- Pois é preciso, nhozinho. Então é assim que vosmecê quer pegar o meco? É preciso.

Nesse momento uma mulatinha cor de canela, afastando o reposteiro, apareceu com a bandejinha de café.

Muito nova, teria dezoito anos, pele fina, cetínea, olhos negros, faceiros e pestanudos, cabelo liso, abundante, roliça e lânguida. Os seios rijos espetavam o corpinho de cassa, e, pelas mangas frouxas, viam-se-lhe os braços morenos, torneados e nos punhos finas pulseiras de prata com berloques tinindo. Mamede apresentou-a:

- Esta é a minha barbiana, Ritinha, a mulata de mais caídos que eu conheço; - e atirou uma palmada ao quadril da rapariga, que fugiu com o corpo graciosamente.

- Olha, Rita, este é o filho do meu major. Eu vi este menino assim - e esticou o braço forte mostrando a altura - brincou muito aqui nos meus joelhos, era doido por mim. Nem vosmecê se lembra, hem, nhozinho?

Paulo, sorvendo o café, fez um aceno afirmativo; mas o mulato, estirando as pernas, arregaçando as calças, duvidou:

- Qual! Vosmecê era muito miúdo. - Ritinha sentou-se com a bandeja nos joelhos, mirando-o. Mamede, porém, entregando-lhe as xícaras, atirou-lhe nova palmada, que ela rebateu, ligeira, com um momo. - Vai um bocadinho lá dentro, mulata; nós estamos aqui numa menestra.

Ritinha levantou-se molemente e, com o seu andar quebrado, desapareceu; pouco depois a sua garganta mandou à sala a melodia de uma modinha sertaneja.

- Então, nhozinho, vosmecê não acha que eu penso bem? Eu vejo fundo nessas coisas. Vosmecê toca lá de cima, eu vou trabalhando cá por baixo, com o meu povo: assim, sim. Fechamos o bicho num cerco e, seja ele quem for, quanto mais graúdo melhor, há de chegar à fala. E depois, se eu puser os luzios nele, vosmecê pode ficar certo de que o mestre cumpre a obrigação. Ah! isso cumpre! Olhe, nhozinho, não é por vosmecê estar presente, mas pergunte à Ritinha se eu não vivo aqui falando lá de casa: do velho, da velha, de vosmecê, de Nhá Violante. Eu estimo vosmecês mesmo, não é prosa, estimo! Vosmecês cresceram nos meus braços, e então? Deus me livre! Achando, vosmecê pode ficar tranqüilo, porque o trucha ou cumpre a obrigação apagando a mancha, ou eu... ahn! Vosmecê não me conhece ainda, nhozinho. Eu não sou homem de muita conversa, esteja certo disso; não sou, mas quando digo, faço, nem que saiba ir parar no inferno. Assim como assim, a gente vive em qualquer parte, vive mesmo, mas com uma ânsia no coração, isso é que não, não é comigo.

Encolheu os ombros, esguichou, por entredentes, uma cusparada para o quintalejo e ergueu-se.

- Vou pôr os manos em serviço e se eu, com eles, não descobrir, também a polícia não descobre, isso juro!

Afastou a cortina e bradou:

- Ritinha, que é da cana? Vosmecê não bebe?

- Não.

- Pois fique descansado, nhozinho, que eu vou trabalhar com gosto. Hoje mesmo começo, hoje é bom dia, que é domingo. É verdade que eu tenho um negocinho nas corridas, mas não há dúvida: primeiro a minha gente. Mas que maluquice de Nhá Violante! Uma moça bonita, que podia fazer um casamento importante...

"Mas é essa malandragem que anda por aí solta, desencaminhando as moças. A cidade está perdida, só mesmo um chefe teso, que mande varrer tudo, a torto e a direito. É uma pelintragem que faz medo: uns pindaíbas, sem lasca de guita, muito engravatados, batendo a calçada e fazendo estrupícios. E por isso que há tanta perdição por aí.

"Muitas vezes vosmecê lê nos jamais que um homem enfiou uma língua de ferro no bucho do outro, à toa. À toa?! pois sim, trate de indagar e há de ver. Só um maluco mata por matar, há sempre uma razão. Eu mesmo já tenho estado para esfriar mais de um, por causa de desaforos, não com a Ritinha, qu'isso, então, era logo; por causa de outras coisas. Foi algum vagabundo que virou a cabeça de Nhá Violante, mocinha nova, sem experiência do mundo... - Suspirou: Eu, de quem tenho mais pena é da velha... Tão boa, coitada! Uma santa!"

- Passou toda noite em claro, chorando.

- Imagino! Eu sei como ela é para vosmecês! Eh! quando um dos filhos tinha qualquer coisa, uma febrinha de nada... Nossa Senhora! ficava que até fazia pena, quanto mais com isso agora. Eu nem sei, coitada!

Paulo pôs-se de pé.

- Então estamos ajustados? Vais trabalhar?

- Hoje mesmo, já não cuido de outra coisa. Vá vosmecê tocando de cima qu'eu espero cá embaixo.

- Achas que devo voltar à polícia?

- Acho. Vosmecê não conhece algum delegado?

- Não.

- Mas isso é fácil. Vosmecê arranja um cartão lá no jornal e vai mesmo ao chefe. E deixe correr o barco. - Ritinha, já íntima, entrou com a garrafa e dois cálices. Mamede, porém, foi logo dizendo: Nhozinho não bebe, - e serviu-se, pigarreando grosso, com o cálice entre os dedos. Virou de um trago, caramunhando, olhos semicerrados.

- Então até logo, Mamede. Ainda vou dar uns passos por aí.

O mulato deu um safanão às calças:

- Pois é: vosmecê faz por seu lado qu'eu vou mexendo cá no meu mundo. E vou trabalhar com gente direita - pode ficar certo de que se eu farejar o rasto, trago o mano nos grampos. Vá descansado.

E estendeu a mão ao estudante. Ritinha, sempre lânguida, encostada à cômoda, olhava-o com os seus grandes olhos negros, aveludados que, por vezes, pareciam adormecer à sombra dos longos cílios. Paulo adiantou-se para falar-lhe com reserva e ela, como a custo, levantou o braço e entregou-lhe a mão, passivamente, num abandono. Tomou o chapéu e, já no quintalejo, sob a folhagem lustrosa, disse:

- Então até logo, Mamede; e trabalha.

- Não precisa pedir, nhozinho: eu entro nisso com o coração. - Paulo, porém, atraía-o e, quando o viu fora, longe das vistas de Ritinha, entre os velhos caixotes de plantas, perguntou-lhe em segredo: Estás armado? - O mulato recuou, como ofendido; o estudante, porém, já com a mão no bolso, continuou: Sem cerimônia, meu velho; entre nós deve haver franqueza. Eu posso passar algum.

- Que é isso, nhozinho! Então eu vou receber dinheiro de vosmecê?! Isso não! não senhor!

- Tu precisas, Mamede.

- Ora quê! Dinheiro arranja-se.

- Qual arranja-se, - insistiu o rapaz, tirando do bolso algumas notas amarfanhadas.

O mulato sorria, meio vexado; e a voz fresca de Ritinha recomeçou languidamente a modinha sertaneja. O estudante dobrou uma nota e meteu-a, à força, na mão calosa do mulato, que recuava, sorrindo.

- Que é isso nhozinho! Tenha paciência, isso não.

- Ora... - Afastou-se e, voltando-se da cancela, recomendou: E trabalha! Vamos ver se conseguimos descobrir o miserável.

- Não há dúvida. Eu saio já; é só o tempo de botar alguma coisa na boca.

Paulo acenou um adeus, e o mulato, agarrado à cerca, sorrindo, inclinou-se, recomendando:

- Lembranças, nhozinho.

5

Descendo, sempre alvejado pelos olhares curiosos da gente da estalagem, o estudante sentia-se vexado. Dir-se-ia que aquele povo simples, olhando-o e cochichando, comentava, como se o conhecesse, o segredo que ali o levara. Precipitou os passos e, achando-se na rua, atirou-se a um bonde que passava sem saber ao certo o rumo que devia seguir.

Sentou-se, muito encolhido, e logo o tipo sensual de Ritinha surgia-lhe como uma visão. Onde a teria o Mamede encontrado, tão nova, tão linda, bem diferente da Libânia, sua antiga companheira, uma bexigosa relaxada, que andava em mangas de camisa, tresandando a sarro, cuspilhando nojosamente, sempre em rusgas com a vizinhança da casa da Rua do Conde? Invejou o mulato. Devia ser delicioso viver com uma rapariguinha como aquela, vê-la, senti-la sempre, dobrando-a a um ligeiro aceno, sujeitando-a com um ardente olhar, como uma humilde, submissa escrava do amor.

Tão distraído estava com os pensamentos lúbricos que não deu pelo condutor - foi necessário que ele lhe tocasse o braço; voltou-se e, precipitadamente, desculpando-se, meteu a mão no bolso e pagou.

Depois de uma curta parada, de muda, diante da estação, o bonde seguiu rápido, ladeira abaixo, aos trancos.

Quando avistou os Arcos o estudante perguntou a si mesmo: "Mas para onde vou eu?" Não sabia, deixava-se levar ao acaso, sem indagar. Talvez encontrasse Violante.

No Largo da Lapa esteve para descer vendo uma fila de bondes engatados que seguiam para Botafogo. Sim, naquele bairro é que ela devia estar, num chalezinho risonho, entre flores. Àquela hora dormia ainda, decerto, sobre as sedas macias do leito infame com a cabeça no braço do amante, nua e fatigada. E, lá em casa, consumida de angústia, a pobre velha andava pelos cantos, como uma trapeira, reunindo as lembranças: aqui um veludo que apertara as tranças da ingrata, um livro desmantelado, um lenço, um cromo, coisas que falavam dela, que conservavam a impressão dos seus dedos ou o aroma da sua carne. Pobre velha!

E foi com os olhos aguados que ele viu o Passeio, as grandes árvores, os tabuleiros verdes e aquela gente que ia para ali respirar a brisa saturada do aroma da folhagem ou a que vinha do mar, cheirando a salsugem.

Às janelas das casas, criadas batiam tapetes, levantando uma densa poeira. Das portas dalguns prédios corriam lençóis d'água negra para a calçada. Carros rodavam, tirados por trotadores de raça, cruzando-se com os apressados tílburis; passavam carroças, rangendo pesadamente e uma diligência, velha e imunda, desconjuntada, subia lenta, com oscilações, puxada por dois muares, atarracada de legumes que tufavam em grandes cestos, feixes de canas, jacás de galinhas, caixotes e, por entre a carga, agarrados aos balaustres, ou sentados em sacas, homens descalços, em mangas de camisa, oscilando com os solavancos da traquitana, que ameaçava desmanchar-se na primeira cova em que entrasse as suas rodas; mas lá ia, e as chicotadas sucediam-se no lombo dos animais que arrancavam com esforço.

Quando o bonde chegou à praia de Santa Luzia, Paulo comoveu-se vendo as árvores, que fazem uma cerrada abóbada, coando a luz pelas abertas da folhagem, ao longo da rua, larga e direita, que enfrenta com a Misericórdia.

No terreno que desce para a praia redes secavam, estendidas em espeques; barcos, pintados de fresco, reluziam, emborcados; uma carena apodrecia ao sol, como um esqueleto monstruoso. Pescadores teciam malhas, outros remendavam velas que o forte vento do largo estraçalhara. E a vaga rumorejava, refervia na praia por entre as pedras aveludadas de sargaço.

Longe estacionavam os navios. Um rebocador cortava as águas lisas, levantando a mareta na qual jogavam as pirogas esguias dos pescadores praieiros. Roupas grossas secavam em cordas, panejando com o vento da barra. Gaivotas voavam ou, pousadas n'água, apareciam e desapareciam, com a arfadura do mar.

Voltando-se, porém, deu com o frontão da Misericórdia - a escadada, a grande porta, larga e alta, que levava à sala do banco. Havia gente, enfermos pobres que iam à consulta, outros à espera de remédios. Alguns, sentados nos degraus da escada, abatidos, melancólicos, a cabeça entre os joelhos, pareciam cochilar; mulheres com crianças ao colo, velhos subindo tremulamente os degraus e uma negra que descia, de cabeça alta, olhos escuros, tateando cautelosamente, às cegas. Um tílburi estacionava embaixo.

Paulo respirou angustiado. Era dali que ele devia sair para a vida, depois de praticar à beira dos leitos de sofrimento, esvurmando pústulas, talhando carnes, recebendo nas mãos a vasa imunda das podridões humanas, acudindo à agonia de um, ao estertor de outro, subjugando um delirante, animando um tímido, levando o cordial a um abatido, com o termômetro de axila em axila, a tomar a temperatura de corpos queimados pela febre, túmidos de inchaços ou descarnados pela tuberculose.

Era aquela estrumeira humana que fazia vicejar a flor sempre bela da ciência; era aquela infecção que preparava a saúde. Aqueles corpos eram como compêndios nos quais, logo que esmoreciam, mestres e alunos, abrindo-os a golpes, estudavam na morte os segredos da vida misteriosa. Dali devia ele levar o diploma desejado. Era daquela imensa alcaçova, espécie de presídio da Morte, que ele devia tirar o pão, o agasalho, o conforto, a riqueza e a glória de amanhã...

Mas o edifício da Escola apareceu e Paulo, pensando na irmã, receoso de ver um dos colegas, sem lembrar-se de que era domingo, baixou os olhos e só descansou quando o bonde deu volta para o Largo do Moura.

Um brado chamou-lhe a atenção: partira de um beco, em cujo fundo, entaipado por uma muralha, abria-se o largo portão do Arsenal de Guerra. A esquerda, ficava o velho quartel, com o muro baixo, apuado de baionetas simbólicas, entre as quais, de espaço a espaço, desta cavam-se pequenos canhões e, em frente, todo de branco mármore, avultava o sacelo fúnebre do Necrotério.

Os passageiros descobriram-se respeitosamente. Uma velha mulher, baixando a cabeça, fez o sinal-da-cruz; ele lançou os olhos à capelinha e viu um cadáver ocupando uma das primeiras mesas.

Por uma rápida associação de idéias lembrou-se da Roda e já o bonde ia longe, através do largo, por onde andavam lavadeiras, quando ele se voltou para lançar um derradeiro olhar à capelinha.

A Roda... e foi pensando nos dois abrigos que se ligam pela mesma misericórdia - um recolhendo os inocentes anônimos, repulsas da miséria e do crime, outro dando guarida aos mortos desprezados ou desconhecidos. São como duas conchas de uma balança - em uma a creche, em outra o esquife - e a mesma Senhora da Piedade, que velava à cabeceira dos que não haviam contemplado a luz da última hora, que haviam expirado em devesas escuras, vasquejando prostrados pelo homicida ou no fundo das águas, presidia o dormitório dos desamparados, acalentando os pequenitos, cujos vagidos não acham o carinho do colo e dos lábios maternais.

Tão preocupado seguia que só levantou os olhos na Praça 15 de Novembro, diante da estátua de Osório que, em atitude enérgica, contendo o ginete, parece esperar os esquadrões gaúchos para arremeter com a fúria que o tornou lendário.

Em várias igrejas os sinos tintinabulavam e um carrilhão ressoava uma ária profana como se os próprios templos, esquecidos do misticismo, despegados do mistério, viessem, com desplante, confabular na orgia humana, repetindo, com as vozes dos seus campanários, os estribilhos devassos.

Desceu diante do Carceller e esteve um momento irresoluto, a olhar os que passavam - uns de volta do mercado, com as compras, outros a caminho das igrejas em formigar rumoroso.

Para onde iria? Pôs-se a olhar as casas, os bondes que chegavam, os vendedores de frutas que arranjavam as suas cestas. De repente sentiu-se agarrado - voltou-se. Era o Bruno.

- Que é isto?! - O "decadente" estava amarfanhado, d'olhos vermelhos e esmorecidos; um hálito quente, nidoroso, saía-lhe da boca seca. O colarinho estava todo esmagado, em gelhas, a gravata espocava. - Ah! meu amigo, que noite! Vamos tomar alguma coisa. - E, passando-lhe um braço pelas costas, lá o foi levando para o botequim. Sentou-se, tirou o chapéu. Estava com os cabelos empastados como se houvesse saído dum banho. - Dois cognacs! - pediu e, inclinando-se, com os cotovelos na mesa, exclamou de novo: Que noite, Paulo!

- Mas donde vem você?

- Imagina! Ontem, depois que saí da revisão, bati para os Fenianos, com o Brites.

- Com o Brites?

- Então? Ah! pensas que o Brites é sempre aquele mazorro que prega a moral de Corate? Fora da filosofia é um pândego de marca. Fizemos o diabo! Não imaginas. Encontrei lá uma rapariga, a Lívia, conheces? uma morena, que tem um sinal no canto da boca... Ora! Uma que esteve com o Bastos!...

- Não conheço.

- Ora, não conheces!...

- Palavra!

- Conheces! - afirmou o Bruno nervoso e, depois de haver virado o cognac, continuou: Dancei com ela e... coisas... tu sabes. - E. com os olhos lampejantes: quase viro aquilo tudo! Se não fosse o Brites... não sei. Tu sabes, eu não sou mole e com alguma coisa na cabeça não vejo nada diante de mim. Pois um sujeito, um tipo, porque me viu com a Lívia, e entendeu que me devia tomar à sua conta. Eu... ahn!

- Brigaste?

- Não, não briguei porque, tu sabes, aparecem sempre pacificadores, os tais da ordem. Mas que mulher, Paulo! Venho de lá agora. Não imaginas!

- E para onde vais?

- Vou descansar um bocado. Hoje tenho folga. E tu?

- Estou de serviço.

- Pois é verdade... - O Bruno, porém, lançou um olhar inteligente ao amigo e, com malícia, sorrindo: Tu também, aqui entre nós, não passaste a noite em oratório... Estás com uma cara!...

Paulo estremeceu e mirou-se ao espelho achando-se pálido, desfigurado.

- Não, passei a noite em casa.

- De quem?

- Na minha.

- Pois sim. Todos vocês são uns santos, eu é que sou o debochado, porque conto o que faço. Eu devia fazer como vocês - não há como a hipocrisia. O Brites também é um homem sério, filósofo, abstinente... Vai vê-lo nos Fenianos.

- Mas tu nunca me viste em bailes.

- Mas há outras coisas e... piores. Enfim, isso não é da minha conta. E vou-me embora que estou morto. Imagina, depois daquele trabalho estúpido que tivemos ontem, um deboche até às seis... Ainda não preguei olho: também caio agora na cama e vou até às quatro. Adeus.

Chamou o caixeiro, pagou e saíram. Justamente havia um bonde de Riachuelo. O Bruno despediu-se e precipitou-se esbaforido.

De novo só, recaindo na preocupação, Paulo resolveu chegar à polícia para saber alguma coisa: talvez já estivessem na pista do raptor. Teve uma repentina decisão, partindo imediatamente para a Rua do Ouvidor. A esquina, porém, deteve-se indeciso:

"Não, não podiam ter ainda encontrado o homem. Certamente a diligencia começara de manhã e não era assim tão fácil descobrir um criminoso que, sem dúvida, procurara, com tempo, refúgio seguro para gozar as primícias de um corpo jovem e formoso. Iria à noite saber. Conversaria com o delegado ou com o próprio chefe." Demais, sentia-se fatigado como se, só então, lhe pesasse o cansaço da grande agitação da véspera: as pernas vergavam-se-lhe, ardiam-lhe os pés e um suor viscoso untava-lhe todo o corpo; tinha uma sensação de febre, pulso agitado, boca ressecada e saburrosa. Saía um bonde da Rua da América, tomou-o.

Até a casa foi numa inércia mole, como adormecido, sem sentir a viagem, pensando vagamente em coisas diversas: ora nos próximos exames, ora na mãe, na irmã ou em Idalina, uma loura a quem fazia versos e que o esperava à janela, com flores e bilhetinhos, tresandando a essências reles. Outra como Violante...

Repentinamente, porém, numa mutação introspectiva, viu o Bruno e o Brites, afogueados, girando como dois convulsionários, agarrados a mulheres. Teve uma súbita irritação, uma revolta surda contra a imaginação desvairada - queria apenas cuidar da irmã e o seu espírito cambiava em ziguezagues, avançando, retrocedendo, ora em sonhos, ora em recordações. Mas já o bonde ia perto da casa. Estavam vizinhos à janela e ele descobriu Felícia conversando com uma mulher gorda que comprava a um quitandeiro. O sangue ferveu-lhe no coração e seus olhos cravaram-se, com furor, na velha negra.

Já no estribo, sem corresponder aos cumprimentos dos vizinhos, fitava-a duramente. Quando ela o viu saltar, despediu-se da mulher, à pressa. Ele amiudou os passos para alcançá-la e, à porta, enquanto ela metia a mão pelo postigo para dar volta à taramela, interpelou-a em voz surda e colérica:

- Já foste bater língua pela vizinhança, Felícia!...

- Eu?! Eu não, nhozinho. Minha boca não se abriu pra falar em Nhá Violante. Eu estava falando dumas costuras.

Entraram e Paulo irrompeu explodindo:

- Pois eu não quero conversas com vizinhos. Não tenho nada com essa corja.

A negra foi-se resmungando e Dona Júlia, que ouvira a voz do filho, apareceu arrastando os passos, ansiosa e abatida como se saísse de longa enfermidade; e perguntou:

- Então, Paulo?

- Falei ao Mamede.

- E a polícia?

- Qual polícia! - Atirou o chapéu para cima da mesa e sentou-se. Olhe, estou aqui que não posso comigo, já não tenho pernas e a senhora... nem como coisa. Eu posso morrer porque mamãe, apesar de tudo, ainda há de ter mais pena de Violante. É assim mesmo; - e amuou.

- Mas que é isso agora? Que te fiz eu? Pois então não hei de pensar nela? - Já os seus olhos iam-se alagando e, dirigindo-se a Deus, a pobre velha pôs-se a dizer: Eu não mereço isto, meu Senhor! não mereço. Se eu havia de sofrer assim, por que não me levastes em lugar dele? Que fico fazendo no mundo, se os meus próprios filhos não me estimam? - Pôs-se de pé, grossas lágrimas rolaram-lhe dos olhos.

- Eu não mereço isto!

Paulo teve um movimento frenético e, sem dizer palavra, encaminhou-se para o quarto. Dona Júlia, prostrada, ficou soluçando na sala, baixinho, para não incomodá-lo. Ele, porém, reaparecendo em mangas de camisa, esbravejou:

- Que não se podia ter um segredo naquela casa que a senhora Dona Felícia não fosse logo bater boca na vizinhança. Vira-a de prosa com a tal Dona Lucinda, a maior enredadeira do quarteirão, com certeza a contar que Violante saíra, que ele fora à polícia, tudo, enfim.

E, aos berros, para que a negra ouvisse na cozinha:

- Pois fique sabendo que não quero trela com vizinho. Viva cada um em sua casa, com as suas mazelas. Que tem Dona Lucinda com o que se passa aqui? É melhor que cuide do filho, um vagabundo, que vive com a molecagem, a assaltar os bondes e a apedrejar quintais. Súcia!

Dona Júlia, levantando a cabeça, exclamou:

- E eu não quero ficar mais nesta casa, vou procurar um canto por aí. Aqui não fico mais. Não estou para essa gente vir perguntar por Violante. Eu sei... Se não a virem hoje começam logo com recadinhos: Que tem? por que não aparece? se está doente. Eu já disse à Felícia que respondesse a todos - que ela foi passar uns dias no Engenho Novo, com o padrinho. Só assim...

- Pelo que ouço, a senhora entende que somos obrigados a dar satisfação da nossa vida à vizinhança... Por quê? Não faltava mais nada! Não é por meu gosto que a senhora conversa com essa gente. Quando nos mudamos para aqui eu lhe disse, lembre-se bem: nada de relações com vizinhos, vamos viver independentes: "Bom dia, Boa noite" e mais nada, senão começam os presentinhos, as visitas e os empréstimos de coisas e, um dia, metem-se-nos em casa. Dito e feito. Eu não posso andar à minha vontade porque, volta e meia, está aí gente à porta pedindo uma coisa e outra.

- Mas que queres, Paulo? eu nem à janela chego. Quem fez amizade por aí foi Violante; eu estou sempre metida aqui dentro, cuidando do meu serviço. Elas vêm aí, que hei de fazer?

- Pensam que não sei que me chamam de orgulhoso? Pois sou, sou mesmo! Não quero saber de amizades, vivo muito bem só. Está aí em que deram as amizades. Quer mudar-se?

- Decerto. Não tenho cara para ficar aqui.

- Nem eu. Mas eu sei que, onde quer que estejamos, há de ser sempre a mesma coisa: conversas, visitas...

- Comigo!? - exclamou a velha espalmando a mão no peito.

- Não, comigo...

- Estás enganado. Eu, tenho o meu descanso, pouco me importo com o mundo.

Houve um silêncio. Paulo passeava nervosamente pela sala, arrepelando os cabelos, arrependido de haver magoado a boa velha, que ainda os soluços agitavam como os últimos relâmpagos de uma tormenta. De repente, estacando, perguntou:

- A senhora já almoçou?

- Eu tenho lá fome...! Tomei uma xícara de café.

Calaram-se.

Comovido, apuado pelo remorso, Paulo sentou-se perto dela, e meigo, adormecendo a cólera que o agitara, pôs-se a falar da mudança:

"Que não podiam continuar naquela casa, mesmo por ela, que havia de estar constantemente a lembrar-se de Violante."

- Ah! meu filho, ainda me parece um sonho. Há pouco estava lá dentro na sala de jantar quando ouvi rumor no quarto dela. E estremeci toda, fiquei fria, gelada e deu-me uma pancada no coração, tão forte que pensei que ia morrer. Fui devagarinho e espiei. - Suspirou e calou-se, dizendo depois duma pausa angustiosa: Como é que uma filha faz uma coisa assim? E não há lei?! Pois então um malvado seduz uma moça, atira-a na desgraça e fica muito bem sem um castigo? - Elevou então os olhos e, de mãos postas, erguendo-se tremulamente, tomou Deus por juiz: Ah! mas quem faz paga... Deus é grande! Deus não dorme. Só se eu não a criei nestes peitos com o meu sangue.

Paulo passeava sem dizer palavra, enternecido com aquelas doloridas queixas.

Um sino dobrou lentamente e Dona Júlia, agarrando-se aos braços da cadeira, foi derreando o corpo, ajoelhou-se e ficou a rezar. Nova badalada rolou e um galo cantou no fundo do quintal.

Era a hora maior do sol, a hora do esplendor máximo. Como que a natureza quedava em humilhação estática, adorando silenciosamente o grande astro a pino, na glória de toda a sua magnitude, dominando d'alto a terra que se prostrava como uma fêmea que se agacha sentindo o peso do macho sobre o seu corpo vibrante de emoção lúbrica.

O silêncio dilatava-se abafando todos os rumores como se a vida fosse, aos poucos, parando - só um piano, na vizinhança, zaragalhava em notas fanhas, que discordavam do grande e solene arroubo daquele luminoso espasmo.

Paulo pisava de leve como para não interromper a oração da mãe, mas bateram à porta apressadamente. Dona Júlia ergueu-se e saiu em pontas de pés, ele meteu-se no quarto, revoltado e, quando Felícia acudiu para ver quem era, entreabriu a porta e ficou à escuta, retorcendo nervosamente o buço. Era um pequeno da vizinhança que pedia o jornal emprestado.

Felícia fechou a janela enquanto ia buscar a folha e, quando tornou, disse amuadamente: "que tinha ido passar uns dias fora, no Engenho Novo, com o padrinho."

Tratava-se de Violante - era a curiosidade da vizinhança que começava a aguçar-se. Paulo estremeceu de furor e pôs-se a resmungar contra a corja e, quando a negra fechou a janela, rompeu do quarto. colérico:

- Quem é?

- É o filho da viúva, nhonhô.

- Que viúva?

- A mãe de Dona Isaura, aquela mocinha bexigosa.

- Veio para indagar?...

- Não, senhor; veio pedir o jornal. Perguntou por Nhá Violante, mas eu respondi como sinhá mandou: Que ela tinha ido passar uns dias no Engenho Novo, com o padrinho.

E foi-se pelo corredor, como a fugir à fúria do estudante que a seguia, sempre a invectivar aquela súcia de bisbilhoteiros. Dona Júlia, na sala de jantar, encostada à mesa, esperava a negra; vendo, porém, o filho não teve ânimo de fazer a pergunta que já lhe estava nos lábios e pôs-se a disfarçar, arranjando uns embrulhos. Paulo adiantou-se:

- Vê a senhora? Já querem saber. Até parece que essa gente fareja. Só porque Violante não apareceu hoje já estão todos de orelha em pé. É um horror! Às vezes tenho ímpeto de responder com uma grosseria. Pois não! é demais! Não vou à casa de ninguém, vivo aqui metido, nem à janela chego e estou sempre com a casa cheia. A amizade é um pretexto, o que eles querem é ver como vivemos, que comemos, como nos arranjamos e lá se vai a nossa vida comentada, discutida de casa em casa como um trapo filado e estraçalhado por uma matilha de cães. Não quero saber de relações, dispenso-as. Amanhã, bem cedo, ponho-me na rua procurando casa e hei de achar, seja onde for.

Dona Júlia concordou passivamente:

- É mesmo.

- Quando mamãe está doente nem aqui aparecem. Muito bons para os pagodes e para a maledicência. Não quero! Se não fosse o meu trabalho no jornal eu procurava casa bem longe, num arrabalde, para livrar-me dos tais conhecidos. Infelizmente não posso: estou preso à cidade.

- Mas há tantas ruas...

Ele não respondeu. De repente, chegando à porta que levava à cozinha, chamou a negra. Felícia apareceu, de mangas arregaçadas, enxugando o braço ao avental.

- Como é o tipo do soldado? perguntou.

A negra baixou os olhos e ficou um momento imóvel, pensativa. como a recordar as feições do homem que ela tantas vezes vira na calçada fronteira, rente ao muro, indo e vindo, com os olhos em Violante. Dona Júlia voltou-se interessada encarando a negra que, por fim titubeou:

- É um moço assim como vosmecê, mais cheio de corpo. - Logo, porém, arrependida, como para o livrar de suspeitas, afirmou: Mas não foi ele não, nhonhô, não foi. Ind'agorinha mesmo, pouco antes de vosmecê chegar, ele passou por aqui, mais outro, e lá foram para os lados da Rua da América.

Paulo deu volta coçando a cabeça e Dona Júlia, perdida aquela esperança, sentou-se à mesa, raspando distraidamente umas migas de pão.

Os dois não achavam palavra. Paulo detinha-se, olhando as paisagens cinzentas do papel da sala, passava os dedos seguindo os contornos dos cães, dos caçadores que, em desabalada corrida, levando os cavalos a toda a rédea, seguiam um grande cervo ramalhudo. Súbito um som fanhoso rompeu o silêncio - era um realejo que soava na rua, perto, tristemente, vagarosamente.

Dona Júlia levantou a cabeça e ficou imóvel, a ouvir. Paulo voltou-se também para a porta, olhou depois para o quarto de Violante. Logo, porém, vendo a mãe debruçar-se sobre a mesa, sacudida por um pranto nervoso, arrojou-se para a sala, revoltado contra aquela música pecadora que despertava tantas saudades, toda a sua infância e a dela...

Ah! se Violante ali estivesse já andaria, como uma criança, a fazer voltas de dança rindo às gargalhadas. Era doida por aquela música fanhosa, chegava até a mandar dinheiro ao homem para que a prolongasse monotonamente e a rir, muitas vezes descalça, cabelos soltos, trincando fatias de pão, volteava, volteava, indo, não raro, buscar Felícia à cozinha, quando não arrastava a mãe que com o seu enorme corpo, as pernas muito inchadas, encolhia-se toda, tomada de riso, a agarrar-se aos móveis para opor-se àquela maluca.

E o realejo gemia. Era o homem que a chamava como se também a quisesse arrancar da miséria. E como que o instrumento sentia, porque se ia tornando cada vez mais triste, mais triste, na rua clara e silente, toda em sol. Faltava o riso de Violante, faltava a sua linda mocidade alegre.

De repente Dona Júlia levantou a cabeça e, passando a mão pelo rosto, desfeito e molhado, disse arrancadamente, em arquejo doloroso:

- Não! Não fico mais aqui... Não posso!

E o realejo tristonho, depois duma pausa, recomeçou a ária melancólica.

6

Resolvido a mudar-se, Paulo saiu na segunda-feira muito cedo, e, no botequim da Central, mexendo lentamente o seu café, recorreu aos anúncios do Jornal, tomando notas em um quarto de papel. Decidiu-se por duas casas "pequenas, pintadas e forradas de novo": uma na Rua dos Inválidos, outra no cais da Glória.

Foi diretamente à primeira. Era uma casinha atarracada, espremida entre dois sobrados arcaicos, sombria e triste. No telhado verdejavam largas folhas de fumo, descaídas sobre as calhas ferrugentas. Abrindo-a a custo, empurrou a porta, pesada e perra, e entrou como em um jazigo. Tresandava a tintas e, nas paredes de uma área interior, cujo ladrilho eslava todo fendido, havia escaras de limo. O quintalejo, atravancado de tábuas e de ripas, com uma puída escada aposta ao muro, tinha um monte de lixo a um canto e tortulhos gordos pelo chão úmido; e o ar escasso, que circulava por aquelas salas lôbregas, por aquelas alcovas escuras e acanhadas, era frio e tresandava o mofo.

Paulo fez um esgar de enjôo e tomou com a chave ao taverneiro vizinho, alegando falta de cômodos para a sua família. Seguiu a pé para o cais da Glória. Dava gosto andar com o frescor da manhã suave; e a distância era curta.

Foi indo devagar, enlevado na beleza de tão doce manhã, clara e tépida, concorrida de vozes alegres, sons festivos, movimento, todas as expansões da vida feliz. De repente, porém, deu com os olhos em uma mocinha à janela de uma casa. Lembrou-se da irmã e, assomado em súbito furor, estugou os passos, remordendo-se em surda revolta contra o mundo, contra todos e tudo - a irmã, que o forçava àqueles incômodos, que o expunha à irrisão; os vizinhos, os companheiros de trabalho, os colegas, todos... tudo...

Sentia-se mesquinho, como se fosse o único desgraçado no mundo; os próprios mendigos, que esmolavam, sorriam. Só ele andava com a alma denegrida, com o coração pesado, arrastando aquela vergonha.

Falava baixinho, em solilóquio, e, se descobria alguém às janelas, retraía-se, disfarçava procurando cigarros nos bolsos, e seguia; logo adiante, porém, reentrava nos cuidados sombrios.

Quando chegou ao Largo da Lapa, viu um quintanista, o Albergaria, parado à esquina, lendo um jornal, à espera do bonde da Misericórdia. Evitou-o, atravessando o largo, d'olhos altos, com medo de que ele o chamasse.

Foi timidez, a princípio, logo, porém, transformou-se em indignação: carregou o sobrecenho e pôs-se a murmurar: "Mas, afinal, que culpa tenho eu? Sou, então, responsável pelas loucuras de minha irmã? Se eu tivesse um irmão assassino ou ladrão, havia de responder pelos crimes que ele cometesse? não. Então por que me hei de vexar do que fez Violante? Outras têm feito o mesmo e os parentes andam por aí muito calmos, muito empertigados, com mais orgulho, talvez, e até com prestígio. E minha mãe, coitada! que culpa tem ela?" Outras idéias, porém afugentaram a lembrança da irmã perdida. Pôs-se a recordar, com arrependimento, a cena da véspera com a mãe: "Eu sou assim mesmo, mas ela bem sabe que não é por maldade que faço essas coisas. Fico nervoso, irrito-me... É gênio..."

Ia fazendo a volta. Cigarras chirriavam nas copas das árvores do Passeio. Súbito a vista alargou-se, desafrontada e risonha, e o morro da Glória apareceu com a sua igreja branca, entre palmeiras. O casario alvejava à sombra das árvores frondosas, plantadas, talvez, quem sabe! pelo ermitão da lenda. A beira da praia uma chaminé alta avultava, esguia como um obelisco, e o mar calmo, espelhento, de um brilho quente, tremia ao sol, em arrepios claros como aço em fusão.

À entrada da barra, os fortes eram duas longínquas manchas cinzentas. Villegaignon resplandecia solitária, e cerúleas, como fechando o horizonte, as montanhas, polvilhadas d'ouro, avultavam em muralha imensa com ameias e torres, cintando a cidade. Navios ancorados, negros, com toldos rasos, pareciam dormir, como grandes sáurios; num deles as velas subiam abrindo-se ao sol. Lanchas iam e vinham, cruzando-se que nem formigas, canoas zimbravam na mareta levantada pelas hélices, e uma draga muito alta, isolada, parecia um louva-a-deus colossal.

Voltou-se para a esquerda - lá estava o terraço do Passeio, com gente debruçada à muralha a ver os banhistas na praia, ou nadando a fortes braçadas e, mais longe, um zimbório, a ponta do Arsenal, o Castelo com o seu mosteiro. O que, porém, o deteve em êxtase foi o espetáculo alegre das gaivotas voando, adejando, pousando n'água, balouçando-se maciamente na onda à espera do peixe e, nos postes fincados, restos da antiga ponte, destruída pelas grandes ressacas, outras se iam ajuntando e, vistas de longe, alvas, imóveis, eram como uma vegetação de cogumelos brancos pululando na podridão dos lenhos salitrados.

A casa anunciada ficava ao lado do jardim de um chalé discreto, que se escondia entre folhagem, com mistério; mesmo diante da porta havia uma árvore, com o tronco protegido por um embrechado de madeira. A chave estava na casa contígua, e foi uma mulher loura, gorda, de fisionomia impassível de boneca, quem lha deu depois de o examinar com um olhar fatigado e vazio.

Paulo simpatizou com a casa, vendo-a em tão sossegado recanto, com poucos vizinhos, olhando para o mar vasto e para o céu largo.

Entrou. Estava limpa e era alegre, e se não havia grande claridade, a luz era bastante para a vida e para o trabalho.

Ao fundo, no quintalejo seco, cresciam roseiras anêmicas, e uma esfumada banqueta acompanhava o muro, sobre o qual um sabugueiro do jardim vizinho derramava a ramaria ramilhetada de florinhas miúdas.

Paulo distribuiu os aposentos - a sua alcova na sala de visitas; a da sala de jantar para a mãe; um pequeno quarto com janela sobre a área, para Felícia, e ainda sobrava um, amplo e claro, com um papel novo de ramagens. Deteve-se diante dele a olhar, meneando com a cabeça desconsoladamente.

Pensando na irmã, lembrou-se de que não encontrara nos jornais a mais ligeira referência ao caso - lera-os todos: nem palavra. Era evidente a indiferença do delegado. Se ele houvesse tomado uma nota ligeira, a reportagem, que tudo esmerilha, não a teria perdido, e bordaria o drama com os recamos costumeiros e muita sensualidade, apelando, em nome da moral ofendida, para a lei que ressalva a honra e obriga os devassos a repararem as faltas.

Revoltou-se: "Vão ver que o miserável conhece o canalha... Talvez até o proteja... Súcia! É assim mesmo." E, no seu ódio, desejava que o escândalo houvesse irrompido, alastrando o noticiário com pormenores sitis, informes íntimos: o retrato de Violante, o de Dona Júlia, o dele e elogios, muito literários, à honestidade da família exemplar, referências ao pai, um herói da Pátria e a narração da sua trabalhosa e angustiada noite, por chuva e vento, à procura da seduzida.

"Qual! tivesse eu fortuna... E assim mesmo."

Por fim, nervoso, fincando a bengala no soalho, voltou-se e foi examinar a cozinha. Achou-a limpa, com um fogão novo, pia forrada de zinco, e prateleiras.

"Ora! que se arranje. Eu é que não hei de estar a amofinar-me por causa dela. Não faltava mais nada..." E sentiu-se aliviado com o silêncio dos jornais. "Talvez que o delegado houvesse ocultado a notícia por delicadeza, em atenção a ser ele da imprensa... Caminhou para a sala, Vagaroso, pensativo, passando a mão pelas paredes. Esteve um momento indeciso, batendo de leve com a ponta do pé, a pensar na mudança. Súbito, com egoísmo, exclamou: "Melhor! viveremos mais tranqüilos."

Saiu, fechou a porta e ia bater à casa da vizinha, quando viu vir um comboio de bondes. Sentiu inexplicável vexame achando-se ali sozinho, diante daquela multidão que descia, e para que os passageiros não o vissem de face, deu as costas à rua e ficou-se a contemplar a casa, a olhar os escritos até que os bondes passaram.

Bateu à porta da vizinha e a loura, reaparecendo, disse-lhe, numa aravia guaiada - "que a casa estivera alugada por cem mil-réis, mas a senhoria, por causa das obras que fizera, pedia então cento e vinte". Agradeceu as informações e seguiu.

Numa casa da esquina, com o cavalete junto à janela, um homem desenhava o retrato de uma criança, e Paulo, devassando, de relance, o interior, viu, pelas paredes, esboços a crayon, pequenas telas de gênero e uma paisagem.

A senhoria morava na Rua do Lavradio. Caminhou com pressa, receoso de que alguém o precedesse e, como o seu alfaiate prestava-se e dar-lhe a fiança, tratou a casa e, tornando à Rua Senador Pompeu, já levava no bolso o recibo das andorinhas que, no dia seguinte, de manhã, deviam fazer a mudança.

Foi com apreensiva tristeza que Dona Júlia ouviu a descrição minuciosa da nova residência, no cais da Glória, tão longe! Ela, que tanto insistira pela mudança, sentia-se, então, agarrada à casa. Parecia-lhe que se a deixasse nunca mais tornaria a ver a filha e, não sem timidez, contando com a revolta do filho, perguntou:

- E se Violante voltar... Como há de ser?

Paulo encarou-a mudo, brincando com as chaves e, como se não houvesse entendido a pergunta, repetiu em tom irônico:

- Se Violante voltar...

- Sim, confirmou a velha.

Houve um silêncio. Paulo por fim, encolhendo os ombros, esticando o beiço, sorriu desdenhoso:

- Mamãe ainda espera que Violante volte...

- Como não, meu filho? Onde há de ela ficar?

- Ora, mamãe. Cravando, então, os olhos na velha, disse resolutamente: Quem tem boca vai a Roma. Não saísse. Nós é que não podemos ficar aqui perseguidos pela crítica implacável dessa vizinhança bisbilhoteira até que a senhora Dona Violante se lembre de voltar.

Dona Júlia sussurrou:

- Eu tenho medo que ela chegue e encontre a casa fechada. É uma criança, não conhece a cidade. Que será dela então? Tu não pensas nisso?

- Eu penso, mas é em sair daqui quanto antes. Violante só voltará para casa, se voltar, trazida pela polícia ou pelo Mamede. Sozinha?! Vá esperando!

- Tu não queres que eu diga aos vizinhos...

- A senhora está louca? Para quê? Para rirem de nós?

- Então não sei como há de ser.

Calaram-se recolhidos em pensamentos opostos: Dona Júlia a imaginar a volta da filha: ela ali, à porta da casa fechada, a olhar o escrito, chorando, sem saber o destino dos seus; ele a fazer planos de vida calma naquela casa tranqüila.

Bateram, voltaram-se ambos e Dona Júlia chamou Felícia para ver quem era. A negra tornou em pontas de pés, cochichando: "É seu Fábio." Os dois levantaram-se à pressa caminhando para a sala, porque a negra espiara apenas, timidamente, pelas frestas da persiana, deixando o homem na rua, ao sol, com receio de que o estudante se revoltasse contra ela. Dona Júlia abriu a porta e um homenzarrão entrou limpando o suor que lhe escorria do rosto abrasado.

Alto e robusto, espadaúdo, com uma densa barba grisalha que lhe dava à fisionomia o ar expressivo de energia e doçura com que a Arte nos representa os patriarcas bíblicos, tinha, em contraste com o todo másculo, uma voz inesperadamente branda que surpreendia, saindo daquele peito forte, através da espessidão das barbas veneráveis. Logo que entrou, com o chapéu ainda à cabeça, um largo chapéu d'abas moles, o guarda-chuva debaixo do braço, estendeu as mãos ambas a Dona Júlia e a Paulo e, de olhos nela, perguntou, depois dum aceno da cabeça, franzindo a fronte: "Então que foi isso?" Dona Júlia, desabando os braços, encolhendo os ombros, baixou a cabeça e o velho, deixando o chapéu sobre a mesa, sentou-se declarando - "que só naquela manhã recebera a carta que ela lhe escrevera". E perguntou: "Mas quando foi?"

- No sábado, à noite, compadre.

O velho meneou com a cabeça; e, voltando-se para o estudante, indagou:

- Já foste à polícia?

- Na mesma noite.

- Então?

- Ora! o senhor bem sabe como aquilo é. Prometeram fazer tudo e ficou nisso...

- E não voltaste?

- Para quê?

- Como para quê? Que diabo, rapaz! Hás de ser sempre o mesmo descansado? Então é assim? A gente move-se, homem de Deus; e, se tu és o primeiro a mostrar indiferença pela causa, como queres que os estranhos se interessem por ela?

Dona Júlia, sentindo-se protegida, ousou falar.

- Eu disse isto mesmo, compadre.

- Aí vem a senhora... Eu fiz tudo: fui à polícia na mesma noite, com uma tempestade medonha, dei todas as informações ao delegado, não tenho culpa de que as nossas autoridades sejam relaxadas. Em Londres o homem já estaria preso.

- Qual Londres! - bramiu o velho, atirando os braços.

- Hei de ficar plantado na polícia dia e noite? Isto não! Estou com os exames à porta e não quero fazer figura de idiota.

- Filho, eu bem te conheço, - tornou o velho com calma; - deixa-te de histórias. Vens agora com exames, porque não tem convém andar por aí uns dias trabalhando. - Cruzou os braços: Mas então, queres tua irmã perdida? Não te vexas? Não tens pena de tua mãe? Eu sei: és um excelente rapaz enquanto não te incomodam. Meu amigo, quem quer vai. E por essas e outras que há por aí tanta miséria. A polícia auxilia, mas é preciso que a gente não a deixe, mesmo porque ela tem mais em que cuidar. Por que não dás um pulo até lá? Vai saber, anda. - Paulo fez um gesto de enfado e o velho insistiu: Tem paciência, é tua irmã, é teu sangue. E a vergonha não ficará só com ela. És o homem da casa. Vai, anda! não percas tempo. E agarra-te com o chefe, com os delegados.

- Pois sim: há de ser a mesma coisa: que vai mandar ver...

- Não há tal: os delegados atendem, estão lá para isso. Estás fatigado, compreendo, mas tem paciência. Dá um pulo à polícia, vê se podes falar ao chefe, conta-lhe tudo e estou certo de que ele não se há de limitar a dizer - que vai mandar ver. Deixa-te de histórias, eu também já andei por lá, sei como aquilo é. Move-te, move-te.

- Tem paciência, meu filho! - implorou a velha. Paulo levantou-se amuado:

- Eu também sou de carne.

- Também eu, - retorquiu Fábio em tom ríspido - e tenho cinqüenta e oito feitos, entretanto, meu rapaz, não sei que é descanso. O interesse é de todos vocês.

Paulo tomou o chapéu e a bengala e, arrebatadamente, sem mesmo falar ao velho, que enxugava a fronte suada, abriu a porta e saiu resmungando.

- Tem paciência, - insistiu Fábio - é assim: quem quer faz assim.

A porta, impelida pelo vento, abria-se devagarinho, rinchando, e Dona Júlia levantou-se para fechá-la. Sós, o velho Fábio externou-se francamente:

- Olhe, comadre, quer saber? Parecia que eu estava adivinhando isto; mais de uma vez, lá em casa, eu disse à Marta: "Aquilo não vai bem. Aquela menina não tem modos, não sai da janela, dando trela a quanto pelintra vê." Agora, que o caso está passado, eu digo a verdade: Marta não era lá muito pelas conversas de Violante com Cristina. Não dava a perceber para que a senhora não ficasse magoada, mas gostar, não gostava. E eu cheguei a falar, lembre-se bem, no dia dos anos do Tula. Era com todos, comadre... até com homens casados.

Dona Júlia suspirou, afirmando:

- Sim, o compadre falou... Mas que havia eu de fazer?

- Que havia de fazer?! Pois então a comadre não é mãe? Olhe, a Cristina é noiva, mas vá lá saber se eu a deixo um instante só com o noivo... E é um moço sério. Não, senhora; há sempre gente na sala com eles.

E, curvando-se, sentenciou com lentidão:

- Minha comadre - a ocasião faz o ladrão. Isso de moças solteiras é mais melindroso do que parece. - Engrossou a voz: E Violante? reunia aqui uma súcia de frangotes; era conversa com um, era risada com outro, afastando os moços sérios que a estimavam. De um sei eu que era doido por ela.

- O Fernando, da botica.

- Sim, senhora, o Fernando. Está começando a vida, mas é um rapaz de futuro. Ele disse-me, lastimando, que sempre que passava por sua casa via Violante à janela e rapazes batendo a calçada.

Cruzou os braços, perguntando com ar de nojo:

- Isso era decente? diga! era decente?

- Eu não sei! - suspirou a boa senhora.

- O rapaz recuou, porque, afinal, ele não a queria por passatempo, e a comadre compreende que, quando um homem pensa seriamente em casar, trata de estudar a moça, indaga, informa-se... E Violante? Não se zangue comigo, mas a senhora foi culpada em parte, isso foi. Amor não é isso. Eu quero muito à Cristina, mas nem por isso ando a passar-lhe a mão pela cabeça - quando é preciso, falo, grito, bato o pé e ninguém me contraria. Não, que não admito. Não vai casar? então...! Ainda depois de casada, se for preciso, lá irei dizer-lhe as verdades, mesmo diante do marido, porque o que eu quero é vê-la feliz. Mas sua filha, se a gente queria dar-lhe um conselho, saltava logo com duas pedras na mão. Outro - esse rapaz.

A velha levantou os olhos assombrados:

- Sim senhora, o Paulo. Excelente menino, mas um pouco atrevido... e parece que não tem ainda o juízo assente: são dez, vinte idéias por dia; quer ser tudo, não é nada. Em quantas academias tem ele andado? Já quis ser engenheiro, deixou; pensou em meter-se na marinha, andou a estudar para guarda-livros, e está agora às voltas com a medicina. Esse há de ser médico quando eu for frade. Não é assim, tenha paciência. Não é assim.

- Mas ele estuda, compadre; eu vejo. Fica, às vezes, até de madrugada em cima dos livros.

- Que tem isso? Estuda e é inteligente, mas à primeira dificuldade, recua desanimado. Não, senhora - é para diante! Quem quer ser alguma coisa na vida queima as pestanas e firma-se numa idéia: é isto porque é! Ele não - é só orgulho! - e encheu as bochechas, bufando. - Ninguém tem o direito de lhe dizer uma palavra que logo se não espinhe. Se um professor faz uma observação, fica de trombas, não volta à escola, e há de viver assim: daqui para ali, sem firmar-se em uma carreira. Também já não é uma criança; com vinte anos há por aí muito pai de família.

- E ele, então, não trabalha, compadre?

- Trabalha, trabalha... mas é um mês aqui, um mês ali. A propósito: ainda está no jornal?

- Ainda.

- Pois olhe: admira. Que melhor emprego queria ele que o de amanuense na Secretaria do Interior? Não fez concurso? Não foi classificado?

- Diz que não tem jeito para emprego público.

- Ah! não tem jeito?! O que ele não tem é cabeça, como a irmã. Agora mesmo - no primeiro momento fez, aconteceu, andou por aí com chuva, mas já desanimou, nem se preocupa mais com o caso. Não é assim, comadre; não é assim. Quem quer alguma coisa, trabalha; sem persistência nada se faz; a senhora bem sabe, porque tem lutado para viver. Mas é preciso ter o juízo assente. Com a menina foi o mesmo: vontades, vontades, e aí está em que deram. Então, Violante não podia cuidar um pouco da casa, arrumar o seu quarto? coser a sua roupa? Eu nunca vim aqui que a encontrasse trabalhando - ou estava dormindo ou lendo, recostada na cadeira de balanço, como uma princesa. Nem os ticos vivem assim, comadre; nem os que têm... Enfim, não quero amofíná-la mais; vamos ver se ainda se pode fazer alguma coisa. É no que dão as condescendências. Quem quer belas flores e belos frutos poda as demasias da planta. É assim.

Levantou-se.

- Não quer uma xícara de café, compadre?

- Nada, obrigado.

Apanhou o chapéu e o guarda-chuva.

- E a comadre não desconfia de algum dos tais tipos?

- Eu nem os conheço; vivia sempre lá para dentro, metida comigo, no meu trabalho.

- E ela, aqui esparrimada à janela, de prosa.

Deu d'ombros, afundando o chapéu na cabeça; e, d'olhos altos:

- Mas que loucura da rapariga!

E ficou um momento a olhar o teto, meneando com a cabeça:

- Bem, adeus, comadre. Pois eu vou por aí, e se conseguir saber alguma coisa, dou um pulo até cá.

- Nós vamos mudar-nos.

- Quando?

- Amanhã.

- Para onde?

- Para o cais da Glória. Paulo achou lá uma casinha. O senhor compreende: não podemos ficar aqui - vem um, vem outro, perguntam...A gente tem vergonha.

- É natural, é. Pois é isso: faça o rapaz mover-se.

Caminhou até a porta e, voltando-se:

- Olhe, nós lá estamos... sem cerimônia. Para os de casa, como a comadre, há sempre lugar. Sem cerimônia.

- Obrigada, compadre; eu sei.

O velho escancarou a porta e, já na rua, repetiu:

- Se conseguir saber alguma coisa dou um pulo até cá.

- Será favor.

- Adeus. E não se amofine.

- Lembranças a todos.

- Obrigado.

E foi-se pigarreando.

7

Com o rosto encostado à persiana, Dona Júlia deixou-se estar esquecida, o olhar perdido, pensando nas palavras do velho Fábio que, só então, depois de vinte e cinco anos de amizade, porque o marido levara, como um dote, aquele coração, cuja bondade vivia a apregoar - emitia a sua opinião sincera sobre "os pequenos" que, a bem dizer, lhe haviam crescido ao colo. Não estimava, então, a afilhada, tinha-a em má conta, achando-a indigna de conversar com Cristina, a inocente e triste Cristina, sempre chorosa e pressaga, com idéias de convento e de morte. E por que? que havia feito Violante para que assim a julgassem? Ah! infeliz de quem se vê ao desamparo! Se o marido fosse vivo o compadre não lhe diria, com certeza, aquelas duras palavras sobre os filhos; não, não lhas diria.

Ah! o bom tempo da ventura - ela moça e contente, caminhando na vida sem cuidado, à sombra do esposo, com os dois filhinhos à frente, de mãos dadas, rindo, gárrulos, e Fábio a gabá-los, achando-os lindos, carregando-os de brinquedos, empanturrando-os de doces. levando-os aos cavalinhos com a Cristina, sempre triste, doentinha, chorosa. Ah! o bom tempo!

Então era ele quem pedia as crianças, quem as levava para a sua casinha, não fazendo distinção entre elas e a filha, sempre abaetada, a tossir, com o corpinho abotoado em furúnculos. Mas com a morte do esposo todas as boas amizades haviam desertado, o próprio Fábio parecia querer abandoná-la justamente no momento mais doloroso. Pobre dela! Não houvesse ele arranjado a vida conseguindo comprar a chácara do Engenho Novo, que ele não era assim antes, isso não era.

Repentinamente, numa transição, como arrependida daqueles injustos pensamentos, suspirou: Pobre compadre! Sim, lá ia ele, velho, bater a cidade por causa de Violante. Ele não falava por mal, seu gênio era aquele: dizia tudo que lhe vinha à boca, com uma franqueza impetuosa e rude, como se estivesse com raiva, mas lá por dentro o coração estava a chorar e, não raro, nos momentos em que mais furioso se mostrava, enchiam-se-lhe os olhos d'água e, para que o não julgassem um fraco, vociferava ainda mais, gesticulando desatinadamente. Já no tempo do marido era aquilo - a mesma aspereza, os mesmos ímpetos, dominando com a superioridade de um irmão mais velho e o outro não se zangava, ouvia calado, dizendo sempre: "O Fábio tem razão... O Fábio tem razão." Na moléstia do Paulo, quando a febre o prostrou entre a vida e a morte, desenganado pelos médicos, quem velara à sua cabeceira com maior carinho do que ele? E onde fora seu filho ganhar forças novas em convalescença tranqüila e animada senão em casa dele? Não, pobre compadre! Deixou a janela e, lentamente, foi caminhando para a sala de jantar. Felícia dobrava a toalha da mesa quando ela, encostando-se a uma cadeira, perguntou:

- Tu vais comigo, Felícia?

- Para onde? Para onde é que sinhá vai?

- Paulo encontrou uma casa no cais da Glória. Vamos para lá.

- Eh! eh! - fez a negra. - Tão longe!

- Qual longe! Então é longe?

A negra ficou algum tempo imóvel, a pensar, com um sorriso estampado no rosto macilento; por fim disse, resignada e submissa:

- Sinhá indo, que é que eu hei de fazer? - Depois, baixando o olhar, a passar a mão pela toalha dobrada, murmurou: Aquele mar ali perto é que é...

- Que tem o mar?

A negra levou, de repente, as mãos juntas aos olhos e pôs-se a chorar baixinho, pensando no filho.

- Deixa disso, criatura, está com Deus... mais feliz do que nós, já não sofre. - E, afagando-a, a boa senhora, cujos olhos se encheram d'água, procurou distraí-la: Olha, vamos aproveitar o tempo, arrumando alguma coisa. - De novo as palavras do velho Fábio ressoaram-lhe no coração dolorido: "Indigna de estar ao lado de Cristina..." Um sorriso triste aflorou-lhe aos lábios e, arrastadamente, caminhou para o quarto. Súbito, porém, detendo-se, agarrou a cabeça a mãos ambas, exclamando: "Pois, meu Deus! é possível? É possível mesmo que eu fique sem minha filha?!"

De vez em quando a lembrança de Violante passava-lhe assim pelo espírito, como um relâmpago, e ela quedava inerte no meio da casa, tolhida, esquecida de tudo, a olhar sem ver, em verdadeira inibição. "Pois é possível que ela não volte?" Meneando com a cabeça, entrou no quarto da filha, deserto e triste como o seu coração.

Até à noitinha Dona Júlia e a negra andaram em arrumação: empalhando a louça, entrouxando a roupa, retirando quadros das paredes e a casa, desnudando-se, tornava-se ainda mais triste, com um aspecto lúgubre de miséria: os móveis em desordem, montes de coisas pelos cantos, rolos de colchões, cartas esparsas, velhas fitas empoeiradas, retalhos, folhagens secas. O gato, sobressaltado, rondava a casa miando, de canto em canto, sobre um móvel, sobre outro, tudo farejando com desconfiança.

Felícia saía ao quintal para espanar os quadros, ia e vinha opondo-se a que a ama carregasse pesos. "Que ela não podia; deixasse." E, ligeira, ia adiantando o serviço. Dona Júlia, d'olhos no chão, recolhia, catava pequeninas coisas - um laço de fita, uma madeixa ruça, um cromo: eram lembranças da filha. Pobre Violante! Se ela ali estivesse, que alegria!

Com o trabalho não deram pelo cerrar da noite e foi Felícia quem disse:

- Parece que nhonhô não vem hoje jantar...

- É verdade! - exclamou a velha surpreendida, com os olhos no relógio.

Eram quase sete horas; escurecia; já andavam a acender os lampiões. Impressionada ficou algum tempo a olhar os ponteiros e foi ainda a negra quem interrompeu o silêncio, acendendo o gás:

- Quem sabe se ele não encontrou Nhá Violante, sinhá?

- Hem?!

- Ele que não vem até agora...

- É!... E o compadre foi também. Quem sabe se andam juntos?! Ah meu Deus!... Se eles entrassem agora com ela? Mas qual! não tenho esperança. Andam por aí quebrando a cabeça, coitados! Se ela pudesse de vir já tinha vindo. Enfim... há de ser o que Deus quiser.

- A Deus nada impossível, minh'ama; - consolou a negra levando, a grandes vassouradas, um monte de papéis para a cozinha. - Eu não sei, mas meu coração me diz que Nhá Violante ainda volta... minh'ama há de ver.

- Deus te ouça.

- Onde é que ela há de ficar, uma moça como ela? Minh'ama há de ver, meu coração não falha.

Foi num canto da mesa que Dona Júlia, a contragosto, tomou a sopa e mastigou uma febra de carne, suspirando, com o ouvido atento aos menores ruídos. Gente que passava na rua, falando, fazia com que ela voltasse a cabeça ansiosa. Foi várias vezes à janela, entreabriu-a e ficou à espreita, alongando os olhos pela rua deserta. Parecia, às vezes, distinguir o filho além!

Um casal, voltando a esquina, sobressaltou-lhe o coração; cravou os olhos... Não, não eram eles. As lâmpadas da Central espalhavam uma claridade de luar na rua tranqüila. Dançavam na vizinhança, vozes marcavam uma quadrilha, vibravam gargalhadas. Ah! Violante...

Tamborinando no tabuleiro, rompeu, cantando, um vendedor de roletes; apareceu na esquina a chamar a freguesia e a baquetar com força. Os trens rodavam e um bonde, quase vazio, passou vagaroso.

Onde andaria o Paulo? Iam as horas correndo: oito, nove, dez. A venda da esquina fechou-se e a claridade lívida da calçada sumiu-se. De quando em quando ela ia espreitar pelas frestas da janela, aflita. Que terá havido? Que terá acontecido, meu Deus! Eram onze e meia quando bateram à porta.

- Quem é?

- Abra!

Com mais pressa do que lhe permitia o corpo levantou-se da cadeira e precipitou-se; antes, porém, de abrir espiou pelas rexas da persiana e reconheceu o filho. Abriu. Paulo entrou impetuosamente, num arremesso de empurrão. A pobre velha, alarmada, perguntou, querendo ampará-lo:

- Que é isto, meu filho?

Vendo-o, porém, à luz, demudado, oscilando, d'olhos muito lânguidos, como amortecidos de sono, ficou pregada ao soalho contemplando-o, entre assombro e piedade. Paulo bateu com o chapéu sobre a mesa, deixou cair a bengala e, sem dizer palavra, encaminhou-se para o quarto, detendo-se à porta, hesitante. Repentinamente voltou-se e, com a voz pastosa, a língua frouxa, tropegou:

- Por enquanto nada. Andei com o Mamede... Nada.

Vacilando, levou a mão ao umbral da porta, curvado, com a cabeça pendida e ficou a arquejar surdamente, em angústia, com o cabelo escorrido à fronte, as pernas abertas. Dona Júlia adiantou-se, ia amparar-lhe a cabeça quando ele a repeliu, falando balofo:

- Deixe, mamãe... Deixe.

- Mas que é isto, meu filho? Pois tu?

- Que é? Já vem a senhora com os conselhos. Violante podia fazer tudo e... Pois eu não estou disposto a ouvir sermões, sabe? Chega, estou farto. - Revoltado, sem poder levantar a cabeça, que bombeava, continuou em voz fanhosa: E não quero mais histórias comigo. Não sou criança para estar a ouvir as grosserias do Sr. Fábio e de outros idiotas como ele. Eu ainda perco a cabeça e faço uma das minhas e vão depois dizer que sou isto e aquilo. - Deixou-se cair em uma cadeira, passando a mão pelos olhos lentamente, como se retirasse alguma coisa que os empanasse. - Andei como um animal... Estou que não posso comigo e ainda não jantei. Tudo por causa da senhora Dona Violante.

- Com quem andaste?

Ele levantou a cabeça com esforço:

- Com quem havia de ser? com o Mamede, pois não sabe?

- Logo vi... balbuciou a velha.

- E... já a senhora pensava que eu vinha da troça, que tinha andado em pândega por aí. Pois ainda não jantei. Que é que está olhando? É isto: ainda não jantei. Ah! pensa que bebi. Bebi mesmo, e depois? bebi! - E, furioso, às guinadas, meteu-se no quarto, resmungando. Dona Júlia ficou de pé no meio da sala, abatida, num desalento profundo, com os olhos na porta que o filho encostara. Por fim, animou-se a chamá-lo, e nunca a sua voz foi tão suave e tão terna: "Paulo, meu filho..."

- Que é? Não se importe comigo, deixe-me: estou com muita dor de cabeça, e é tarde. Não se importe comigo; não preciso de cuidados, graças a Deus. No dia em que eu não tiver forças para trabalhar, meto uma bala na cabeça. Coragem não me falta. Ora se... e pouco se perde. Descanse, que a senhora não há de sofrer por minha causa. Ah! é um desespero! tudo é pra cima de mim, como se eu fosse um burro de carga. Pois sim, mas isto acaba.

Dona Júlia entrou no quarto. Paulo estava de pé junto à estante, a remexer nos livros; sentindo a mãe, voltou-se:

- Pode olhar, mas não me fale, tenha paciência... Eu não estou bom.

- Mas que queixas tem você de mim? Então eu sou má?

- Não sei... Eu é que não estou disposto a aborrecer-me. Que culpa tenho eu de que Violante tenha fugido de casa? Foi comigo que ela fugiu? Foi por minha causa? Fui eu que lhe abri a porta? Não - então por que me aborrecem? Já faço muito em andar por aí, de casa em casa, cansando-me atrás de uma vagabunda.

- Que é isto, Paulo?

- Vagabunda, sim! A senhora pode defendê-la como quiser. Ah! eu não esqueço o que me fazem, não esqueço. Quando estive doente deixaram-me aqui abandonado, como um cachorro, porque a senhora Dona Violante queria um vestido com pressa, não sei para que pagode. Eu podia morrer, contanto que ela brilhasse. Fiquei ardendo em febre, e mamãe lá foi acompanhar a senhora minha irmã, deixando-me com uma negra. Eu não esqueço... Mas não faz mal. Deus é grande!

Sentou-se na cama fazendo horríveis visagens, ansiando, abrindo e fechando a boca, aos haustos. Dona Júlia adiantou-se, enternecida:

- Tu estás sentindo alguma coisa, meu filho?

Ele engulhava. Saiu-lhe, a jorro, uma negra golfada da boca esparrimando-se no soalho, com um fétido ácido. A velha amparou-lhe a fronte viscosa, posto que ele, torcendo-se com agoniadas contrações e arrevessando, repelisse, já sem energia, e mão carinhosa. Nova golfada bolçou longe e Paulo, suando frio, pôs-se a gemer, dando com a cabeça, a comprimir o estômago, estorcendo-se.

Dona Júlia, com os dedos atarantados, desabotoou-lhe a camisa e as calças, deitou-o e correu, aflita, a buscar o vidro d'água sedativa. Na sala de jantar pensou em acordar Felícia, mas teve vergonha - não queria que ela visse o filho naquele estado. Entrou resolutamente no quarto e, como a prateleira dos remédios - a sua botica - ficava por trás dos santos, enquanto procurava, entre outros, o vidro que queria, foi fazendo uma oração ao Senhor dos Passos, frouxamente iluminado pela lamparina trêmula.

Quando tornou ao quarto, com o remédio, encontrou o filho de pé, agarrando a cabeça a mãos ambas, vacilando, como se a embriaguez se houvesse agravado. Dos olhos úmidos escorriam lágrimas, uma baba víscida descia-lhe pelos cantos da boca, copioso suor alagava-lhe a fronte, onde os cabelos caídos colavam-se, empastados.

- Por que não te deitas, meu filho? Vem cá, deita-te, descansa; isso passa.

E a boa velha foi conduzindo o filho, que cambaleava. Forçou-o brandamente a deitar-se, alteou os travesseiros, repousou-o. Ele, porém, sentia-se mal e, lutando, soergueu-se de novo, aflito, arquejando, debatendo-se. Repentinamente saltou da cama e, engulhando, ficou de pé no meio do quarto, d'olhos desvairados, a esmagar o estômago a mãos ambas, dobrando-se.

- Não posso mais. Eu morro! - rouquejou, deixando-se cair na cama e Dona Júlia, ajoelhando-se, arrancou-lhe as calças, sem que ele fizesse o menor movimento, e vendo-o tranqüilo, deixou-o estendido, com os pés quase tocando o chão, o ventre descoberto, aflando, como o de um peixe em agonia.

D'olhos fechados, Paulo sentia uma impressão estranha, como se fosse rolando no vácuo; a cabeça parecia estar cheia de nuvens densas, pesadas, que rolavam; o leito oscilava. Abriu os olhos - foi pior: os móveis moviam-se, sombras enormes bailavam fantasticamente nas paredes; uma zoada rumorejava-lhe aos ouvidos. Um cheiro acre, penetrante, agudo, chegou-lhe terebrantemente ao cérebro. Agitou-se nervoso e agarrou o pulso de Dona Júlia, repelindo-a; mas a boa senhora manteve-se junto dele, chegando-lhe ao nariz o lenço, encharcado d'água sedativa.

- Tem paciência, meu filho.

- Não, mamãe...

- Vais ficar bom.

- Não! - e debatia-se. Tentou erguer-se, mas oscilou para um lado, para outro e tombou no leito, gemendo, resmungando:

- O Fábio! pois sim... - Riu sardonicamente, escondendo o rosto no travesseiro para fugir ao lenço com que a mãe o perseguia. De novo, engulhando, ameaçou levantar-se: fincou os cotovelos na cama, conseguindo apenas soerguer a cabeça, que logo descaiu, pesada. - Já disse que não quero, mamãe. Por causa daquele diabo! Mas deixa estar. Eu bem dizia. A culpa é sua e dessa negra. - Teve um ímpeto de ira e abriu os olhos desmedidamente: Mas eu não a quero nem mais um dia aqui em casa, nem mais uma hora! Sem-vergonha! Era ela mesma que andava com as cartinhas de lá para cá. Foi ela que arranjou tudo. Mas deixa estar...!

Dona Júlia insistiu com o lenço, seguindo os movimentos repentinos do filho, que fugia com a cabeça, resmungando.

- Espera, Paulo.

- Não quero! Não teima...! Mau! Mau!

- Tem paciência, meu filho.

- Não quero! Olhe, mamãe...! ameaçou.

- Pois hás de ficar assim? - e, em segredo, para vencê-lo pelo vexame, disse: Olha Felícia...

- Que tenho eu com Felícia? Ela que venha cá! Por causa dessa sem-vergonha é que a nossa vida anda assim. Não quero mais essa negra aqui! Não faltam criadas.

A cefaléia, porém, ia-se-lhe tornando insuportável: sentia a cabeça como apertada num capacete de ferro, os olhos pareciam querer saltar das órbitas: as artérias, nas têmporas, latejavam com violência, túrgidas. Entrou a suar frio e, arrebatadamente, desnudou-se aos olhos compassivos da mãe que, sem vexame, comovida, não podendo retirar o lençol da cama, cobriu-o com uma toalha de banho que pendia do cabide. Depois, reunindo toda a sua força, agarrou-o pelo tronco e virou-o na cama, repousando-lhe a cabeça nos travesseiros altos. Estendeu-lhe as pernas e, sentando-se à beira da cama, ficou-se a acariciá-lo, chegando-lhe, de quando em quando, ao nariz, o lenço, que ia embebendo em água sedativa.

Por fim ele imobilizou-se, como se houvesse adormecido, mas sofria - o atordoamento da embriaguez dava-lhe desequilíbrios. As vezes parecia-lhe ir caindo, estendia os braços, procurava agarrar-se a alguma coisa, resmungava; mas, de novo, reentrava em inconsciência, até que, estirado, com um fio de baba a escorrer-lhe da boca, adormeceu, hirto e pálido, como morto.

Vendo-o a dormir, Dona Júlia saiu em pontas de pés e, instantes depois, tornou, silenciosa, com um balde e um pano e, de joelhos, pôs-se a esfregar o soalho, para que não ficasse vestígio daquela vergonha. No mesmo passo, cauto e sutil, saiu com o balde, voltando, pouco depois, ao seu posto. Sentou-se devagarinho na cadeira, encostando-se à mesa acumulada de livros, com os olhos no filho, ungindo-o de piedade e desviando-se, fugindo ao presente triste, achegou-se às recordações do passado.

Era ele pequenino, uma criança linda, de cabelos louros, meiga e inteligente. Como a casa era alegre com as suas travessuras, com o seu riso que vibrava! E ela, como era venturosa quando o tomava nos braços, doce peso que fazia subir sua alma ao Paraíso.

E a outra, que beleza de menina! E como andava garrida, sempre com figuinhas sob as rendas do vestido taful, para conjurar os olhares vesgos da inveja, amimada por todos, de colo em colo, de casa em casa.

Quando o marido chegava do quartel tomava os dois e, com um em cada joelho, punha-se a sacudi-los: upa! upa! e eles a rirem, e ela a rir com eles, enlevada.

Depois o colégio, as horas de saída, o regozijo em casa quando os dois apareciam gárrulos, contando o que haviam feito, todos os pequenos incidentes do dia escolar. Suspirou. Aquela ironia da memória alanceava-lhe o coração. Paulo voltou-se atirando um braço, encolhendo as pernas, com um resmungo. Ela pensou que ele houvesse acordado e, de manso, inclinando-se, examinou-o: dormia profundamente, respirando um hálito quente e azedo.

Bebendo! suspirou ela baixinho, de mãos postas, olhos em alvo, demandando o céu. Bebendo... meu filho, o meu Paulo! E sentou-se, de novo, muito quieta para continuar a dolorosa vigília, perseguida pelas reminiscências, falenas tristes da noite velha do passado que esvoaçavam em torno de sua alma. Já o via rapaz e a ela menina: ele concluindo os preparatórios, ela fazendo os primeiros bordados.

Noites tranqüilas para sempre perdidas quando, na sala de jantar, em volta da mesa, à luz de um lampião de querosene, na casa da Rua Haddock Lobo, Paulo estudava os seus verbos, Violante vestia as suas bonecas e ela, ao lado do marido, gozando aquela delícia honesta, ponteava, cerzia uma roupa ou discorria sobre as necessidades da casa, lembrando compras indispensáveis. Fora, no quintal, havia um jasmineiro, que avassalava o muro e perfumava a casa.

"Uhum! não..." regougou o rapaz voltando-se torcicolosamente e, como o seu rosto ficasse em plena claridade, Dona Júlia afastou a vela, pôs-lhe diante um livro como alparluz para que a sombra lhe protegesse o sono. Paulo pôs-se a mastigar, com estalidos secos e ela, sempre receosa, inclinava-se, d'olhos franzidos, acompanhando, vigiando aquele pesado torpor.

A chama da vela crescia, por vezes, e sombras dançavam na parede macabramente. Havia um roque-roque na sala próxima, um rato a roer e era o ruído único dentro da noite, porque as próprias máquinas viageiras dormiam, repousando das céleres corridas pelos campos largos, pelas serras ásperas.

Outras idéias surgiram no espírito atribulado da miseranda:

Onde andaria Violante? Pobrezinha! talvez sofresse num canto obscuro, guardada pelo homem perverso que a havia seduzido. Ah! sim, devia estar bem escondida para que a polícia, trabalhando como trabalhava, não lhe houvesse podido ainda descobrir o paradeiro.

E se houvesse sido assassinada? Lembrou-se de certa notícia que lera em tempo: o caso de um homem que, depois de haver cevado os seus desejos lúbricos, arrastara a sua vítima, pobre pastora, para uma charneca e a esfaqueara. Teve um arrepio e, d'olhos cravados na parede, ficou a olhar, a olhar...

Uma sombra passou e foi-se adensando, adensando... Círculos iriados dilatavam-se brilhando e desfaziam-se e toda a sua visão ficou reduzida àquelas miragens que, repentinamente, desapareceram.

A porta rangeu: voltou-se assustada e viu o gato entrar maciamente, em passos de arminho, com a cauda hirta. Dando por ela, o animal fez uma volta, corcoveado, esfregou-se-lhe nas pernas, resbunando; depois, fitando-a, com um surdo miado, formou o pulo e saltou-lhe ao colo, como a pedir carinho. Ela acolheu-o, afagou-o passando-lhe a mão pelo dorso flexuoso e macio; o animal, lambendo as patas, deixou-se ficar encolhido e, afundando a cabeça, adormeceu.

O sono chumbava-lhe as pálpebras, ardiam-lhe os olhos e, de quando em quando, a boca se lhe escancarava em largo bocejo ao qual, religiosamente, acudia com o polegar traçando uma cruz.

Mas como havia de o deixar? E se sobreviesse alguma coisa? Estava tão agitado... Foi, então, que se lembrou da enfermidade do filho. Noites de sofrimento e de apreensões: ele abrasado em febre, delirando, ela, sozinha, ainda com o luto pesado do marido, a acompanhá-lo, acudindo com os remédios ou a contar-lhe histórias quando, nas horas de acalmia, ele a chamava para junto do leito, muito humilde, com medo da morte.

Os bocejos amiudavam-se, sentia-se mole, estafada pelo dia de insano trabalho que tivera a desarrumar a casa para a mudança. Pensou em deitar-se no sofá da sala, mas o filho prendia-a. Um galo cantou longe, tristonhamente e, na Estrada, houve um longo chiar de vapor. Eram as viageiras que despertavam para a vida laboriosa. Não tardava a manhã.

Levantou-se lentamente, deixando o gato no chão. O animal corcoveou espreguiçando-se e, vendo que a senhora saía, acompanhou-a em passo sutil. Dona Júlia abriu a janela devagarinho. Uma brisa fresca soprava, o céu estava estrelado e o alvo clarão das lâmpadas da Estrada dava uma ilusão de luar.

Varriam a rua e, numa densa nuvem de pó, uma carroça arrastava-se, moviam-se vultos. "Também agora não vale a pena, disse ela; com pouco mais está aí o dia." E, debruçada, ficou a olhar fundamente, para muito longe, para o tempo d'outrora, o doce tempo!

Lá o via todo, feliz e calmo, lá longe, no irregressível. Dois homens passaram em mangas de camisa, fumando; um levava uma picareta ao ombro. 'Meu Deus..." e ficou-se nesta exclamação que resumia todo o seu espanto, porque parecia impossível que padecesse tanto, sendo tão virtuosa e tendo tamanha fé na Providência. "Não! também é demais!" E à janela, só, dentro do seu desespero, cercada pela noite negra e muda, pôs-se a falar gesticulando.

- Uma sai, vai-se embora; o outro, tão bom menino, faz isto, meu Deus... Que tenho feito eu?! Vejo por aí outras mães tão felizes com os seus maridos, com seus filhos... só eu, então, é que hei de ser a desgraçada? Por quê?

Baixou os olhos e viu a rua mais negra como se a noite houvesse recalcado a sombra. Ao longe havia ainda dois pontinhos luminosos, mas esses mesmos desapareceram - um primeiro, outro depois, e a treva ficou absoluta. "Por que, meu Deus?!" Passou o braço pelos olhos e, chorando, bebendo as lágrimas salgadas, ficou a tamborilar na janela, vazia, inconsciente, dolorosa, com os olhos voltados para o céu mudo.

Um silvo sacudiu-a e toda a rua abalou-se, como a um surdo fragor subterrâneo. Era um trem que partia e, como se nele fossem as suas derradeiras esperanças, rompeu a chorar e retirou-se.

No céu branco, madreperolado, estendiam-se os primeiros laivos d'ouro e púrpura, Ouvindo-lhe os passos na sala de jantar atravancada, Felícia levantou-se à pressa e, entreabrindo a porta do corredor, exclamou, surpresa:

- Uê, minh'ama, vosmecê já se levantou, tão cedo?!

- Então, respondeu Dona Júlia, abrindo a janela. Quando há que fazer...

Uma luz baça invadiu a sala, e o ar puro e fresco da manhã circulou. A velha tomou uma toalha e saiu ao quintal para lavar o rosto, enquanto a negra catava gravetos para acender o fogo. O gato ia e vinha, miando, a esfregar-se em Felícia, e o gaturamo pôs-se a cantar contente, vendo a primeira luz do sol no muro verdinhento e ouvindo o estalar das asas dos pombos.

8

Com a chegada das andorinhas, Dona Júlia resolveu acordar o filho e, pé ante pé, entrou no quarto. Paulo dormia profundamente; sacudiu-o:

- Paulo, estão aí as carroças. - Ele abriu os olhos, encarou-a pisco e voltou-se para a parede; ela insistiu: Estão aí as carroças.

- Ah! mamãe... A senhora também... nem me deixa descansar.

- Que queres, se os homens já estão aí para a mudança? Tem paciência.

Paulo resmungou, espreguiçando-se, e a velha saiu, para o deixar à vontade, indo falar aos homens que conversavam à porta, retirando das carroças barricas, velhas esteiras, trapos.

- Por onde quer que comece? perguntou um deles.

- Pela sala de jantar.

O homem foi entrando, dois outros acompanharam-no, e logo, tomando cadeiras, foram-nas conduzindo para a rua, enquanto um ruivo, de cócoras, assobiando, desarmava as camas.

A sala como que se tornava mais vasta à medida que se ia esvaziando. Apareceram buracos no rodapé, blindagens de lata nos ângulos. Um velho chapéu de boneca, empoeirado e roído, rolou imundo na sala. Dona Júlia apanhou-o, sacudiu-o e guardou-o veneradamente. Os homens discutiam, arrastavam móveis e foi um trabalho quando tiveram de transportar a mesa e a grande cômoda de jacarandá que, empurrada, ia deixando lustrosos vincos pelo soalho.

Paulo apareceu, por fim, abatido, os olhos muito vermelhos, mole. Dando com a mãe, baixou a cabeça, resmungou "a bênção", seguindo para o quintal. No banheiro, pôs-se a pensar nos horrores da véspera, com uma ponta de remorso. Arrependia-se de não haver ido à polícia. mas o Mamede... Começou a despir-se, pensando.

Fora à estalagem procurá-lo e encontrara Ritinha só, sempre dengosa, que o recebera toda risonha, com os seus dentinhos miúdos muito brancos e os seus olhos quentes como dois carvões acesos. Não o deixara sair: que esperasse um instante: Mamede não se demorava. E ele, vencido, dominado por aquela viçosa criatura de amor que, quando andava, bambaleando os quadris e balançando molemente os braços roliços, deixava no ar um cheiro acre de carne, um almíscar estonteante de mulher ardente, não teve ânimo de sair e ficou sentado até que ela, ouvindo as horas no lento relógio, veio do fundo da casa, penteando os cabelos lisos, dizer, com espanto: "Que, deveras, Mamede estava demorando muito. Ele não costumava ficar até aquelas tantas na rua".

Transpirava: no lábio superior brilhava um leve rorejo e, como levantava os braços, em curva, o casaco aparecia com duas manchas úmidas nas axilas. Paulo estava enervado: olhava, e Ritinha, como se percebesse que os eflúvios do seu corpo novo venciam o homem, quis, como uma fera lasciva, brincar com ele, atormentando-o, para gozo da vaidade, e sentou-se no banco, curvou o busto à frente, baixou a cabeça, atirando despejadamente os cabelos, que chegaram quase ao chão, fartos e luzidios, como a cauda de um ginete de raça.

A nuca morena aparecia úmida, e ela torcia os cabelos, torcia-os como se os espremesse. De repente atirou-os para trás e ergueu-se. O colo teso forçava o corpinho com esforço e, como ela enrolasse os cabelos no alto da cabeça, em torre, um grampo caiu. Paulo abaixou-se. apanhou-o - os dedos tocaram-se e a mulatinha, faceirando ao espelho, perguntou, como se falasse à própria imagem:

- O senhor é daqui?

- Sou, por quê?

- Por nada. Pensei que era do Norte. Parece muito com um moço que eu conheci na Paraíba.

- A senhora é da Paraíba?

- Com a graça de Deus. E não estou aqui por minha vontade. Pudesse eu que amanhã mesmo tomava um vapor e voltava para a minha terra.

- Então não gosta do Rio?

- Eu!? Posso lá com isto! Estou aqui porque não há remédio. Não me dou com esta gente. Uma terra de miséria. Deus me livre! Não estou acostumada com estas coisas.

- E Mamede?

Ritinha encolheu os ombros, dizendo, com um risinho:

- Mamede? Uai! Não sou cativa de ninguém. Mamede é daqui: que fique.

- Então não gosta dele?

- Não digo que não goste, não tenho queixa; mas o senhor sabe, a gente sempre tem saudade da terra em que nasceu, eu tenho lá os meus, e aqui? Se cair amanhã numa cama, como há de ser? Não conheço ninguém, não me dou com esta gente da estalagem, e então? É a Misericórdia, não é? Deus me livre! Eu só espero uma ajuda de Deus para voltar, tão certo como estar aqui falando com o senhor.

Houve um silêncio. Paulo arfava, as narinas batiam-lhe sôfregas. Veio-lhe à mente uma proposta, mas receou que a mulata, indignada, o denunciasse a Mamede. E ela continuava a torturá-lo sorrindo, suspirando, firmando-se ora em uma, ora em outra perna, com um movimento sensual das ancas, Felizmente o mulato apareceu, suado, esbaforido e, vendo-o, exclamou:

- Ah! vosmecê adivinha. Eu já ia mandar um recado lá em casa.

Paulo ergueu-se sobressaltado e, enquanto Mamede descansava o bengalão e o chapéu, perguntou, sôfrego:

- Achaste?

- Uai! Achei não, também não é assim, nhozinho. Estive com um cocheiro, que me deu umas luzes. Ele já teve uns toques da marosca. Foi um companheiro dele que, no sábado, à noite, saiu detrás do quartel com uma moça e um homem, tocando para a Tijuca. Eu agora ando na pista do bicho, e achando, nhozinho... Só se Deus mesmo não quiser.

Entrou a dar o seu plano de captura, e como Paulo, ao fim da tarde, se despedisse, o mulato, que fizera libações seguidas, opôs-se:

"Que não, ué? Havia de ir sem jantar? Isso não..." E saiu para ir à venda fazer umas compras. O curto instante da ausência de Mamede foi de sofrimento para o rapaz: o esto lascivo recrudesceu com maior intensidade, torturava-o uma estranha emoção de medo, faltava-lhe o hábito como em grande fadiga. Chegou a levantar-se, trêmulo, em pontas de pés, mas ficou parado, com as pemas bambas, os olhos cravados na cortina que encobria o corredor.

Um choro irritado de criança, vindo de fora, assustou-o. Sentou-se, nervoso, revoltado, com o sangue a referver-lhe nas veias. Ritinha pôs-se a cantar e ele, mordicando os lábios, meneou com a cabeça, arrepelou os cabelos com fúria, atirou um murro à coxa e voltou-se olhando para a latada.

O céu, violeta, tinha uma serenidade suave àquela hora da tarde. A gente da estalagem ia abandonando o trabalho, esvaziavam-se as tinas gorgorejando; recolhiam-se as roupas. Faziam-se aos pombais os pombos, e Ritinha, sempre a cantar como uma sereia lúbrica, a atraí-lo, a enfeitiçá-lo. Felizmente Mamede reapareceu... Paulo respirou, aliviado. O mulato abarcava embrulhos e garrafas e, logo que entrou, parando um momento no limiar, disse, risonho:

- Vosmecê há de desculpar a demora.

- Ora! - fez o estudante, complacente.

- A gente quando entra numa dessas vendas sempre encontra uns parceiros e cai na prosa mesmo que é serviço. Com licença, nhozinho. - Puxou uma cadeira, sentou-se, com o espaldar para a frente, as pernas escarranchadas. - Ah! meu senhor... Eu já não sei mesmo onde é que hei de ir cavar dinheiro - isso está preto! Vosmecê não é da Guarda Nacional, nhozinho?

- Eu? Não.

- Dê graças a Deus. É um gastar de dinheiro que não tem conta. A gente, para não ficar por baixo, vai dando e, quando menos pensa, tem soltado das mãos uma cobreira surda. Mas eu gosto; é uma cachaça. Quem foi soldado, vosmecê sabe, tem sempre a sua quedazinha pela farda, e, depois, os manos me deram um posto...

- Que posto?

- Vosmecê ainda não me viu fardado?

- Não.

- Sou alferes.

- Ah!

- Nhozinho, toma alguma coisa, disse de repente o mulato: um gole de vinho do Porto.

Paulo acedeu, e Mamede, num salto, desapareceu no corredor, voltou pouco depois, com a garrafa e dois copos.

- Isto não faz mal. A bebida, com conta, até faz bem - e despejou.

Beberam. E a conversa caiu em Violante. Mamede, confiado no cocheiro que levara o casal para a Tijuca, Paulo, a jurar que se encontrasse o homem, não respondia pela sua vida.

Várias vezes Mamede encheu os copos e, distraído ou excitado, o estudante ia bebendo, até que Ritinha, com um casaco branco enfeitado e rendas largas e uma saia vermelha, apareceu para arranjar a mesa, aliviando-a dos objetos que a atravancavam. E, enquanto ela estendeu a toalha clara e pôs os pratos e os talheres, as garrafas, a farinheira e a fruteira de louça esvazada, Paulo, com o olhar cúpido, acompanhou-a, e o mulato, como se percebesse o entusiasmo do estudante, disse, com orgulho:

- Mulata faísca, hem, nhozinho? Isto tem dengues...!

Lançou-lhe o braço à cintura, atraiu-a e ela, abandonada, lânguida, derreou-se sobre ele, deixando-se afagar, até que, coleando colubrinamente, livrou-se, atirando um muxoxo.

Servido o jantar, Ritinha sentou-se à cabeceira da mesa, entre os dois. Os copos não demoravam vazios, e Paulo já começava a sentir-se atordoado quando, ao fim do jantar, Mamede foi a um canto buscar a laranjinha.

O receio de parecer fraco à mulher desejada fez com que não rejeitasse o cálice que o mulato lhe oferecia - levou-o, porém, à boca, com repugnância e, como para livrar-se mais depressa daquele asco, virou-o e um trago.

O luar subia docemente, branqueando a latada. Um violão gemia perto e Mamede, romântico, enlevado naquela luz visitadora que lhe entrava pela casa, não permitiu que Ritinha acendesse o lampião, e, fora, ao alvor, ficaram conversando: a mulatinha a falar do seu Norte, a recordar as noites poéticas no Cabedelo, entre os coqueirais ou na roda sombria das ramas das gameleiras; Mamede, recordando os dias heróicos, as suas bravuras no Sul e os feitos do major; Paulo, a ouvir, num enternecimento mole, entre os filtros da lua e do perfume da Ritinha que, já íntima, roçava por ele, como a oferecer-se.

Ela não bebia, mas ia servindo cálices sobre cálices, e o estudante não se sentia com ânimo de os recusar até que o mulato, sem dizer palavra, saltou na sala, mergulhou no corredor e, pouco depois, sons trêmulos vieram do fundo da casa e ele apareceu experimentando o violão.

Sentou-se no batente da porta, picando as cordas, apertando as cravelhas; depois, esticando uma perna, pigarreou e, com os olhos no céu, numa voz afinada, pôs-se a cantar uma modinha. A mulata encostou-se ao umbral, com a cabeça para trás, pensativa; Paulo, cabisbaixo, ouvia.

Grilos guizalhavam e, mais longe, como se o misticismo da noite meiga influísse em todos os corações, vozes ternas cantavam em uníssono suavíssimo. Cães ladravam na montanha, onde as casas, muito brancas, como de puro mármore, destacavam-se da verdura que resplandecia alvejante e pelo céu limpo, serena, a lua caminhava magnífica, toda de neve.

Era tarde quando o estudante pediu licença para retirar-se, sentindo-se mal; todavia aceitou o último cálice que lhe ofereceu a mulata.

- A noite está fresca, não faz mal.

Bebeu a custo, arrevessando; apanhou o chapéu e a bengala e despediu-se. Ritinha pediu desculpas do jantar e Mamede quis acompanhá-lo ao portão da estalagem e, sem deixar o violão, lá foi com ele, guiando-o. Ao despedir-se deteve-o e, baixinho, num tom de mistério ofereceu-se para levá-lo a casa. Ele recusou.

O ar fresco da noite, longe de aliviá-lo, como que mais o excitava. O atordoamento tornava-se mais forte: por vezes cambaleava, ia de encontro às paredes. As pernas. ora amoleciam, bambas, ora pareciam retesadas e duras. Ia devagar, sentindo náuseas, a boca saburrosa, os olhos nublados. Caminhava instintivamente, dobrando esquinas - ora pela calçada, ora pelo meio da rua e foi com surpresa que reconheceu a Praça da Aclamação.

Lembrava-se vagamente de haver chegado a casa e do seu sofrimento.

Atirou uma cusparada a um canto e entrou no banheiro. Ao jorro d'água sentiu um choque violento e recuou espantado, com a mão sobre o coração. "Não bebo mais!" exclamou, como num juramento e, curvado, meteu-se sob o chuveiro.

9

Quando saiu encontrou a sala de jantar vazia, já todos os trastes haviam sido retirados; ficou a olhar, distraído, até que Felícia apareceu com o café. Tomou-o a pequenos goles, com repugnância, sentindo-o muito quente, a escaldar-lhe o estômago. Ouvindo os passos arrastados da mãe teve um estremecimento e pousou a xícara na janela, receoso que lhe caísse da mão trêmula. A velha mantinha o seu ar de bondade, e, como se nada houvesse acontecido, disse-lhe:

- Estive guardando a tua roupa. E os livros?

Àquela meiguice, toda de perdão, ainda mais se lhe agravou o vexame.

- Podem ir na cesta.

- Os homens ainda têm uma barrica; se queres...?

- Pois sim. Já estão no meu quarto?

- Não, estão ainda na sala. Deixei fora o terno azul e a tua roupa branca está no quarto de Violante. É melhor que te vistas já para mandarmos o resto nas carroças.

- Sim, senhora.

Foi para o quarto da irmã. Se houvesse voltado o rosto teria visto o ar enternecido com que a velha o acompanhava. Encontrou toda a sua roupa no chão, sobre um jornal, e, vestindo-se, ouvia os passos da velha no quarto contíguo.

Quando saiu já Dona Júlia, com a sua capota de vidriIhos e o seu vestido de merinó, dava ordens à Felícia. Iam indo para as carroças as tinas, os arames em que secavam as roupas, as galinhas, amarradas pelos pés, a gaiola do gaturamo, que esvoaçava assustado e, num saco, no canto da casa, o gato miava desesperadamente, rebolcando-se. Dona Júlia calçando as mitaines cerzidas, disse, d'olhos baixos, tímida:

- Olha, meu filho, eu vou dizer adeus a esta gente aqui do lado, não custa. Não sei que parece sairmos assim. Descansa que ninguém nos visita. Esta gente é boa... Lá os outros... que Deus lhes acrescente.

- Mamãe pode ir, eu não vou. É tudo a mesma súcia.

- Pois sim. Então, até já.

- Mas não se demore: precisamos seguir para que os homens não fiquem à nossa espera.

- Sim. É só um adeus.

Paulo, de mãos enfiadas nos bolsos, passeando ao longo da sala vazia, enquanto os homens retiravam os móveis do seu quarto, pensava em Ritinha: a mulata obsediava-o. Foi ao quintal e deu com Felícia agachada, desenterrando um pé de arruda.

- Vais levar isso, Felícia?

- Então, nhonhô? Arruda é muito bom. A gente deve ter sempre em casa um pé de arruda para uma dor. E, com a planta na mão, ergueu-se e foi acomodá-la em um vaso de barro.

- Vamos, Paulo.

O estudante tomou o chapéu e saiu. Uma das carroças já estava cheia, com a grande mesa suspensa ao fundo, toda enleada em cordas; duas outras esperavam. A vizinhança estava agitada: mulheres às janelas, crianças às portas, olhando. Paulo segredou:

- Vamos para o outro passeio, mamãe; e atravessaram a rua.

Uma mulher gorda, esborrachando à janela o seio espapaçado, disse: "Seja feliz!" "Obrigada", agradeceu Dona Júlia. "Lembranças a Violante... E não se esqueça da gente. Apareça."

Paulo sentia o sangue subir-lhe às faces como se o estivessem injuriando. Das janelas acenavam adeuses, Dona Júlia correspondia; ele, d'olhos baixos, mal tocava no chapéu, muito cosido à mãe, brincando com a bengala. Quando voltaram a esquina sentiu um grande alívio. A velha caminhava lentamente, deslumbrada com aquele esplendor, ela que, tão raramente, deixava a sombra da sua casa, vendo o sol apenas no quintalejo ou no trecho da rua.

Os pesados caminhões, que entravam para os armazéns da Estrada, causavam-lhe medo. Detinha-se de instante a instante agarrando-se ao braço do filho, e diante da estação, atropelada pelos que transitavam, entre carros e tílburis, ficou estonteada, sem saber dirigir-se e foi necessário que Paulo lhe desse o braço levando-a para a calçada onde deviam esperar o bonde da Lapa.

Sentia a vista perturbada com a vida tumultuosa da praça; a claridade intensa ofuscava-a, os ouvidos zuniam-lhe. "Que barulho, minha Nossa Senhora!" Junto a um quiosque, vários homens descalços, em mangas de camisa, discutiam e, como um pequeno, a correr, esbarrasse com ela, Paulo revoltou-se; a velha, porém, serenou-o.

- Deixa, é uma criança; não foi por querer.

O bonde apareceu. Entraram e ela, antes de sentar-se, voltou-se para o lado da casa que deixara, suspirando. Estou só pensando em Violante... e, depois dum silêncio, perguntou baixinho: Soubeste ontem alguma coisa?

- Mamede disse-me que está na pista do cocheiro.

- Que cocheiro?

- Do carro em que ela fugiu.

- Foi de carro!?

- Naturalmente.

Calaram-se. O bonde fez uma parada perto da Rua do Núncio. para a Muda.

- E se prendessem o cocheiro? Ele deve saber onde ela está.

- Mamede vai ver.

Depois dum longo tempo de recolhimento, levada aos trancos pelo bonde, Dona Júlia levantou os olhos e, na sacada duma casa, viu duas mulheres de penteadores brancos: uma sentada, a ler, deixando à mostra um pedaço de perna gorda, a outra muito debruçada, com os cabelos soltos, esvoaçando.

- Que rua é esta?

- Lavradio.

A velha acenou com a cabeça e, como se lhe bastasse a informação, aquietou-se.

- Aqui é a Polícia. Foi aqui que eu estive, disse Paulo.

D. Júlia inclinou a cabeça e foram-se-lhe os olhos por um largo portão, ao longo dum túnel sombrio.

- Ah! meu Deus, se essa gente quisesse!...

Quando chegaram ao Largo da Lapa a timidez retomou-a. Ergueu-se pesadamente e, agarrando-se aos balaústres, foi descendo com esforço.

- Já não sei andar. Se eu saísse sozinha perdia-me por aí. Por onde é? Que sol, Paulo! Isto faz mal. Estou tonta - parece que sai fogo das pedras.

Abriu a sombrinha e convidou o filho. - Chega para nós dois.

- Não, mamãe; eu estou acostumado. Não se incomode comigo.

Ela voltava-se de quando em quando, assustada, como se houvesse ouvido rodar de carros.

- Aquilo ali é o Passeio Público, não é?

- É sim, senhora.

A velha suspirou fundamente.

- Quando vocês eram pequenos, vínhamos quase todos os domingos aqui, com o velho. - E ficou a olhar saudosamente o arvoredo.

- Mas acho isto mais largo...

- Sim, senhora: é que foi aproveitada uma parte do terreno do Convento.

- Logo vi.

Tudo lhe causava admiração: os bondes, em tandem, os carros, os prédios novos. Diante do mar não se pôde conter: parou, lançando os olhos livremente pelas águas que faiscavam; dando, porém, com a Igreja do Outeiro, tremeram-lhe os lábios numa prece. E confessou que estava mais contente porque tinha aquela alegria ante os olhos.

- E os meus santos! - exclamou de repente, estacando.

- A senhora não os arrumou?

- Sim, mas com os balanços da carroça...

- Fique descansada.

- A casa é ainda muito longe?

- Não, senhora. Não vê aquela árvore? É ali. O ponto é magnífico, não acha? Aqui está tudo à mão. Depois, a vantagem de não termos vizinhos fronteiros.

- Lá também não tínhamos.

- Pois sim, mas aqueles trens, aquela lufa-lufa de máquinas... Quem podia com aquilo?!

- Eu já estava acostumada; até me distraía.

- Mau gosto. É aqui, mamãe.

Júlia levantou o olhar, examinando a casa, chegou um pouco adiante para ver o jardim vizinho e, como Paulo empurrasse a porta, a mulher do lado debruçou-se à janela, curiosamente.

- Quem é essa moça?

- Não sei.

- Não vá ser uma dessas mulheres...

Entraram. O cheiro das tintas enchia toda a casa como um hálito mau. Paulo, porém, abriu de par em par as janelas e o ar penetrou correndo os aposentos, purificando o ambiente. Dona Júlia detinha-se, examinava os papéis, o soalho, ainda úmido da lavagem, o teto; abria as bicas, para que a água corresse e, no quintal, ficou um momento parada, pensativa, até que o filho apareceu à porta da cozinha.

- Então?

- É boa. Só o que tem é que é muito devassada.

Paulo levantou os olhos. Pela janela de uma casa alta via-se o interior de um quarto, onde um homem ruivo, em mangas de camisa, meio curvado, fazia o laço da gravata ao espelho.

- Sim, tem esse defeito, mas também pelo preço, neste ponto, não se podia achar coisa melhor.

Dona Júlia concordou, voltando a examinar os aposentos, um a um, com cuidado minucioso. Na sala, chegou um instante à janela, voltou-se para a montanha: lá estava a igreja, muito branca, dominando o mar, como uma atalaia.

Tão embevecida ficou que não via os bondes passando, cheios, rápidos como os trens que, diante da outra casa, iam e vinham, dia e noite, abalando a rua tranqüila. A mulher, à janela da casa contígua, com o colo farto achatado no peitoril, acompanhava os bondes com um olhar cobiçoso, sorrindo e, quando a rua reentrava no sossego, punha-se a cantar, bambaleando-se.

As andorinhas não tardaram. Como Dona Júlia já conhecia a casa, tirou a capa e foi determinando a colocação dos móveis. As duas da tarde, pouco depois de haver partido a última carroça, chegou Felícia, cansada, suada, com embrulhos, queixando-se da soalheira.

Paulo, descalço, armava os móveis, enquanto a velha arranjava alguma coisa para o jantar. O gato, em liberdade, corria a casa, desconfiado, miando, a saltar de móvel em móvel, farejando, e o gaturamo, virando e revirando a cabecinha, piava, saudoso, como se sentisse falta do seu antigo retiro e do trecho de céu que costumava namorar do fundo da sua prisão estreita.

A noite já a casa tinha largueza e conforto, arrumada e, diante dos santos, na cômoda, ardia a lamparina vigilante. Paulo, estafado, bocejava estendido no sofá, sem fome; à mesa mal debicou, queixando-se da cabeça. Recolheram-se cedo. Só Felícia andou até tarde na cozinha a bater marteladas, arranjando as prateleiras.

Dona Júlia não pôde conciliar o sono: sentia-se oprimida, pensando na filha. Que seria dela? Talvez que, àquela hora, a pobrezinha estivesse a bater à porta da casa abandonada, arrependida, infeliz, procurando os seus. E onde iria repousar? Quem lhe daria agasalho? Suspirou, com os olhos nas duas imagens que brilhavam à luz trêmula da lamparina. Sentia como um remorso, parecia-lhe que, com aquela mudança, abandonara, de vez, a filha.

Ah! nunca mais a veria! nunca mais! Orgulhosa, como era, sentindo-se desprezada, nunca mais tornaria a casa, preferindo à humilhação a vida miserável. Felícia, arrastando um móvel na sala de jantar, interrompeu o silêncio. A velha sentou-se na cama e chamou a negra, que acudiu logo, com um martelo na mão.

- Ah! Felícia, não posso dormir pensando em Violante.

A negra coçou a cabeça e, encostando-se à cômoda, pensativa, disse baixinho, depois de um silêncio:

- Olhe, minh'ama, eu me lembrei de uma coisa... Tenho medo de falar por causa de nhonhô.

- Que é?

- Hum! para vosmecê ir dizer... Eu, não. Não quero história comigo.

- Eu sou criança, Felícia?

A negra ainda hesitou, mas aproximando-se da cama, cochichou em voz misteriosa:

- Minh'ama não se lembra do meu reumatismo?

- Sim.

- Vosmecê sabe que eu andei por aí tudo, na mão de uma porção de médicos, gastando os cabelos da cabeça, e nem para trás, nem para diante. Vosmecê sabe.

- Sim.

- Nem vosmecê é capaz de imaginar como foi que fiquei boa.

- Não.

- É, mas se eu disser vosmecê não acredita; é até capaz de pensar que estou maluca. Eu sei.

- Ora, Felícia...

- Vosmecê acredita?

- Não sei: fala.

- Pois foi com o espiritismo - sussurrou, curvada, d'olhos muito abertos.

- Com o espiritismo?

- Sim, senhora. Foi com uma água que eu trouxe lá da sociedade.

- E tu acreditas nessas coisas, rapariga?

- Como acredito em Nosso Senhor que está no céu, minh'ama, - afirmou de mãos postas.

Dona Júlia acomodou-se na cama e a negra, caminhando em pontas de pés, encostou a porta do quarto, voltando para junto da velha, com uma ânsia de proselitismo.

- Olhe, minh'ama, quando Nhá Violante saiu, eu quis ir lá perguntar por ela; não fui porque não tive tempo, mas estou certa de que os espíritos hão de dizer a verdade. A gente, pedindo com fé, consegue tudo. Eu vi, minh'ama. Quando foi pela revolta, uma perda, que tinha um filho soldado, foi lá saber notícia dele, e apareceu um espírito dizendo que ele tinha morrido num lugar desses.

Dona Júlia puxou o lençol, sentindo um grande frio nas costas como se, pela fresta da porta, esfuziasse uma corrente de ar; e Felícia continuou:

- Depois, quando tudo acabou, os companheiros do rapaz procuraram a mulher e repetiram, tintim por tintim, tudo quanto o espírito tinha dito. Eu vi, minh'ama! - e, inclinando-se, rebaixou com dois dedos as pálpebras moles, mostrando os grandes olhos brancacentos. - Vosmecê com essa gente da polícia não arranja nada. Se vosmecê quiser experimentar, como nhonhô sai todas as noites, eu levo vosmecê lá. Todo o mundo fala, mas vendo é que é.

Dona Júlia meditava, sentindo-se atraída pelo mistério e, longo tempo calada, as mãos cruzadas ao colo, os olhos baixos, esteve pensando nas palavras sibilinas da negra. Por fim levantou a cabeça:

- E para entrar?

- Vamos juntas. Olhe, Dona Castorina, lá da outra rua, foi uma noite comigo por causa da doença do marido e agora vai sempre: é sócia.

- E se Paulo souber?

- Como é que ele há de saber? Só se vosmecê disser. Olhe, daqui - e bateu nos beiços afunilados - daqui não sai nada. A gente vai, minh'ama faz a sua consulta e está aí.

- Em que dias é?

- Todos os dias há reza e depois há consulta; amanhã mesmo.

Dona Júlia pôs os olhos no Senhor dos Passos, como a pedir-lhe conselho; ouvindo, porém, a tosse do filho, estremeceu assustada, mostrando a porta à negra. Felícia foi-se à sorrelfa.

Só, no quarto novo, impressionada com o que ouvira, com a acuidade dos sentidos própria dos assombrados, Dona Júlia ouvia arrepiadamente os mais leves ruídos: ora era um móvel que estalava ríspido, ora a crepitação da lamparina. Na rua tiniam as campainhas dos bondes. O cheiro oleoso de tinta tornava-se mais forte e denso e, de instante a instante, um golpe de ar frio, penetrando, ia gelar-lhe o corpo.

Idéias sinistras esvoaçavam-lhe no espírito alvoroçado. Passeava olhares pelo quarto, ainda desconhecido, como a procurar a causa da estranha sensação que a aterrava. A negra, que, até então, tivera como uma criatura simples, assumira aos seus olhos o aspecto macabro duma bruxa evocadora de mortos. Sentia no quarto a passagem fluídica dos imateriais, as invisíveis borboletas da morte andavam por ali como as falenas noturnas esvoaçando em redor da luz.

Faltava-lhe o ar, um grande peso oprimia-lhe o peito, sombras tênues fluíam diante dos seus olhos escancelados e, de quando em quando, feria sinistramente o silêncio o estalo seco dum móvel.

"Ah! minha Nossa Senhora, para que Felícia veio falar dessas histórias agora de noite!? A gente já anda com a cabeça tão cheia de coisas..." A porta foi-se abrindo lentamente, surdamente.

Com o coração precipitado voltou-se hirta, agarrando-se à maçaneta da cama, a boca meio aberta e seca e, de olhos na porta, viu as pupilas fosforescentes do gato que alimiavam como dois fogos-fátuos. Enxotou-o e o animal, escabreado, num pulo, desapareceu.

Deitou-se muito encolhida, com os olhos nos santos, rezando. Mas um surdo rumor, que parecia subir do soalho, como um gemido abafado, aterrou-a. "Ah! meu Deus, Felícia não podia ter deixado essas conversas para amanhã?..."

Falando, porém, não tirava a atenção do rumor soturno que vinha tristonhamente, de instante a instante, como o arquejar oprimido de um emparedado. O ouvido, porém, foi-se habituando e ela reconheceu a voz grave do mar que desenrolava as ondas ali perto, na praia. "Ah! minha filha..."

Fechou os olhos, logo, porém, abriu-os, por lhe parecer haver sentido leve sussurro como de asas de beija-flores - nada: a chama da lamparina, esguia no morrão em forma de cravo, esfiava um filete de fumo. Passou a mão pela fronte, encolhendo-se mais. O sono fugia-lhe dos olhos, o coração batia-lhe com tanta força que ela o ouvia distintamente. Era o medo que a empolgava - tinha vontade de mover-se e temia esticar uma perna, dobrar um braço, respirar mais alto. Que haveria debaixo da cama? e lá fora? e dentro da noite? sombras, sombras peregrinas, sombras errantes, o hálito apavorante que os sepulcros exalam. "Ah! minha Nossa Senhora!"

Violante, porém, voltou-lhe à lembrança foi como uma luz rompendo trevas. Era também uma visão de morta. Reminiscências surgiram como espectros; o marido, um menino que ela vira morrer de febres, e a mãe, tão velha na morte! sorrindo e sumindo-se vagarosamente como se, além mesmo, no espaço, lhe fosse penoso andar.

Uma recordação, porém, assombrou-a: a morte dum velho negro. antigo escravo da família. Viu-o esgrouviado, agonizando, contorcendo-se, a boca escancelada, os olhos em alvo, numa aflição inconcebível. grugulhando, com o peito nu, ripado pelas costelas salientes, o ventre cavado, a pedir ar, ar, ar...! Levantou-se da cama descalça, a tremer e medrosa, como se sentisse duendes pela casa, passou à sala de jantar e, no escuro, pôs-se a bater na mesa com a mão espalmada, chamando:

- Felícia! Felícia!

A negra, em fraldas de camisa, apareceu sobressaltada:

- Que é, minh'ama?

As duas mulheres encontraram-se na sala escura.

- Ah! Felícia, para que havia você de falar dessas coisas agora... Não posso dormir.

- Minh'ama está com medo?

Dona Júlia respondeu com um fundo suspiro recolhendo-se ao leito.

- Agora tem paciência: vem ficar comigo.

- Eu vou buscar a minha cama. - E tornou à sala voltando, pouco depois, com uma esteira enrolada; estendeu-a e, forrando-a com um cobertor cinzento, sentou-se. O seu busto negro, magro, destacava-se da camisa branca, que lhe escorria pelo peito linguajado pelas mamas pelancudas. Baixinho, com a sua voz misteriosa, perguntou de novo: Minh'ama está com medo?

- Não sei: ando nervosa, tudo me impressiona.

- Quanto mais se vosmecê visse o que eu vejo. Não se lembra daquela noite em que vosmecê me encontrou de joelhos, na cozinha, rezando e chorando?

- Sim...

- Pois eu estava conversando com meu filho. Ele não me deixa - é de noite, é de dia - está sempre comigo. Como é que eu não tenho medo? A gente estando bem com Deus não deve ter medo. Que é que vosmecê pensa? Eles andam pela casa. Há gente que vê. Eu não vejo, mas ouço: eles falam, eles gemem; às vezes até cantam...

- Está bom, Felícia, vamos deixar isso para amanhã. É tarde; preciso dormir.

- Eu falo mesmo por vosmecê.

Deitou-se e, cobrindo a cabeça, o seu corpo magro e comprido, muito enrolado no lençol, ficou imóvel e hirto como o de uma múmia. Dona Júlia esteve algum tempo d'olhos abertos, a pensar naquele mistério das almas visitadoras. Felícia ressonava e, pouco a pouco, o sono foi-lhe também pesando nas pálpebras. De instante a instante abria os olhos já empanados, logo, porém, os fechava e adormeceu, por fim, cansadamente.

No dia seguinte, muito cedo, Paulo reclamou o almoço: tinha umas voltas a dar na cidade; não podia continuar naquela vida de malandrice, precisava arranjar-se, o meio-soldo que recebiam mal dava para a casa. Dona Júlia concordou, posto que sofresse, compreendendo que ele abandonava Violante. Quando o viu sair meteu-se na cozinha em conversa com a negra, pedindo informações sobre a sociedade espírita: "Se era decente, se iam lá senhoras". Restava-lhe o sobrenatural como última esperança.

O dia correu tristonho, abafadiço, em pesado torpor. O mar, grosso e liso, parecia d'óleo e, para a tarde, acumulando-se o céu de nuvens negras, ela começou a preocupar-se com o filho, tanto, porém, que o viu entrar, respirou desafogada. Paulo estava irritado: ia e vinha pelo corredor a resmungar.

- Que tens?

- Que tenho? A senhora ainda pergunta?! Estou sem nada e tudo causa da senhora minha irmã. Fui dispensado da revisão do Equador, porque não mandei um aviso ao secretário, prevenindo-o da minha falta. É isto! E eu que cave!

A velha, acabrunhada, não disse palavra: ficou a olhar o céu. Relâmpagos luziam, o calor abafava.

- E agora?

- Ah! agora...

- Por que não falas ao compadre?

- Qual compadre! Eu arranjo-me, descanse.

A tormenta desencadeou-se nas primeiras horas da noite. Ríspido o vento batia com as portas, vergava as árvores e o mar arrebentava com fúria de encontro à muralha transbordando, alagando a rua. Paulo recolheu-se ao quarto e abriu um livro. Lia sem entender - eram os olhos que passeavam sobre as letras, o espírito andava longe, ora na estalagem ao lado de Ritinha, ora na revisão do Equador.

Já teriam os rapazes conhecimento da fuga de Violante? Encolheu os ombros com indiferença e, acendendo um cigarro, pôs-se a soprar baforadas para o teto. Ergueu-se revoltado contra a vida e pôs-se a passear pela casa, a conjeturar. Quando se deitou estava animado de esperanças, com grandes planos de trabalho: via-se feliz, independente, com auras propícias de fortuna. O dia amanheceu chuvoso; às nove horas, com um ligeiro almoço, lá saiu o estudante a perseguir o sonho.

Correram dias tristes e vazios. Paulo, inteiramente esquecido da irmã, entregou-se a outros cuidados. Saía cedo, a pretexto de arranjar a vida, voltava para jantar ou entrava tarde, noite alta, sempre a queixar-se da sorte, mal-humorado.

Dona Júlia não descorçoava, posto que a vida se fosse tornando, a mais e mais, apertada e difícil. Aproximava-se o fim do mês e, como o filho ainda não houvesse encontrado colocação, uma manhã a velha foi procurá-lo e, carinhosa, lembrou-lhe que tinha "algumas jóias e umas pratas". Que não se amofinasse, não haviam de viver sempre em dificuldades. Deus havia de ter pena deles. Paulo revoltou-se: "Não! não empenhava jóias. Ela que escrevesse uma carta ao Fábio, ele não fazia favor nenhum. Mais pedira ele ao pai." A velha meneou com a cabeça:

- Não, meu filho; não escrevo. Para quê? Pois não viste que nem mais aqui apareceu para me ver? Falou, prometeu e... até hoje, nada. Não! Que tem? empenhas hoje, tiras amanhã; não é vergonha. Nós não podemos ficar desprevenidos. Não estás procurando emprego? Então... Eu também farei, por meu lado, o que puder. Já agora não penso em Violante... Que Deus tenha pena dela. Não me escreve, não se lembra de mim... paciência, não vou amaldiçoá-la por isso. Leva; não saio, não uso jóias. Que tem? É melhor do que ficarmos aqui sujeitos a alguma coisa. Quando puderes tiras.

Ele recebeu o embrulhinho, deixou-o sobre a mesa, e a boa velha, satisfeita por lhe haver acalmado o espírito, saiu do quarto, sorrindo. Ele desfez o pacotinho e viu um grande broche antigo, de ouro, cravejado de pedras. Não se lembrava daquela jóia, nunca a vira ornando o colo materno. Era uma relíquia do passado, um remanescente dos tempos felizes. Calculou que daria uns quatrocentos mil-réis e, como andava com Mamede em excursões noturnas, de tasca em tasca, de espelunca em espelunca, lembrou-se de tentar a sorte com o que sobrasse do dinheiro, pagas todas as contas.

- É possível que eu não venha jantar, disse ao sair; vou dar uns passos por aí a ver se encontro alguma coisa.

- Não te esqueças da casa.

- Não me esqueço.

- E olha: Eu também talvez saia um pouco com Felícia, à noite.

- A senhora?!

- Sim.

- Onde vai? - perguntou sorrindo, achando um "quê" de cômico naquela resolução da velha.

Dona Júlia hesitou um momento, depois, também sorrindo, disse:

- Vou aí a um lugar... Quero ver se arranjo umas costuras.

- Pois a senhora quer coser para fora?

- Então, meu filho?!

- Ora, mamãe... deixe-se disso. A senhora pode lá com costuras!

- Não te importes. Tenha eu saúde.

- Pois sim... E a chave?

- Isto é que é... Já me lembrei de a deixar à janela, por dentro, com um barbante para se puxar.

- Ou embaixo da porta, lembrou.

- Sim, é melhor. Pois fica assim: deixo embaixo da porta, do lado esquerdo.

- Bem. Até logo.

- Até logo. E Deus te acompanhe.

Paulo saiu com ânsia de chegar à casa de penhores, para conhecer o valor da velha jóia. Dona Júlia foi à cozinha. Felícia estava no quintal, lavando, ao sol, com o cachimbo nos beiços. Chamou-a. A negra levantou o busto, passando as mãos pelos braços, a raspar a espuma que os cobria, e caminhou para a velha, que se encostara a um dos alizares da porta:

- Estou com vontade de ir hoje, Felícia. Pode ser?

- Como não? Mas minh'ama falou a nhonhô?

- Falei.

- Dizendo que ia lá? - exclamou alarmada.

- Estás doida!

- Ahn... E vosmecê há de ver como se descobre tudo. - A fisionomia da negra iluminou-se. - Vosmecê já devia ter ido.

- Não acredito nessas coisas.

- Por que, minh'ama? Então vosmecê não acredita nas almas?

- Não sei. Depois, tenho tanto medo... Tanta gente tem endoidecido por causa dessas histórias.

- Ora o quê, minh'ama!

- Ora o quê?!

- Pois eu sei de muitas pessoas que ficaram sofrendo depois que se meteram com o espiritismo. Enfim, seja o que Deus quiser. Como não faço mal a ninguém, nem vou com más intenções... A que horas começa?

- Às sete e meia. A gente saindo daqui às sete, chega lá com tempo.

- Pois sim.

10

Era noite fechada. Na sombra vasta do mar fogos piscavam e, longe, fulgiam as luzes litorâneas de Niterói, como pedras de um adereço em escrínio. Dona Júlia, enquanto a negra fechava portas e janelas, com os cotovelos na cômoda, a face inclinada sobre as mãos postas, rezava. Quando Felícia apareceu, traçando o xale, persignou-se e soprou a lamparina. A luz de um fósforo, foram as duas seguindo vagarosamente pelo corredor escuro.

O céu estava negro e pesado e um vento frio soprava do mar. Felícia fechou a porta e, cautelosamente, raspando a soleira, escondeu a chave no lugar convencionado.

- Vamos, minh'ama.

Foram caminhando. A negra ia orgulhosa da conquista que fizera, já imaginando as perguntas com que a haviam de assaltar no Centro, quando a vissem entrar com uma senhora respeitável. Sentia-se superior com aquela glória de iniciadora e, sôfrega, bem que Dona Júlia não pudesse sair do passo vagaroso, apressava-a: "Que já era tarde. Podiam encontrar a sessão no meio". E a velha, de cabeça baixa, sondando o terreno com o guarda-chuva, lá ia.

- Mais devagar, Felícia; eu não vejo bem e a noite está tão escura. Não há um bonde para lá? Eu a pé não agüento.

- Há bonde, sim senhora: ali no largo.

- Sim, porque eu já não sei andar; depois com a falta de vista, está sempre me parecendo que vou cair num buraco. - De repente, como ia pensando na sessão, cochichou: Não vá aparecer por lá algum conhecido. Deus me livre que Paulo saiba que ando metida nessas coisas.

- Não tenha medo, minh'ama: eu conheço todo o mundo que vai lá.

No Largo da Lapa, diante dos tílburis estacionados junto à igreja, Dona Júlia teve um sobressalto, aconchegando-se à Felícia.

- Não vá um desses cavalos disparar, rapariga.

- Não tem perigo, minh'ama. Que medo de vosmecê. Vamos por aqui.

Mas um bonde partia, e a negra, esquecendo a senhora, precipitou-se, a correr, com o xale a espadanar, aos psius! A velha fez um esforço supremo e foi levando o pesado corpo aos rebolos, arquejando e, ao alcançar o bonde, com as pernas trêmulas, ofegante, agarrou-se aos balaústres, guindando-se.

- Você foi correr, Felícia... sabendo que eu não posso - repreendeu esbaforida. - Estou aqui pondo a alma pela boca.

O bonde partiu.

A velha encolhia-se, receosa; mal olhava para os lados, indiferente às casas que fulguravam, profusamente iluminadas, com refletores radiantes; às músicas, que ressoavam em tarambotes; à multidão que formigava às portas dos chopes, como nuvens de mariposas em torno de claridades. Aterrava-a a idéia de um encontro com o filho e, quando a negra mandou parar o bonde em frente ao teatro São Pedro, teve um choque e perguntou baixinho:

- É aqui?

- É ali adiante.

Atravessaram a praça em direção à Travessa da Barreira. Na esquina, junto a um quiosque, marinheiros chalravam. Entraram em uma viela escura e, diante duma porta estreita, Felícia deteve-se segredando com mistério:

- É aqui, minh'ama...

Dona Júlia sentiu um grande abalo, as pernas curvaram-se-lhe e, hesitante, lançando os olhos pela comprida escada, sussurrou:

- Não sei que é, Felícia... mas estou com medo.

- Medo de que, minh'ama? Aqui não há nada que meta medo, é uma casa santa, vosmecê vai ver Nosso Senhor lá dentro. Vosmecê tem medo de entrar na igreja?

- Ah! na igreja...

- Pois isto aqui é como uma igreja - a gente reza e ouve os conselhos do irmão.

Um homem magro passou por elas encolhido, sem voltar o rosto e foi-se vagarosamente, escada acima, a tossir.

- Quando me lembro de Dona Amélia...

- Então vosmecê pensa que Dona Amélia ficou maluca por causa do espiritismo? Ela nunca veio aqui, isso eu juro a vosmecê; nunca veio. Pode ser que em outros lugares haja falta de respeito, aqui não. Mas vamos, minh'ama. Não sei que parece a gente aqui parada, feito duas tolas. Minh'ama experimenta; se não gostar não volta e está acabado.

- Pois sim.

Entraram. Dona Júlia, com as mãos geladas, o peito oprimido, subia lentamente. Em cima, suspirando, cansada, lançou os olhos pela sala vasta e sombria, escassamente alumiada por dois amortecidos bicos de gás. Junto à escada havia uma caixa de esmolas e ela procurava dinheiro no bolso fundo do vestido, quando a negra chamou-a para apresentá-la a um crioulo que estava de sentinela a um grande livro aberto sobre uma mesinha.

- Minh'ama, seu Damião.

O crioulo inclinou-se, estendendo a mão áspera e suada e, mostrando o livro, pediu: que assinasse. Trêmula e receando que, mais tarde, algum conhecido descobrisse ali a sua assinatura, escreveu simplesmente "Júlia" em letras tortuosas, mas o crioulo insinuou sorrindo:

- É o nome todo, minha senhora.

Tomou de novo a pena e completou a assinatura.

Logo o crioulo apresentou-lhe uma folha de papel implorando alguma coisa para o irmão Norberto, "que continuava enfermo, cercado e filhos". Ela deu-lhe uma nota, limitando-se a escrever na lista: Uma cristã. Felícia adiantou-se.

- Vamos, minh'ama. - Dona Júlia dirigia-se para a frente da sala quando a negra a deteve: É por aqui. Lá é para os homens.

Renques de cadeiras ocupavam todo o recinto abrindo uma estreita passagem central. As primeiras filas eram exclusivamente destinadas às mulheres. Dona Júlia sentou-se junto duma negra magra, de trunfa, que cabeceava com uma garrafa ao colo. Da sombra triste e calada rompia, de quando em quando, uma tosse rouca.

A sala não tinha outro ornamento senão as estrelas de ouro no papel azul que a forrava, dando-lhe aspecto celestial. Ao meio do teto havia um embrechado de madeira como um imenso ralo, braços de gás pendiam de ponto em ponto. Duas portas ao fundo - a da esquerda fechada, a da direita aberta sobre escuro corredor. Estantes carregadas de livros ladeavam a grande mesa pousada sobre um estrado. Acima duma das estantes inclinava-se um quadro preto com a imagem de Cristo agonizante e, justamente por trás da mesa, na parede constelada, brilhava, em caixilho d'ouro, a legenda:

Fora da caridade
não há
salvação.

Mais adiante, em moldura esguia, o aviso: "É proibido fumar." Felícia, vendo que Dona Júlia andava atentamente com os olhos de um para outro lado, disse-lhe baixinho:

- Então? Vosmecê estava com tanto medo... e agora? Não é uma casa séria? Eu sei que muitos falam daqui, mas é de inveja, minh'ama. Vosmecê não imagina como a gente sai consolada desta casa.

A velha conservava-se calada, olhando sempre, examinando todos cantos. Passos soavam na escada, depois um toc-toc como de muletas que viessem batendo pelos degraus. Duas negras entraram, falando com intimidade ao crioulo da porta. Uma trazia uma criança pela mão e outra ao colo, tossindo, com a cabeça deitada sobre o seu ombro, em prostração doentia. Depois apareceu uma cabrocha magrinha, enfezada, com a pele toda em rugas, os olhos miúdos como vidrilhos, brilhando sinistramente no fundo das órbitas, muito corcovada, abordoando-se a uma bengala. E, pouco a pouco, a sala se foi enchendo - as mulheres tomavam os lugares reservados, iam os homens para as últimas cadeiras ou para as janelas.

Dona Júlia começava a impacientar-se, quando surgiu do corredor escuro, em mangas de camisa, arrastando chinelas, um mulato arremangado. Logo ao entrar na sala, reconhecendo uma das negras, estendeu-lhe a mão, muito alegre, detendo-se a conversar, mas passou adiante, afagando uma criancinha que choramigava. Por fim, levantando a cabeça, bradou com autoridade:

- Estamos na hora!

Os que entravam caminhavam em pontas de pés, sentando-se cautelosamente. Três marinheiros apareceram ao alto da escada, olharam, e já se dirigiam para as primeiras filas, quando o mulato falou: "Não, lá pra baixo, patrícios. Aqui é das senhoras." O mulato olhava insistentemente para Dona Júlia. Felícia chamou-o: ele adiantou-se risonho.

- Esta é minh'ama que vem fazer uma consulta.

Dona Júlia baixou os olhos, vexada, temendo que a negra falasse do seu tormento, contando a um estranho as angústias que lhe alanceavam o coração. Mas a um psiu, vindo do fundo corredor, o mulato voltou-se.

Na moldura de trevas, como essas figuras ebúrneas da arte bizarra dos japões, coladas sobre cetim negro, apareceu uma mocinha pálida, magrinha, de cabelos ruivos despenteados. O mulato acudiu-lhe ao chamado, cochicharam e, logo em seguida, ele subiu ao estrado e acendeu os dois bicos de gás que iluminaram a mesa. Houve um sussurro na sala abafada - cadeiras arrastadas, pigarros; uma criança pôs-se a chorar.

Da rua entraram na sala taciturna as rajadas alegres de um dobrado. Um dos marinheiros foi à janela, outro seguiu-o, mas a música perdia-se, morria na distância, como levada pelo vento, e o silêncio recaiu. Dona Júlia, vendo o movimento dos assistentes, compreendeu que se iam passar coisas estranhas, e chegou-se muito à Felícia, numa necessidade de proteção. Cortava apenas o silêncio uma tosse intermitente que vinha de um canto.

Súbito, rompendo da treva do corredor, um homem apareceu, ligeiro, irrequieto, com o lenço em volta do pescoço. Subiu logo para o estrado, sentou-se à mesa e disse: "Deus esteja convosco". Um murmúrio correu pela sala, como a passagem do vento nas árvores. Uma mocinha, que ocupava uma das primeiras cadeiras, a cabeça pendida sobre o colo magro, estremeceu violentamente, com um suspiro entrecortado, e a cabrocha, persignando-se, deixou cair o cajado, com estrépito; todos voltaram-se, como assombrados.

O menor incidente para aquele bando passivo assumia o caráter de uma revelação superior; de tudo tiravam presságios, descobrindo nos mais ligeiros e insignificantes ruídos - o sussurro da chama do gás que o vento vergava, uma folha de papel que voava, o rangido de uma porta, influências misteriosas de espíritos visitadores. O homem, todo de preto, com uma barba curta, olhinhos miúdos, profundamente encovados, vivíssimos, o cabelo escorrido, empastado na testa, com o cotovelo fincado na mesa, a fronte apoiada na palma da mão, folheava atentamente um livro.

Um dobre de sino rolou longamente. Alguém suspirou com sofrimento: "Ai! meu Deus". Cabeças voltaram-se, curiosas daquela mágoa e o infeliz, um velho esquelético, de grandes barbas amarelecidas, pendeu a cabeça sobre o peito, como a um peso grande e insuportável.

Lentamente o homem pôs-se a ler uma passagem evangélica. As palavras saíam-lhe da boca engroladas, quase ininteligíveis; por vezes eram como um murmúrio, e todos tinham os olhos nele, imóveis, extáticos. Uma criança rompeu em pranto e, como se quisesse aproveitar aquele rumor, que interrompia a pregação, o enfermo, encantoado, pôs-se a tossir cavernosamente.

Em passos surdos um homem atravessou a sala - os sapatos gastos, sem salto, não faziam rumor. Velho, calvo, com uma barba rala emoldurando a face lívida, seguiu direito para a mesa, abanando-se ligeiramente com um leque. O que lia ergueu-se e, cedendo-lhe o lugar, pôs-se de pé, fechou o livro e entrou a falar da Piedade:

"O espírita não tem o direito de matar, mesmo em legítima defesa não deve levantar mão criminosa contra o seu semelhante. Se algum dia um de vós, meus irmãos, for atacado por um homem cuja razão obscurecida o leve ao crime, em vez de responder ao fogo com o fogo, ao ferro com o ferro, deve procurar chamar o transviado ao bom caminho com palavras virtuosas e, se não conseguir convencê-lo, é preferível deixar-se matar a cometer o crime nefando de assassínio, porque, na outra vida, esse ato de piedade cristã será premiado largamente por Deus.

"Os espíritos sofrem nas reencarnações. Eu, por exemplo, meus irmãos, fui Pedro Arbues, o grande inquisidor. E hoje, por que sofro tanto a calúnia, a ameaça de morte, as dores físicas, as provações morais? Pelo que faço nesta vida de agora? Não, porque, iluminado pela claridade divina, o meu espírito segue pelo caminho direito da Verdade.

"Sofro pelo que fiz na primeira encarnação; sofro porque fui surdo aos lamentos dos infelizes que eram levados às fogueiras; sofro porque não dei atenção aos gritos dos pobrezinhos, aos gemidos das crianças, aos soluços dos inocentes.

"E vede: Pedro Arbues, que foi um rancoroso, é santo, teve a canonização, a Igreja deu-lhe um lugar honroso no coro de Deus e eu padeço por ser justo, sofro vexames e tormentos porque não me desvio da virtude.

"Não julgueis, porém, que me revolto - resigno-me e bendigo todos os sofrimentos, que são a expiação de antigas culpas. Terei a recompensa quando deixar esta carne efêmera para residir, em puro espírito, à direita do Eterno. Nunca penseis em vingança, meus irmãos!" - exclamou fanhosamente.

O velho, d'olhos fechados, repoltreado na cadeira da presidência, abanava-se ligeiramente, como os acrobatas japoneses, virando, revirando a cabeça. O outro continuou: "Os nossos padecimentos são insignificantes em relação aos nossos crimes. Ainda penando devemos ser gratos à misericórdia divina". Dona Júlia acenou afirmativamente com a cabeça. "Quando virdes um homem torturado, lastimai-o, mas não o julgueis vitima de uma injustiça de Deus, não! Ele buscou, com atos, aquelas dores; ele mesmo abriu as feridas em seu corpo e preparou a ruína da sua casa. Os julgamentos de Deus são retos e inexoráveis."

Limpou o suor da fronte, depois, atirando o lenço à mesa, disse, inspirado, cravando os olhos em Dona Júlia:

"Não vos revolteis contra Deus. Por que duvidais do seu poder? Por que blasfemais? Por que o vosso filho, desvairado pelas paixões, desprezou o vosso carinho, enveredando, alucinadamente, pelo caminho do vício? Confiai na Providência e a ovelha tornará ao redil, trazida pelo arrependimento."

Dona Júlia estremeceu na cadeira e chegou-se mais à Felícia, com os olhos imensamente abertos, a boca em hiato, trêmula e fria. Era justamente a história lamentável da sua vida que aquele homem denunciava; era a sua chaga que ele esvurmava, expondo-a aos olhos de todos e ela, humilhada, envergonhada e medrosa, repuxava o xale da negra, chamando-a em voz surda:

- Felícia... Felícia. - A negra inclinou a cabeça para ouvi-la: Ele sabe?

- Como não, minh'ama!?

- Foste tu que lhe disseste.

A negra mirou-a sem dizer palavra. Mas o homem continuava pregando a misericórdia, mostrando Jesus a perdoar as ofensas, até quando as lanças se lhe embebiam nas carnes. Dona Júlia não ouvia, preocupada com as palavras misteriosas que ele pronunciara, tão de feição à sua angústia e foi preciso que Felícia a chamasse para que ela saísse do êxtase doloroso e desse atenção ao pregador:

"Meus irmãos, concentremo-nos para que os nossos bons fluidos se convertam em medicina, preparando a água que deve curar os enfermos.

Uma velha ajoelhou-se e, d'olhos no teto, mãos postas, estatelou-se em ascese; e o homem pôs-se a dizer a prece lentamente, com o surdo e arquejado acompanhamento de toda a devota assembléia.

"Imploramos aos Bons Espíritos e aos nossos Anjos da Guarda, em nome de Deus, nosso Bom Pai de Amor, para envolver-nos com os seus fluidos salutares, a fim de transmiti-los a esta água, que será medicamento, porque servirá de veículo aos nossos bons fluidos. Desejamos, antes dos curativos dos nossos corpos, curar os espíritos, arrancando de nós o ódio, o crime, o orgulhoso egoísmo, que são enfermidades d'alma, piores que todos os sofrimentos da vida terrestre. Bom Pai, nós queremos nos regenerar e, animados pela fé ardente no vosso divino amor e pela certeza inabalável na vida futura, pedimos a proteção dos Espíritos Elevados, nossos filhos e nossos irmãos amados, em vosso santo nome, para que se faça em nós, sempre, a vossa santa vontade."

Terminada a prece, persignaram-se todos, com um murmúrio devoto, e o homem declarou:

'Que os doentes podiam ir encher as suas garrafas."

Produziu-se sôfrego alvoroço. As mulheres tiravam garrafas debaixo nos xales, desembrulhavam-nas e lá iam, aos apertões, arrastadamente, em direção à pia, cuja torneira jorrava gorgolejando.

Era a água santa, impregnada de fluidos espirituais, benzida pelos anjos de Deus, e aqueles que a recebiam veneradamente saíam consolados. Uns bebiam ávidos, não por sede, mas porque sofriam e logo, aliviados, como se os bálsamos angélicos houvessem operado instantaneamente, retiravam-se fazendo lugar aos que chegavam. E interrogavam-se sobre as melhoras: se já caminhavam com mais segurança; se viam melhor; se as dores haviam abrandado.

Um velho meteu-se a um canto com a sua garrafa e, despejando a água no côncavo da mão, pôs-se a banhar os olhos, e a negra, despertando a criança enferma, chegou-lhe à boca seca um copo d'água, que a pobrezinha sorveu com sofreguidão, aos grandes goles, arquejando. O homem da prédica, enquanto os crentes cercavam a pia, dirigiu-se a Dona Júlia. A velha, profundamente abalada por aquele espetáculo estranho, só deu pelo apóstolo da santa missão quando Felícia chamou-a:

- Minh'ama.

Voltou-se e, vendo o homem, muito trêfego, a agitar-se diante dela, com os olhinhos vivos e lampejantes cheios de malícia, sentiu um arrepio, mas passivamente, dominada, encolheu-se cruzando os braços.

- É a primeira vez que vem aqui, minha senhora?

- Sim senhor.

- É a senhora de quem eu falei a vosmecê: minh'ama - disse Felícia com um sorriso servil.

O homem acenou afirmativamente com a cabeça e, como a velha cabrocha se aproximasse, batendo com o cajado, chamou-a e, apresentando-a, disse:

- Olhe, minha senhora, esta criatura que aqui está demonstra, à evidência, a verdade da nossa crença. Eu sei que por aí assoalham que vivemos a explorar a ignorância dos ingênuos, entretanto, quando apresentamos provas, riem com ironia porque não podem refutar a verdade dos fatos. Aqui está uma. - Dirigindo-se, então, à cabrocha, perguntou: Para que é que você vem buscar esta água?

A interpelada, como se não quisesse confessar a sua crença em presença de uma estranha, respondeu secamente:

- Porque venho!

- E porque tem sentido melhoras, não?

- Apois... se eu não sentisse não vinha.

Mas a língua desatou-se-lhe, gárrula, e contou toda a história da sua moléstia: Três meses entrevada numa cama, gemendo, sem uma ora de alívio, até que uma conhecida lhe deu uma garrafa daquela água. Foi pronto beber que logo começou a melhorar, como por milagre. Ao cabo de quinze dias estava outra: andando, trabalhando. Mostrou a garrafa e, avaramente, guardou-a, de novo, debaixo do xale roto.

- Eu também não acreditava, minha dona, nem queria saber dessas coisas, mas vi! Não foi coisa contada, foi comigo. Estou assim. - Levantou a saia e mostrou o pé hediondamente deformado pela elefantíase, uma perna monstruosa, com a carne grossa, engelhada em dobras encoscoradas, coberta de cicatrizes.

Dona Júlia olhava, quando uma mocinha parou diante dela, com uma sacola, esmolando para os pobres. Felícia atirou umas moedas, por ela e pela ama e o homem chamou a crioula que ninava a filha enferma.

- Então: como vai ela?

- Parece que agora vai um pouquinho melhor, com a graça de Deus.

- É outro caso, - explicou o apóstolo. - Esta criança não dormia, com a coqueluche, estava inchada e, com cinco dias de tratamento... Cinco dias, não?

- Cinco, sim, senhor; uma colherinha d'água no café.

- Está melhorando. E dorme bem, não?

- Ainda tosse, mas não tanto como tossia.

- Vê? - Dona Júlia concordou. - E seu marido?

A cabrocha encolheu os ombros.

- Esse é que está no mesmo, coitado!

- Mas... - e coçando o queixo com frenesi: tem feito o que eu disse?

- Tenho sim, senhor.

- E donde vem essa água? perguntou Dona Júlia.

- Da caixa; é água da caixa, mas impregnada de fluidos superiores.

- E cura?

- A senhora não está ouvindo?

O mulato, porém, chamou-o, e os dois ficaram cochichando. Mas o apóstolo mostrava impaciência e logo tornou à velha:

- A senhora deve hoje experimentar a sessão íntima. Nós, aqui fora, não trabalhamos, oramos apenas; para os trabalhos superiores temos outra sala. Para a senhora entrar basta que se filie a um dos grupos que constituem a Confederação. Paga a mensalidade e recebe um cartão permanente, podendo vir todas as noites concorrer para a grande obra santa da regeneração da Humanidade. É a primeira vez que assiste a uma sessão?

- É, sim senhor.

- Nunca trabalhou particularmente?

- Não senhor.

- Minh'ama tem medo, - explicou Felícia.

- Medo! - exclamou o homem corcoveando. - Medo de quê? - E, superiormente: Tenha medo dos vivos, minha senhora, que nos impelem ao pecado, concorrendo para a perdição da nossa alma; mas dos puros espíritos, que nos regem, que nos iluminam, que são os nossos conselheiros, desses não deve ter medo porque só baixam ao mundo para fazer bem. - Chegou-se muito à Dona Júlia e continuou, com mistério: Quantas e quantas vezes tem a senhora seguido os bons conselhos de um espírito protetor? Vai praticar um ato e ouve uma voz íntima que lhe aconselha a desistir da idéia, por ser inspiração do Mal. Dizem: é a consciência. Engano, - afirmou, categórico: é o espírito superior que nos guia. Ninguém observa. Os incrédulos procuram explicar tais fatos com razões absurdas. Observe, minha senhora, observe, e há de convencer-se de que a vida na terra é dirigida pelos espíritos que formam as legiões de Deus. Os mortos governam os vivos. Para o verdadeiro espírita a morte não é um motivo de aflição. Por que choram tanto os que vêem sair o enterro de um parente ou de um amigo? porque imaginam que o perdem, não é verdade? Com o espírita não se dá tal; o espírita sabe que os mortos não se ausentam: respondem ao apelo dos que ficaram em penitência na vida e demoram-se com eles, conversando, aconselhando, como se vivos fossem. É uma consolação: a mãe continua a viver com o filho, a esposa continua a sentir a presença do esposo. Há a eterna aliança espiritual. Não há doutrina mais consoladora! - suspirou, com os olhos em alvo.

- Minh'ama entra, assegurou Felícia.

- Pois sim, - concordou resignadamente a velha e, enquanto o homem foi procurar o livro de inscrições, ela interrogou a negra:

- Fala com franqueza: tu contaste o que se deu lá em casa?

- Não contei, minh'ama; toquei nisso uma vez, na rua, mas não disse com quem era. Disse que estava muito triste porque tinha acontecido uma coisa com uma pessoa da minha amizade, mas não disse o nome de vosmecê, nem o de Nhá Violante. Ele sabe tudo, vosmecê pensa?! só vendo. Ele não adivinha, são as almas que contam. Vosmecê ainda não viu nada, com o tempo é que vosmecê há de ver.

O homem acenou à Dona Júlia - estava junto da mesinha, inclinado sobre um livro. Logo que a viúva chegou pôs-se a falar:

- Aqui tem, minha senhora: pode escolher um grupo à vontade: Círculo Espírita Conciliação, Sociedade Espírita Allan Kardec, Grupo Espírita Maria Nazaré...

- Este, - disse a velha, impressionada com o doce nome da Mãe de Jesus. O homem perguntou-lhe onde havia nascido, em que ano, onde residia. Ela respondia em murmúrio, d'olhos baixos. Lembrando-se, porém, que não levava dinheiro, balbuciou, vexada: Eu não vim prevenida...

- Não faz mal... - e entregando-lhe a pena: Pagará depois. Tenha a bondade de escrever o seu nome.

Curvou-se e lançou tremulamente o nome diante da cifra 2811. O homem deu-lhe um cartão com friso d'ouro, para que ela assinasse, explicando que - "Onde quer que se apresentasse com aquele cartão, seria reconhecida e aceita como obreira da regeneração da Humanidade".

E falou em médico, farmácia, dieta, enterro, enquanto passava o mata-borrão sobre as linhas escritas. Depois, mostrando-lhe o corredor da esquerda iluminado, disse:

- Estão exercitando os médiuns lá dentro. Depois a senhora irá comigo.

Mas houve um rumor na sala das sessões íntimas, e o mulato, escancarando a porta, declarou: "Que podiam entrar".

- Vamos, convidou o apóstolo.

E a negra, inclinando-se, segredou à ama:

- Agora é que vosmecê vai ver.

A sala das sessões íntimas, ao contrário do que imaginara Dona Júlia, "um lugar escuro e triste", era clara e alegre, forrada de vistoso papel e ramagens miúdas, iluminada por seis bicos de gás, respirando por duas janelas largas. Quadros santos ornavam as paredes e, por trás da mesa, à qual se havia sentado o mesmo velho indolante e acalorado que presidira à pregação, inclinava-se um grande quadro com o retrato de um homem em tamanho natural. Os crentes apinhavam-se. As duas mulheres só conseguiram achar lugar na quarta fila. Dona Júlia acomodou-se justamente ao lado da mocinha que esmolara para os irmãos enfermos.

Todas as fisionomias tinham expressão sinistra: os olhos brilhavam em desusado fulgor, os peitos ofegavam, e, de quando em quando, suspiros angustiados subiam de um ponto, doutro. A velha senhora, enquanto o apóstolo conversava com o presidente, pôs-se a examinar a sala, como à procura da passagem por onde deviam entrar os espíritos invocados.

Felícia, atenta, d'olhos na mesa, mal respirava e a mocinha, nervosa, irrequieta, agitava-se na cadeira, esfregava as mãos, estalava os dedos, com visível ansiedade; por vezes, toda ela estremecia, a cabeça tombava-lhe para as costas, os olhos ficavam esgazeados, como em espasmo.

Dona Júlia começava a sentir a fascinação comunicativa daquele bando de alucinados. Voltando a cabeça, encontrava os olhos de uma mulher imóveis, de um brilho vítreo, ou via uma negra cabisbaixa, araviando às surdas.

De repente um homem gemeu num arranco: "Não posso! Jesus, meu Senhor...!" e continuou murmurando, a bater no peito às punhadas. O ambiente tornava-se abafadiço, com um calor de rescaldo tresandando a suor e a morrinha.

- Minh'ama está vendo?

- Estou.

O homem continuava resmoneando. O seu hálito quente chegava em bafos à nuca de Dona Júlia, e a sua murmuração punha um zumbido constante na sala. Ao fundo, a criança da coqueluche rompeu a tossir, e houve um ci ci de acalento, até que o apóstolo anunciou:

- Está aberta a sessão.

Os crentes acomodaram-se e o velho, com pronunciado acento espanhol, dirigiu um apelo aos irmãos, que se achassem dispostos para o trabalho.

De um canto levantou-se um homenzinho magro, lívido, d'olhos fundos, a barba crescida, vestido com pobreza e descuido. Todos os olhares seguiam-no com interesse, e ele passava d'esguelha, por entre os devotos, limpando as mãos a um grande lenço vermelho de barra florida.

- É o irmão Canedo, disseram.

O homem sentou-se, de costas para a assembléia, impôs as mãos a mesa, fechou os olhos, apertando muito as pálpebras, e quedou, como adormecido, dominado por todos aqueles olhares fixos, que o envolviam em fluidos.

Súbito, entrando em crise, atirou violentamente a cabeça para trás, sorvendo um fôlego, pôs-se a tremer e, em voz fraca, murmurou:

- Que a paz do Senhor seja convosco!

Correu um sussurro por toda a sala e o homem, sob o prestígio das forças espirituais, pôs-se a falar, aos arrancos, profeticamente, com frases laceradas:

- Muitos dos que aqui se acham, conheceram-me enquanto andei nesta vida de torturas...

O apóstolo interrogou:

- Quem és? Quem foste?

E o médium declarou:

"Que se chamara Amaral. Fora do Correio..." e, pausadamente soturnamente, agoniado, entrou a falar da revolta de setembro, lamentando a carnificina, as depredações, as vinganças, os atentados covardes, a tristeza das viúvas, o abandono dos órfãos. O apóstolo interrompeu-o:

- Dize-nos alguma coisa que nos aproveite. Estamos aqui reunidos, ansiosos pelas palavras edificantes dos que gozam a graça de sentir a presença de Deus. Ilumina-nos.

Mas o homem continuou no mesmo tom plangente, detendo-se em pausas aflitas, a lamentar o sangue derramado, a miséria, os incêndios, as violações, até que estatelou inerte, numa sonolência mole, acordando, de repente, espantado, como estranhando achar-se entre tanta gente. Esfregou os olhos e levantou-se cansado, tornando ao seu lugar, no fundo da sala.

Sem que o chamassem, um mulato abaçanado, alto, de músculos hercúleos, ergueu-se, com um olhar de inspirado, oferecendo-se. Aceito, encaminhou-se para a mesa, impôs as mãos imensas e, d'olhos fechados, tateando, respirava com força, aos bufos, como um potro exausto. Abria, de repente, os olhos, bambaleava-se, batia pancadas secas com o pé, espalmava as mãos na mesa, com os dedos muito abertos.

A mocinha, que o não deixava com os olhos, empinou-se nervosa, suspirou e abateu na cadeira derreando a cabeça sobre o respaldar.

- Que a paz do Senhor seja convosco!... - disse gravemente o colosso com uma voz cheia que rolou tonitruosamente, seguindo-se-lhe o "Amém" de todos os presentes. E, à maneira dos profetas bíblicos que, no tempo da subversão moral do povo eleito, andavam de cidade em cidade anunciando os castigos de Iavé, começou a discorrer sobre o Bem e o Mal, mostrando que o benefício na terra é um depósito cujo lucro se recebe no céu e que o pecado é uma lepra que corrói a alma e, como se sobre ele houvesse baixado o espírito clamoroso de Isaias. as suas palavras eram fortes, lembrando as do profeta a reboavam abalando aquelas almas vibráteis.

E como a mocinha se pusesse de pé, a ímpeto, retorcendo os braços, rilhando os dentes, com um surdo, arrancado arquejo, a rebolir-se em coleios serpentinos, Dona Júlia agarrou-se à Felícia, sussurrando com medo:

- Vamo-nos embora. Isto está-me fazendo mal.

- Por que, minh'ama?

- Vamos.

- Nós agora não podemos sair. Como é que vosmecê quer passar?

- Paulo pode ter chegado.

- Vosmecê não falou com ele?

- Sim, mas não quero entrar tarde.

- Agora falta pouco, minh'ama.

O mulato continuava a falar em tom soturno, repetindo versículos bíblicos. Súbito calou-se, retesando-se, com os braços rijamente fincados na cadeira, a respirar com esforço. O apóstolo acalmou-o, chamou-o e ele abriu os olhos, levantou-se estremunhado e foi caminhando para o seu lugar, ainda a tremer. Foi então chamada a mocinha.

Ao vê-la dirigir-se para a mesa, como uma vítima que seguisse para o suplício, abatida e pálida, Dona Júlia lastimou-a: "Coitadinha!" Devia ter a idade de Violante.

Que grande mágoa a arrastaria, tão moça, àquele mistério! Que consolação iria ela pedir, tão cedo, aos espíritos benfeitores? Não haveria na imensa alegria da terra bálsamos para os seus tormentos para que, tão criança, já se fosse refugiar no templo da Morte? Coitada!

Logo que se sentou, os crentes, que a conheciam e respeitavam, moveram-se com interesse. Segredava-se, murmurava-se e o apóstolo pediu a todos que se concentrassem em oração a fim de que viesse em visita ao grêmio, por intermédio da irmã Clarinda, um espírito perfeito.

A mocinha, de mãos estendidas, abria e fechava os olhos - a sua respiração ralava e um convulsivo tremor sacudia-a aos arrancos. No silêncio atento e pávido da sala ouvia-se-lhe o ranger frenético dos dentes. Dobrou-se toda em arco.

Súbito, d'arranque, como se lhe houvesse passado por diante dos olhos uma visão horrível, ergueu-se hirta, com os braços duros e, de arremesso, rugindo, como em crise epilética, arrojou-se para trás caindo com a cadeira.

Homens e mulheres acudiram - levantaram-na rígida, os olhos imensamente abertos, fitos e desvairados. O apóstolo, vendo-a naquele estado, pôs-se a falar com brandura, tentando dominar o mau espírito que a possuía. Sentaram-na. Parecia dormir, lívida, desfigurada, com o suor a escorrer-lhe ao longo das faces.

- Como te chamas? interrogou o apóstolo.

- Não sei! rugiu abafadamente a inspirada.

- Queres guardar segredo; pois seja feita a tua vontade. Dize-nos ao menos, se na existência que deixaste foste homem ou mulher?

- Mulher!

- E conheceste a irmã em que te encarnaste?

A mocinha acenou afirmativamente com a cabeça, arfando.

- Tinhas com ela alguma ligação de parentesco?

- Não.

- De amizade?

- Sim.

- E por que a fazes sofrer tanto?

- Ela não sofre.

No mesmo instante, porém, com outro arranco, rolou por terra escabujando e rugindo. O assombro tocara o auge em toda a saía - ninguém ousava aproximar-se da infeliz vítima da possessão maligna. Foi o apóstolo quem se adiantou solícito, levantando-a carinhosamente e obrigando-a a sentar-se.

- Descansa... descansa um pouco. Há, talvez, aqui alguém cuja presença não te é agradável.

- Sim! - exclamou a mocinha, atirando um murro à mesa.

- Quem é?

- Não posso dizer.

- Por quê?

- Não posso! - regougou, debatendo-se.

- Adianta-nos, ao menos, alguma coisa. Quem assim te irrita está conosco, ainda encarnado, ou já subiu para a região pura dos espíritos?

- É um espírito.

- E paira sobre nós?

- Sim...

- Irmão Canedo, - disse o pregador com solenidade, - ponha-se em comunicação com o espírito que paira sobre nós para que possamos estabelecer a concórdia entre as duas almas irmãs.

O nomeado acercou-se da mesa, concentrou-se e entrou a falar com doçura: "Que não tinha ódios, que perdoava..." Mas à pergunta do apóstolo: "Se era homem ou mulher?..." e, à resposta do médium: "Que era mulher..." a mocinha ergueu-se e, espumando, de olhos muito abertos, declarou num grito: "Mentes!" Dona Júlia, profundamente emocionada, rompeu em pranto nervoso, baixando a cabeça sobre o colo. Lembrava-se de Violante. Que seria dela? Onde andaria? Aquele incidente abalou-a, não pelo sofrimento da vítima passiva, mas pelo destino da filha. Pobrezinha! Sem poder conter-se pôs-se de pé chamando a negra imperativamente:

- Vamos, Felícia.

A negra levantou os olhos - duas lágrimas rolaram.

- Agora não, minh'ama.

- Então, fica: eu vou só.

- Como é que minh'ama quer sair? Pois vosmecê não está vendo que ainda não acabou?

- Pois sim, mas eu não espero mais.

E, decidida, a pedir licença, foi-se esgueirando, apertadamente. Os crentes olhavam-na revoltados, murmurando. A negra, vendo-a sair, seguiu-a. O apóstolo foi-lhes ao encontro, muito afável. acompanhando-as ao corredor:

- Então já, minha senhora?

- Sim, senhor. Não posso demorar-me mais.

- A senhora vinha para uma consulta, devia ter experimentado. Mas volte amanhã, mais cedo. Eu faço uma sessão especial.

- Sim, senhor.

Não levantava os olhos molhados, caminhando direito à porta. como para fugir. Felícia seguia-a contrariada, meneando com a cabeça.

- Vou invocar um espírito forte, e talvez lhe possa dizer alguma coisa amanhã. Não deixe de vir.

Estendeu-lhe a mão, todo zumbrido, a sorrir.

- Sim, senhor. Até amanhã.

- Boa noite, minha senhora.

A grande sala da prece estava em penumbra e deserta. Felícia adiantou-se para guiar a viúva que procurava o corrimão da escada, quase em trevas.

- Devagarinho, minh'ama.

Desceram lentamente, caladas. Na rua, ao ar da noite fria, Dona Júlia respirou aliviada.

- Então, minh'ama.

- Ora, Felícia... deixa-me. Não sei onde é que tens o juízo. Se eu soubesse que era para isso...

- Vosmecê está aborrecida?

- Ah! não... não hei de estar. Cansar-me para ver patacoadas.

- Vosmecê não esperou.

- Não esperei... Esperar o quê? - Parou na sombra e, baixinho, em tom severo: Olha, eu creio em Deus, creio no seu poder e na sua misericórdia... Ninguém é mais crente do que eu, mas não posso admitir essas coisas. E por essas e outras que anda, por aí, tanta gente maluca. Vamo-nos embora.

- Minh'ama está zangada comigo?

- Não, não estou zangada contigo, tu crês. Eu é que aqui não ponho mais os pés.

- Por que, minh'ama?

- Eu?! Isto até devia ser proibido. É porque a polícia não sabe.

- Não fale assim, minh'ama.

Ela insistiu:

- Devia sim, devia ser proibido. Olha, se eu tiver de encontrar Violante, hei de encontrá-la. Há de ser o que Deus quiser. Ela há de lembrar-se de mim, porque tem coração, mas aqui?! aqui...! nunca mais!

- Se vosmecê tivesse fé...

- Qual fé! Olha, eu te digo: pensei que saísse daqui impressionada, e saio só com pena daquela pobre mocinha. É mais uma que estão preparando para o hospício.

- Ah! minh'ama... Vosmecê também...

- Tu hás de ver. Queira Deus que eu me engane.

- Então vosmecê pensa que é ela só?

- Não sei, mas essa não acaba bem.

Desciam vagarosamente a Rua da Carioca quando um grande vento passou levantando a poeira. Detiveram-se, de cabeça baixa, coladas à parede, com as saias espadanando. A lua mostrou a lívida face num círculo de grossas nuvens negras, como no fundo de um poço e, aqui, ali, no vasto céu tenebroso, estrelas faiscavam.

- Felizmente não chove, - disse Dona Júlia.

- Só lá para o meio da noite, - augurou a negra, enrolando a trunfa que se desfizera.

11

Eram nove horas da manhã quando Dona Júlia foi bater à porta do quarto do filho, chamando-o. Paulo levantou-se de mau humor.

- Que é, mamãe?

- Está aí o cobrador da casa.

- Que história! Diga-lhe que eu vou levar o dinheiro, que ainda não recebi.

- Por que não falas tu mesmo? Eu tenho tanta vergonha...

- Vergonha de quê? Também a senhora tem vergonha de tudo. Que espere um pouco. Eu não hei de inventar dinheiro.

- E a jóia? - perguntou ela baixinho.

Paulo resmungou:

- Ontem não foi possível, tive muito que fazer. Vou hoje.

A velha afastou-se e Paulo, deitando-se de novo, a fumar, recapitulou o desastre da véspera: quase todo o dinheiro perdido ao jogo, num só número, o 28. Como sair daquele aperto? A quem recorrer? Não lhe lembrava o nome de um amigo, de um conhecido. Como derradeira e única esperança ocorreu-lhe o do velho Fábio. Não tinha coragem de o procurar. Se lhe escrevesse? Mamede levaria a carta. Com tal idéia voltou-lhe a calma, serenou como se já houvesse recebido a quantia e, assobiando, saltou da cama, sentou-se à mesa e pôs-se a redigir uma carta aflita referindo-se, com grandes queixas, à Violante "única culpada daqueles embaraços em que se viam".

O pedido era de duzentos mil-réis e, acrescentava, mentindo, que: "tendo conseguido um emprego vantajoso, no mês próximo saldaria o débito, ficando eterna a gratidão". Animado, vestiu-se, fechou a carta na gaveta e passou à sala de jantar. Dona Júlia, sentada à mesa, cerzia uns pares de meias e, quando o viu aparecer, disse-lhe lentamente, sem levantar os olhos:

- Olha, Paulo, vai ver esse dinheiro. O homem ficou aborrecido.

- Aborrecido, por quê? Não dei fiador? Que espere!

Foi ao banho e, tomando apenas uma xícara de café, vestiu-se saindo para a estalagem. Mamede recebeu-o sorrindo e, como ele lhe falasse da carta, pôs-se imediatamente à sua disposição.

- Vosmecê quer esperar a resposta aqui ou na cidade?

- Como quiseres.

- Aqui é melhor.

- Pois sim.

- Eu vou num pulo. - Vestiu-se às pressas e pronto, com um bengalão debaixo do braço, despediu-se, dizendo, a rir: Eu sei que vamos ter cena; aquilo é agarrado que nem ostra, mas manda, para vosmecê ele manda, afirmou convencido, a enrolar um cigarro. Então até já, nhozinho.

- Até já, Mamede.

Deixou-se ficar a um canto, e, vendo um velho almanaque em cima da mesa, tomou-o, pôs-se a folhear as páginas amarelecidas e rotas, procurando anedotas. As lavadeiras, em zaragalhada, chalravam, cantavam, batiam a roupa, ao sol; pequenos, em fraldas de camisa, empinavam papagaios. Na casa contígua uma máquina de costura estrepitava e a voz rouca de um homem cantarolava amores. Ritinha, que não aparecera, pouco depois do mulato haver saído, perguntou do fundo da casa:

- Quer uma xícara de café?

Paulo estremeceu ao ouvir-lhe a voz e, sorrindo, respondeu vagaroso:

- Não sou pobre soberbo.

E, entre os dois, com a cortina de permeio, travou-se um curto diálogo.

- É o senhor que fugiu daqui?

- Não...

- Por que não tem aparecido?

- Trabalhos.

- Faço idéia!

- Palavra. Estou com os estudos.

- Então não pode tirar uma hora, ao menos, para ver a gente?

- Vontade não me falta.

E, folheando distraidamente o almanaque, sorria.

- Gosta com muito açúcar?

- Não muito.

Soaram passos no corredor e Ritinha, afastando a cortina, passou o braço roliço oferecendo a xícara de café. O estudante, não lhe podendo ver o rosto, perguntou:

- Está com vergonha de mim?

- Uê... Vergonha? Vergonha por quê? Eu, não!

- Então por que não aparece?

Um risinho infantil foi a resposta, logo depois, o rosto risonho da mulata mostrou-se, com os olhos muito pretos e vivos, a boca vermelha e úmida entreaberta descobrindo os dentinhos brancos que reluziam.

- Quem é bonita assim não se esconde.

- Bonita! Eu?! coitada de mim! Quem perdeu boniteza para eu achar?

Paulo tomou a xícara e pôs-se a chuchurrear o café lentamente, sorrindo para a mulata que se bambaleava dengosa.

- Mamede foi muito longe?

- Ao Engenho Novo.

- Nossa Senhora! Fazer o quê?

- A negócio...

- Negócio...! - e esticou o lábio carnudo, mordendo-o depois, com um sorvo, d'olhos faceiramente revirados. Por fim, derreando a cabeça, num quebranto, esticou o braço para receber a xícara. O rapaz fitou-a abrasado.

- Que é que está me olhando? Deixe ver a xícara.

Paulo ardia em volúpia. Adiantou um passo, ainda indeciso, hesitante, com medo. Ela baixou os olhos fingindo-se distraída. De repente, como se o houvessem impelido, achou-se no corredor, face a face com a rapariga. Ela encolheu-se, colada à parede, os braços cruzados como a defender o colo; estava em mangas de camisa, com uma saia de ramagens.

- Que é isto? O senhor está doido!? - exclamou arrepiada, retraindo-se.

Paulo ficou a contemplá-la, sem uma palavra, trêmulo, farejando o cheiro sensual que se desprendia daquela carne de mestiça, viçosa e árdega. Adiantou-se com a humildade de um vencido, balbuciando tremulamente:

- Ritinha.

- Que é? fez ela, toda lânguida, d'olhos úmidos, inclinando a cabeça sobre o ombro nu, reluzente.

Ele estendeu a mão, ela curvou-se, arisca, encolhida:

- Olhe Mamede...! Não se fie. Ele, às vezes, diz que vai aqui, ali quando menos se espera, aparece.

Dobrou-se, agachou-se, fazendo-se pequenina, evitando as mãos que a procuravam.

- Não faça isso...

Coleava e ria, nervosa.

- Não brinque assim... Eu quebro a xícara.

De repente, muito séria, murmurou:

- Olhe que podem ver... Essa gente da estalagem é muito bisbilhoteira.

Paulo, porém, insistia e a mulata, a torcer-se com as cócegas, às gargalhadas nervosas, amolecia.

- Fique quieto... Fique quieto...

A xícara rolou tinindo. Fora, o canário cantava estridulamente e estalava a roupa que as lavadeiras batiam.

Mamede, logo ao entrar, alagado em suor, atirando o chapéu para cima da mesa, irrompeu contra o velho: "Que era um cigano, um unhas-de-fome, um malcriadão".

- Olhe, nhozinho, eu não fiz uma estralada naquela biboca por causa de vosmecê. A minha vontade foi mandar a testa nos queixos daquele sujo e varrer aquilo tudo a pé. Mas Deus é grande! Está agora cheio de empáfia, um porcaria que eu conheci pindaíba que nem tinha um casaco decente para vestir.

- Não mandou...?

- Qual nada! Disse que vai falar com a velha. E não imagina os desaforos que atirou em cima de vosmecê. E veio todo o mundo para a sala, e todo o mundo falou, uma porção de mulheres, uma corumbada de meter medo. A sua carta andou de mão em mão, e eu na porta, em pé, rachando debaixo do sol. Nem, por delicadeza, me mandaram entrar. Aquilo, nhozinho...! Eu nunca me enganei com aquele cabuloso. Qual! gente de muita conversa é assim mesmo, não vale nada. Vosmecê escreva: não vale nada. Quem quer dar não faz discurso.

Paulo baixou a cabeça, sucumbido, e ficou a retorcer nervosamente o buço enquanto o mulato, já em mangas de camisa, examinava garrafas. Ritinha apareceu:

- Ah! Mamede... que horas! E eu aqui sem almoçar.

- E eu? Quem sabe se você pensa que fui brincar? Pois tira o almoço.

Virou, de um trago, o codório e, passando a mão pelos duros bigodes, disse, pigarreando: Nhozinho também ainda não almoçou.

- Ainda não; mas não tenho fome.

- Não tem fome! - Desatou a rir. - Está amofinado. Ah! nhozínho, bem se vê que vosmecê está entrando agora no mundo. Isso é uma canalha! É uma canalha! Quanto mais rico, pior. Não ligue, faça como eu. Se eu me aborrecesse por causa dessas coisas... então...! Dinheiro? dinheiro é nada; tenha a gente saúde, o mais...

Ritinha, encostada ao umbral da porta, olhava distraidamente o céu, muito azul, quando Mamede falou:

- Ó dengues, tira esses troços duma vez que eu ainda tenho que fazer, e é quase meio-dia.

- Já vou, - disse ela, deixando escapar um suspiro.

À mesa, os três conversaram alegremente, e Paulo, balançando a perna, encontrou um dos joelhos da mulata, e, durante todo o almoço, sentiu-o, afagou-o voluptuosamente. Refeito e esquecendo a avareza do velho Fábio, decidiu-se a tentar a sorte com o pouco que lhe restava e, distraindo-se, enquanto Ritinha retirava os pratos e a toalha e Mamede mudava a camisa, assobiando, pôs-se a imaginar uma grande sorte. uma repetição, e via os montes de fichas, ouvia-lhes o estrépito e acumulava cartões: Eram plenos sobre plenos, uma fortuna! Tirou do bolso o dinheiro que tinha e, folheando as notas por baixo da mesa, com cuidado de usurário, achou trinta e cinco mil-réis; guardou-os, pôs-se de pé, mas a mulatinha reteve-o com um sorriso.

- Já quer sair? Não toma café?

Mamede falou do quarto, em sobressalto:

- Espera um instante, nhozinho.

- Sim.

Ritinha encaminhou-se para o corredor e Paulo, vendo-lhe os quadris carnudos, que bambaleavam, adiantou-se em pontas de pés, as mãos estendidas; ela parou, como fascinada. Ele atirou-lhe os braços ao pescoço e, mesmo de costas, a mulata derreou a cabeça e as bocas ficaram coladas num beijo muito longo. De repente apartaram-se: ela fugiu surdamente pelo corredor, ele foi ficar à porta, olhando as lavadeiras que, ao longe, com as saias arregaçadas, mostrando as pernas fortes, estendiam a roupa nos coradouros ou em cordas que vergavam.

Um sino soava gravemente ao longe e, percorrendo a estalagem, ao vivo sol, um homem com uma caixa à cabeça, pintada a listas de várias cores, soprava uma cometa fanhosa.

- Pronto! - exclamou o mulato saindo do quarto com umas calças de brim e uma lustrosa camisa de chita. Enrolava um cigarro e, chegando-se muito ao estudante, sussurrou:

- Nhozinho tem aí uma de cinco que me empreste até amanhã? É só até amanhã.

Paulo não teve ânimo de negar - meteu a mão no bolso, escolheu uma cédula e entregou-a ao mulato.

- E só até amanhã, nhozinho.

- Ora...

- Vosmecê não quis aparecer mais em casa do Cordeiro? Desconfiou com o trombone? Pois olhe: Eu, noutro dia, fiz um estrupício doido no pequeno. E estava só dizendo: Ah! se nhozinho estivesse aqui chamava uma cobreira grossa desses manos.

Depois do café saíram. Paulo, porém, para livrar-se do mulato, despediu-se ao portão, tomando um bonde.

Dona Júlia passou o dia em torturas, preocupada com o aluguel da casa. Se um bonde parava perto, logo alarmada, invocava Nossa Senhora, receando a presença do cobrador, temendo o escândalo.

"Que diriam aquelas mulheres da vizinhança, a gorda, principalmente, que ria de tudo?" Dava-lhe maior cuidado a opinião dos vizinhos do que o próprio vexame. Resignava-se a todo sofrimento, mas a idéia de ser tida por uma caloteira, amofinava-a. Lembrando-se, porém, do filho, animou-se. Ele, por certo, já entregara o dinheiro à senhoria, e como até à tarde ninguém aparecesse, tranqüilizou-se.

Até horas altas da noite esteve a pensar, acotovelada à cômoda, diante dos santos, mas, cedendo à fadiga, deitou-se e adormeceu, acordando de madrugada, em sobressalto, como se houvesse sido sacudida por alguém. O seu primeiro pensamento foi para o filho: 'Teria ele entrado? Quem lhe abrira a porta? Felícia..." Levantou-se, foi ao quarto negra que já enrolava a esteira:

- Paulo veio, Felícia?

- Não senhora.

- Não veio!?

- Que eu visse, não, senhora.

Ficou parada à porta do quarto a olhar. Era a primeira vez que o filho pernoitava fora. Que teria acontecido?

- Hein, Felícia?

- Senhora...

- Paulo... Quem sabe se aconteceu alguma coisa?!

- Qual o quê, minh'ama. Nhonhô é moço, ficou com algum companheiro.

- Não...

Apreensiva, deixou-se estar à porta do quarto, pensando.

- Homem não tem perigo, minh'ama.

Sem responder, a velha foi caminhando para a sala. Lembrava-se do desaparecimento de Violante. Que fatalidade era essa que assim lhe ia levando os filhos, um a um? Que grande crime teria ela cometido para que Deus a condenasse a tão duro castigo? Abriu com cuidado a porta do quarto do filho e espiou: a cama estava feita, com os lençóis muito esticados, alvejando. "Que teria acontecido, Deus do céu!" E entrou, com olhares pelos cantos, como se procurasse alguma coisa.

Aquela companhia do Mamede dava-lhe cuidado. Conhecia-o bem. No tempo do falecido volta e meia era um recado, um pedido: porque o mulato fora preso num barulho ou apanhado numa casa de jogo.

Duma feita, deixando um homem por morto, com uma navalhada, respondera a júri, sendo absolvido à força de empenhos, que até políticos haviam trabalhado por ele. E Paulo que o não deixava! Vão ver que andou por aí de pagode com o perdido. Suspirou.

- Qual! Deus não tem pena de mim...

Eram onze horas quando bateram à porta. Felícia não estava, tinha ido à venda. Dona Júlia estremeceu: "Quem será, meu Jesus..." Espiou por entre as rexas da rótula e empalideceu reconhecendo o cobrador da casa. Para evitar o escândalo abriu a porta, convidou-o a entrar, muito vexada, dizendo "que o filho saíra para receber".

O homem mirou-a sacudindo o berloque da corrente.

- Mas eu não posso estar a fazer esta caminhada todos os dias, minha senhora. Anteontem a senhora disse-me que seu filho iria levar-me o dinheiro: não foi... Francamente, isto já parece caçoada.

- Tenha paciência; a vida está hoje tão difícil...

- Ah! sim...

- Ele vai hoje, talvez já tenha ido.

- Eu é que não volto cá; diga-lhe isto mesmo. E, com um risinho mau: Começa bem, não há dúvida: logo no primeiro mês. Ao sair, declarou: Que iria ter com o fiador se até a tarde não recebesse o dinheiro.

- Tenha paciência, meu senhor.

- Passe bem.

Deu as costas e foi resmungando. Dona Júlia ficou como sufocada e fechando a porta, atirou-se ao sofá, soluçando. Caindo a noite sem que houvesse notícia de Paulo, numa resolução desesperada, ela foi à caixa em que guardava as jóias e pôs-se a escolher algumas para levar ao penhor.

Quais haviam de ser? Tinha o crucifixo de ouro, velha relíquia de família, que fora de sua mãe; beijou-o e, veneradamente, pô-lo de parte, sobre o travesseiro. Tomou uma medalhinha esmaltada - os "olhos de Santa Luzia", figas de coral, de azeviche, que as crianças haviam usado contra o quebranto; depois uma grossa pulseira, dos anéis com pedras, uma fivela de ouro e a medalha do falecido com o monograma a brilhantes. Mirou-a muito tempo, com remorso, supesou-a, abriu-a: em cada uma das faces, sob lâminas de vidro, enroscava-se um anel de finos cabelos louros: eram dos filhos; retirou-os e, fechando a medalha, suspirou. Felícia acabava de limpar a cozinha, quando ela a chamou, dizendo: que iam sair. A negra encarou-a, espantada:

- Paulo não aparece, não sei por onde anda e eu não quero esse homem da casa aqui todos os dias. Vou empenhar umas jóias e, como não conheço as ruas...

- Se fosse de dia a gente podia ir ao Monte de Socorro, mas de noite, só nessas casas. Minh'ama quer ir assim mesmo?

- Vamos.

A negra foi vestir-se e, pouco depois, saíam muito juntas, conversando tranqüilamente. Felícia não conhecia as casas de penhores e esteve a dar voltas pelo Largo do Rocio, atarantada, a olhar, até que resolveu perguntar a um homem que lhe indicou uma travessa, mostrando-lhe a casa iluminada. A negra, que deixara Dona Júlia à espera, junto ao teatro, correu a buscá-la.

- Vamos, minh'ama. - A velha seguiu-a, muito tímida, evitando os transeuntes, cosendo-se com a parede até que alcançaram a casa. - É aqui. Vosmecê entre; eu espero na porta.

Dona Júlia entrou, metendo-se em um dos cubículos. Ao lado falavam, era um murmúrio vago de palavras indistintas, pronunciadas como no mistério da confissão. Um súbito receio gelou-a: "E se o homem, vendo-a tão pobre e com aquela jóia rara, tomasse-a por uma ladra?!"

Trêmula, pôs-se a desembrulhar a medalha e foi com um fio de que respondeu à pergunta: "que precisava de quatrocentos mil réis. "O homem retirou-se com a medalha e, à luz, abriu-a, examinou-a detidamente, virando-a, revirando-a, sacudindo-a na palma da mão; pesou-a numa pequena balança, depois, tomando ao balcão, disse secamente:

- Duzentos mil-réis.

- Só!? exclamou a viúva espantada.

- Os brilhantes são muito pequenos.

- E trezentos?

- Duzentos.

E ia deixando a medalha quando ela suspirou resignada:

- Leve. Os senhores não têm pena da gente.

O homem retirou-se e ela, sentindo fortíssimas agulhadas nas pernas, encostou-se ao tabique e ficou a olhar a parede fronteira cheia de relógios - uns parados, outros trabalhando, quadros, vasos artísticos em peanhas, um oratório de jacarandá, com um fundo azul de céu.

Eram os reféns da miséria que ali se juntavam, eram as alegrias do pobre que ficavam cativas pelo pão e pelo remédio, e ela pensava em outros infelizes, quantos! sofrendo mais do que ela, por esse mundo vasto e descaridoso.

Sentindo que empurravam a porta do cubículo voltou-se assustada e viu um velhinho engelhado, com um embrulho debaixo do braço. O intruso atrapalhou-se, murmurou uma desculpa e passou adiante. O homem apareceu com um livro para que ela assinasse: tomou da pena e, tremulamente, deixou o nome, a rua e o número da sua casa. Esteve ainda algum tempo à espera até que ele reapareceu com a cautela e o dinheiro.

Felícia esperava à porta, a olhar os carros estacionados junto á calçada.

- Então, minh'ama?

A velha murmurou caminhando:

- Duzentos mil-réis, Felícia, por uma medalha que custou ao velho uma fortuna. Eu sei: ele viu-me assim pobre... - E suspirando: E eu que contava levar todo o dinheiro de que careço. Nem chega para te pagar. Tem paciência até o princípio do mês, quando eu receber do Tesouro.

- Não faz mal, minh'ama: eu tendo para o meu fumo...

- Agora se precisas de alguma coisa...?

- Não, senhora; eu vou-me arranjando. Quando vosmecê receber.

- Pois sim. O que eu quero é ficar livre daquele homem. Não sei dever, não está em mim: fico que só Deus sabe. E Paulo não se emprega. Não sei que há de ser de nós. Amanhã, bem cedo, hás de levar o dinheiro à senhoria.

- Sim, senhora. Mas vosmecê não se amofine, minh'ama; Deus é muito grande!

- E Paulo? Onde andará? Pois então aquele menino não sabe que sou doente? Como é que sai assim sem dizer uma palavra? Isto até parece castigo de Deus. Pois eu nunca fiz mal a ninguém...

- Não é só minh'ama que sofre.

- Ora o quê? mas como eu tenho sofrido, Felícia?!

- Deus é grande! Mais tem ele pra dar, minh'ama.

Quando chegaram a casa a vizinha, que cantarolava à janela, disse "que o moço estivera ali muito tempo, batendo". As duas mulheres ficaram perplexas.


- Ele subiu. Creio que tomou um bonde.

- E agora, Felícia?

- Ele volta, minh'ama.

Efetivamente, como se rondasse perto, à espreita, pouco depois delas haverem entrado, Paulo bateu. Dona Júlia apressou-se e, vendo-o, iluminou-se-lhe o rosto. Longe de o recriminar recebeu-o contente, sorrindo. O estudante, deixando o chapéu sobre a mesa, sentou-se esparramadamente no sofá, abrindo os braços no encosto:

- Com certeza já estava aflita com a minha demora?

- Ah! não... não havia de estar.

- Pois eu andei na lida: a procurar a senhora minha irmã.

- E então?

- Qual! Um companheiro do Mamede, maquinista da Estrada. disse que a vira em Mendes, com um estrangeiro. Fui lá. Efetivamente encontrei uma moça muito parecida com ela, um pouco mais cheia. - Entrou no quarto e declarou desanimado: Qual! aquela não aparece tão cedo, se aparecer... O velho Fábio esteve aqui, mamãe?

- Não. Por quê?

- Avarento! - rosnou reaparecendo em mangas de camisa.

- Estiveste com ele?

- Não, senhora. Escrevi uma carta pedindo-lhe uma quantia para não empenhar o broche; respondeu que viria trazer o dinheiro à senhora.

Riu com sarcasmo, repoltreando-se no sofá, com as pernas muito abertas.

- E não empenhaste o broche?

- Que remédio! O dinheiro está aí. Deu pouco: cento e cinqüenta. Pois é verdade, - derreou-se atirando palmadas às coxas: o nosso amigo Fábio é um excelente conselheiro. Em conselhos chega a ser perdulário. Quando eu lhe dizia...

- Ele também é pobre, coitado!

- Então para que vive a arrotar grandezas? O homem da casa voltou?

- Esteve aí.

- E então? ameaças, desaforos...

Ela conteve-se, suspirando; por fim disse:

- Ah! meu filho, nós não podemos continuar a viver assim. Não imaginas a minha vergonha. - E meiga, fitando-o: Sabes onde fui com Felícia? Fui empenhar uma jóia. Não aparecias...

- E empenhou?

- Então?

- Não faça mais essas coisas, mamãe; a senhora devia ter esperado. Não é vergonha dever.

- Pois sim, mas... é comigo que eles se entendem, sou eu que ouço os desaforos. E tu não te lembras dos vizinhos? essas mulheres, então, que não saem da janela. Não, assim é melhor. Vamos agora trabalhar, cada um por seu lado. As jóias não me fazem falta; não saio. Lá ao menos estão seguras.

- Sim, mas vencendo juros.

- Ora! mais vale a minha tranqüilidade.

Paulo acendeu um cigarro e pôs-se a medir a sala a largas passadas, meditando. Dona Júlia indagou: "Se já havia jantado?"

- Jantei na cidade.

- Então chegaste hoje?

- Há pouco.

Ficaram algum tempo calados. Ele, numa alegria transbordante, cantarolava, assobiava, d'olhos altos, as mãos para as costas, indo e vindo. A mãe atreveu-se a perguntar:

- Nunca mais foste à policia?

- Para quê? Perder tempo? Um agente com quem falei pediu-me logo dinheiro. Estou farto de gastar com essa súcia.

- Então é assim?

- Se é...! - Sentou-se e falou vagarosamente, em tom de certeza: Para mim Violante não está no Rio, foi para São Paulo ou para a Europa, quem sabe? Vamos nós tratar da vida. Já perdi muito tempo. Este ano foi-se, não alcanço mais os colegas, mesmo não tenho cabeça para estudos, assim como ando. Não quero mais saber de jornais: são noites perdidas, aborrecimentos, por uma ninharia. Se eu pudesse conseguir a cadeira de história no Externato Meireles... O diabo é que há mais de vinte candidatos.

Soprou uma baforada e, vendo a mãe curvar-se a esfregar a perna, gemendo, quis saber se estava sentindo alguma coisa.

- Tenho sofrido muito nestes últimos dias. É da umidade... e hoje andei tanto!

- Eu também não tenho passado bem: dores de cabeça, fastio... É fadiga. Também, com a vida que levo não é para admirar: não paro.

- É, precisas ficar um dia em casa descansando.

- Pudesse eu! - suspirou encaminhando-se para o quarto. - Mamãe pode arranjar-me uma xícara de café?

- Sim.

A velha levantou-se pesadamente e foi devagar, claudicando, a amparar-se pelas paredes do corredor. Paulo entrou no quarto, deu mais luz ao gás e sentou-se à beira da cama, esfregando as mãos. Esteve algum tempo a sorrir seguindo um sonho. De repente levantou-se, ficou junto à mesa, a olhar a pasta de oleado que rebrilhava. Tomou o colete, o casaco e pôs-se a esvaziar os bolsos tirando cédulas amarfanhadas, em bolos.

Para não ser surpreendido fechou a porta à chave e tirou das algibeiras das calças dois gordos maços de notas, abriu-os, pôs-se a contá-los: achou seiscentos e vinte mil-réis. Separou cento e cinqüenta, embrulhou-os cuidadosamente com a cautela do broche e deixou-os na gaveta. Depois de guardar o resto do dinheiro sentou-se na cadeira e, fincando os pés na parede, pôs-se a balançar-se com os olhos no teto, pensando:

Fora covarde abandonando a sorte, devia ter ficado para outra banca: só na repetição de 20 ganhara trezentos e cinqüenta mil-réis; devia ter continuado, aumentando o jogo. Tivera palpite de jogar o máximo na repetição do 20, mas começaram a falar - "que o número estava mau, que a banca estava de sorte". Escarapelou-se, aborrecido. "Qual, quem joga não deve dar ouvidos a outros... Vão para ali peruar, com inveja de quem ganha, e é isso... Podia ter saído com uma fortuna." Assentando na cadeira, tomou um lápis, pôs-se a fazer cálculos, somando lucros fantásticos. Era a sua mania.

Se comprava bilhetes, imaginando tirar a sorte, distribuía a fortuna, não em sonho vago, mas escrevendo parcela a parcela, a empregar o dinheiro: tantos contos para um prédio, edificado a seu gosto, entre pomar e jardim, em arrabalde tranqüilo; tantos para móveis d'estilo, objetos d'arte, alfaias, livros. Uma parte para a aquisição de propriedades que lhe dariam segura renda; o resto em conta corrente, num banco.

Até o dia seguinte vivia regaladamente daquela ilusão, gozando a vida repousada e farta dos ricos, com amantes caras, um grupo de amigos para os saraus de literatura e arte, e a fortuna a multiplicar-se com a facilidade avassaladora com que as sementeiras crescem nos campos, alargando-lhe ainda mais a ventura. No dia seguinte, quando percorria a lista desanimadamente, procurava o final, já com o sonho desfeito, contentando-se com o mesmo dinheiro que lhe dava a esperança de poder, na loteria seguinte, alcançar a sorte desejada.

Com a roleta, porém, "eram mais seguras as probabilidades". Conhecia um rapaz que dissipava, a mãos rotas, como um milionário. Tinha as melhores amantes, vestia-as com fausto, cobria-as de jóias. Diziam que a sua casa, nas Laranjeiras, era como um palácio de lenda: bronzes raros, telas preciosas, tapetes mais altos que relvagens, móveis antigos, armas autênticas, carro na cocheira e cavalos de raça, com tratadores ingleses.

Gastava como um nababo, só à custa da roleta e do dado, porque os prêmios que os seus parelheiros levantavam mal cobriam as despesas com o trato, com o aderenço, com os jóqueis.

O seu ideal era viver como o Junqueira, o impassível Junqueira que, com um charuto na boca, balançando a perna, perdia dezenas de contos com a mesma serenidade, com a mesma superior indiferença com que estourava as bancas em dias felizes. Afinal - com quanto entrara? com vinte mil-réis, tendo perdido dez na espelunca do Cordeiro.

Não tornava àquele antro, onde se falava uma geringonça impenetrável e o ar era todo fumo e despejados bafos d'álcool. A gente era uma canalha: capoeiras, gatunos, até um Castro, por alcunha o Faísca, que era dos mais assíduos, sempre obsceno, e bravateador, mostrava navalhas célebres, entre elas, uma mais querida, de lâmina gasta, que rasgara ventres. Não lhe convinha aquilo.

Falar com o Junqueira era até chic, porque sempre o via em boas rodas, mas cumprimentar qualquer daqueles tipos do antro, era uma vergonha que o comprometia. Na outra casa eram todos homens limpos, rapazes colocados, de nome; eram relações que ficavam e serviam; depois a banca era outra. Decidia-se e havendo calculado uma diária modesta de quinhentos mil-réis - coisa fácil - levantou-se feliz, esticou os braços e pôs-se a cantarolar. Bateram à porta. "Entre!" disse, sem lembrar-se de que a fechara à chave. Empurraram.

- Está fechada, disse a velha.

Correu a abrir. Dona Júlia entrou com o café.

- Toma, enquanto está quente; - e deixou-se cair na cadeira, cansada. Ele bebia o café a pequenos sorvos.

- Mamãe já pagou à Felícia?

- Ainda não. O dinheiro que tenho mal chega para a casa. E ela bem precisa, coitada!

- Eu tenho algum, disse ele com superioridade.

- Pois sim. - E afirmou com enternecimento: Olha, meu filho. como essa não achamos outra: não é uma criada, é uma amiga. Quanto mais vou conhecendo o mundo mais me afeiçôo à pobre velha. Outra fosse ela e andaria por aí a resmungar, de trombas, mas não: é sempre a mesma e pra tudo.

- É uma boa velha, isso é, concordou.

- Eu é que sei, que vivo com ela.

- Pois se quer o dinheiro...

- Não te faz falta?

- Não, senhora.

Abriu a gaveta, contou trinta mil-réis e, com o pacotinho em que tinha guardado os cento e cinqüenta e a cautela do broche, entregou-os à mãe. Ficou um instante parado a contemplar o dinheiro que reservara, mas teve um movimento de bondade: tomou uma nota de cinqüenta e deu-a à velha.

- Isto é para a senhora.

Ela abriu muito os olhos, espantada.

- Onde arranjaste? Foi o Fábio?

- O Fábio...! - Riu escarninho. - Que idéia! Recebi no jornal, - explicou, numa inspiração instantânea.

- Mas tu podes precisar, meu filho.

- Fico com o bastante, descanse.

- Olha lá!

- Ora, mamãe, eu faço cerimônias com a senhora?

- Está bom, obrigada. E que Deus te proteja.

- Amém!

12

Deitado, d'olhos fechados e amolecido de fadiga, Paulo não pôde conciliar o sono, recordando todas as peripécias do jogo. Estava ainda sob a impressão intensa da sorte que tantos comentários provocara. O próprio Junqueira, sempre indiferente, lamentara que ele "não soubesse aproveitar o seu dia". Se houvesse carregado teria levado a banca à glória. Tal idéia irritava-o. Esmurrava a mesa, fazendo e desfazendo cálculos. Chegou a sentar-se na cama para recomeçar as somas, os cálculos de fortuna. Ritinha, porém, surgiu-lhe na lembrança.

Mamede andava infeliz, pedia-lhe dinheiro, deixava-o só com a rapariga horas e horas, como se a entregasse, e ela, sempre risonha, toda se lhe rendia, dengosa, retribuindo-lhe os beijos, falando-lhe em tom de queixume, d'olhos amortecidos, lânguida. Não, aquilo não podia continuar. O melhor era tomar um cômodo ali perto, na Lapa; o mulato que se arranjasse! e riu, antegozando a vitória daquela traição. Demais, Ritinha já lhe havia confessado que não gostava de Mamede - vivia com ele por viver; era um bruto, principalmente quando bebia. Às vezes entrava em casa cambaleando, nojento. E eram sempre amofinações, desassossego, vergonhas: gente à porta a reclamar dinheiro, ameaças de denúncias, rusgas com os vizinhos, um inferno! Não era homem para ela.

Voltou-se na cama, com um travesseiro entre os braços, fechou os olhos e ficou a balançar a perna, gozando a tepidez dos lençóis. Como seria feliz se ela ali estivesse, muito chegada ao seu corpo, enlaçando-o com os braços, excitando-o com a umidade quente da sua boca, falando-lhe baixinho, em arrulho amoroso, toda dele, nua e insaciável, fazendo-se pequenina, mimosa, para que ele a levantasse, beijasse, despertando-a do torpor lúbrico em que ficava, com um sorriso parado, olhos enlanguescidos, os braços abertos e abandonados, os peitos empinados, rígidos de sensualidade.

O mar estourava d'encontro às pedras do cais, e, de quando em quando, com um rumor que crescia e morria, tiniam campainhas de bondes.

Adormeceu por fim e teve sonhos bizarros. Acordou, de repente, pensando em ladrões. Abriu muito os olhos na treva, pôs-se a tatear procurando a caixa de fósforos. Sentia gente no quarto, ouvia passos surdos, distinguia vagamente um vulto junto à porta. Riscou um fósforo e, ao trêmulo vislumbre, relanceou espavoridamente o olhar pelo aposento: a porta estava fechada. Para maior segurança levantou-se, deu volta à chave. Lá fora só havia o estrondo das ondas. E impaciente, ansioso pela manhã, querendo desforrar-se da timidez da véspera, suspirou rolando na cama que o seu corpo aquecia.

Eram dez horas da manhã quando acordou com a cabeça pesada, como se houvesse bebido copiosamente na véspera. Pareceu-lhe ouvir vozes na sala. Levantou-se, pé ante pé, encostou-se à porta, cujos vidros tinham uma empanada de metim vermelho, e reconheceu a voz esganiçada do Fábio. Murmurou entredentes: "Canalha!" e ficou à escuta, muito interessado.

Dona Júlia defendia-o: "Que sim, ela mesma lembrara aquele recurso. Ele estava desempregado, fizera grandes despesas, por isso, coitado! recorrera a um amigo. A quem havia ele de pedir?" O velho interrompeu-a: "Pois sim, mas por que não fora ele mesmo ao Engenho Novo? Não - mandara Mamede, um vagabundo..."

- Vergonha, compadre.

- Qual vergonha! Orgulho, tolices...

- É vergonha, compadre. Depois do que aconteceu ele tem vergonha de aparecer a todos os conhecidos. Eu mesma, o senhor vê? eu mesma não procuro ninguém, meto-me no meu canto, curtindo calada os meus desgostos. Deixe lá, compadre! - suspirou enclavinhando as mãos.

Paulo mal distinguia os dois vultos como sombras levemente esfumadas numa tela. Rilhava os dentes. O seu desejo era escancarar a porta, entrar arrebatadamente na sala, atirar-se ao velho às bofetadas.

Parecia um senhor a repreender uma escrava. Revoltava-se contra a paciência humilde de Dona Júlia. Devia ser mais enérgica, devia repelir o idiota. Repentinamente o coração bateu-lhe com força. Chegou-se mais à porta: a velha rejeitava o dinheiro que o compadre oferecia.

- Não, obrigada. Sempre é uma dívida e eu agora não sei quando poderei pagar. Ele arranjou. Fez-se silêncio. Orgulho? Pobre de mim! Se eu dantes não tinha, quanto mais agora. Arranjou, palavra!

- Então... resmungou o velho.

E Paulo, satisfeito, ria acenando de cabeça, a aplaudir. Endireitou-se, de mãos nos rins, cansado da posição que mantivera. Sentou-se a mesa com muito cuidado e, tomando o lápis, recomeçou os cálculos pensando em números da roleta.

Longe, a sereia de um paquete reboava soturna. Ficou a encher de somas as folhas de papel rabiscadas até que ouviu a porta da rua guinchar e a voz do Fábio, a despedir-se. Pouco depois Dona Júlia bateu no vidro, chamando-o.

- Já vou. - Enfiou apressadamente as calças e, em mangas de camisa, arrastando chinelas, saiu do quarto, dizendo logo, com ódio:

- Veio falar de mim, essa besta...

- Não, não falou.

- Ora! não falou... Eu ouvi tudo, mamãe.

- Ficou aborrecido porque mandaste Mamede.

- Sim... Queria que eu fosse para pregar-me um dos tais sermões. A senhora fez bem em não aceitar o dinheiro. Que o guarde, não precisamos de esmolas. Pensava, sem dúvida, que íamos morrer à mingua. A mim é que ele não engana. - E foi caminhando para a sala de jantar.

O dia estava enevoado e triste; o ar frio picava. Paulo, a olhar o quintalejo, esfregava os braços voluptuosamente e, quando Felícia apareceu com o café, sentou-se trincando o pão com apetite. Cantavam na vizinhança e a voz, fresca e aguda, vibrava em trilos alegres.

- Onde estão os jornais?

- Em cima da mesa, - disse Felícia do corredor.

Estavam debaixo de umas velhas camisas que Dona Júlia remendava. Sentou-se na cadeira de balanço e, de pernas cruzadas, pôs-se a ler as folhas. As camaxirras chilreavam no jardim vizinho e o sol, rompendo as nuvens escuras, brilhou um instante, mas foi esmaecendo e, de novo, o dia entristeceu e esfriou. Com os olhos nas colunas dos jornais Paulo não via mais que manchas - o seu espírito estava longe. Por vezes demorava um instante nos períodos - aqui, num telegrama; ali, numa local: mas outra nuvem passava e lá volvia ele aos castelos do sonho, à fortuna, ao amor - ganhando à banca, torcendo-se de volúpia, vendo pilhas de fichas ou os olhos negros, irrequietos de Ritinha. Atirou longe os jornais e levantou-se bocejando alto, a estrincar os dedos.

- Que dia fúnebre!

- É volta de tempo. Amanhã é lua nova - explicou a velha limpando os óculos.

- Está frio. - E, lentamente, esfregando as mãos, foi caminhando para o quintal. - Onde está a toalha, Felícia?

- Na corda, nhonhô.

Dona Júlia sentou-se junto à janela e, tomando as velhas camisas, pôs-se a examiná-las vagarosamente. E ali ficou, numa curta felicidade, esquecida da sua mágoa, como se nada houvesse perturbado a tranqüilidade de sua vida modesta e mansa.

Esses instantes eram rápidos e raros. Às vezes, cosendo, distraída, entoava baixinho modinhas tristes, mas voltando-lhe a lembrança da filha, calava-se envergonhada como se ali houvesse um morto ou se o dia fosse de respeito, como os da Semana Santa. A alegria passava fugitivamente por aquele coração ferido, como a sombra duma ave rasteja n'água de uma lagoa triste. Quando o filho reapareceu já a encontrou na tortura.

- Viste na Gazeta o suicídio daquela moça?

- Não, senhora.

- Dezoito anos! - suspirou baixando a cabeça ao peso dum pensamento doloroso. - É duma coisa assim que eu tenho medo. E levantou os olhos que brilhavam úmidos por trás das lentes dos óculos de ferro. - É mesmo, meu filho. Foi uma loucura, mas sabe Deus se, a esta hora, ela não está arrependida por aí. É por isso que eu não durmo.

- Ora, mamãe... Está a senhora a gastar cera com ruim defunto.

- Para que falas assim!

Encarou-o repreensiva e já as lágrimas rolavam-lhe dos olhos, grossas e compridas, caindo nas velhas camisas que ela amontoara ao colo, quando Paulo, encolhendo os ombros, resmungou:

- Está bom...

- Deixa! o choro alivia-me.

- Mas mamãe há de passar toda a vida chorando?

- E achas que posso viver alegre?

- Mas isso aborrece.

- Aborrece... Aborrece por quê? Eu não tenho o teu coração. Vivo aqui sozinha e, quem me faz companhia, ainda assim, é ela.

- Violante?

- Então?

- Pois sim...

- Agradece a Deus esse gênio. És indiferente, não te importas. Eu não sou assim. Que hei de fazer? A culpa não é minha.

Estavam os dois conversando quando Felícia entrou na sala, a correr, espantada como se houvesse visto algo de sobrenatural. Paulo encarou-a.

- Que é?

A negra resmungava, com os olhos cravados no corredor da cozinha; pôs-se depois a examinar o vestido, a esfregar os braços; e respirou largamente.

- Que é, Felícia? - perguntou Dona Júlia, descansando os óculos na costura.

- Que coisa, minh'ama! Esta casa não é direita - e meneou com a cabeça lentamente. - Não é direita, não. Já não é a primeira que me acontece.

- Que foi? indagou o estudante.

- É alma, nhonhô. Eu ouço voz: chamam por mim, puxam o meu vestido. Outro dia, eu estava estendendo roupa no quintal, e ouvi um gemido saindo do chão, como de gente enterrada. Fiquei toda arrepiada, com os cabelos em pé, e corri para dentro. Estava batendo meio-dia.

- Tu estás malucando, rapariga - disse Paulo com indiferença.

- Malucando... Eu só queria que vosmecê ouvisse. Esta casa não é direita, - repetiu d'olhos baixos, fazendo com a mão um gesto negativo. - Não é direita, não! Queira Deus que seja maluquice minha; e vagarosamente, receosamente, foi caminhando para a cozinha.

Uma chuva miúda, peneirada, batida de vento, entrava pela janela. orvalhando o oleado da mesa. Paulo desceu a vidraça, murmurando contra aquele tempo inconstante. O céu estava completamente encoberto, não havia mais esperança de sol, e o mar, enfurecido, estrondava d'encontro ao cais.

- Vais sair com este tempo?

- Que remédio!

- Mas almoças primeiro?

- Almoço.

Recolheu-se ao quarto e, com a toalha úmida pelos ombros, esfregando as mãos, ficou a pensar no jogo que devia fazer. Antes, porém podia dar um pulo à estalagem: prometera um presente à Ritinha; ao mesmo tempo resolveriam sobre a mudança, traçando o programa amoroso da vida em comum, num cantinho que ele mobilaria com gosto, onde poderia passar parte das noites gozando os carinhos dengosos da mulata. Pôs-se a assobiar, indo e vindo no acanhado aposento, até que ouviu uma badalada de sino. Meio-dia! Ficou espantado e, às pressas, como se o chamassem negócios, atirou longe a toalha e começou a vestir-se azafamadamente. Ainda atava a gravata, quando abriu a porta e bradou:

- Olhe o meu almoço, mamãe.

À mesa, preocupado, mastigava maquinalmente, d'olhos parados, balançando as pernas. Dona Júlia notou-lhe a distração.

- Tu não estás aqui, Paulo.

- Senhora!? - exclamou ele, como se houvesse sido despertado.

- Estás tão distraído...

- Pensando na vida.

- Pois sim, mas come descansado. Essa comida, assim, não sustenta. Há tempo para tudo.

- Fala-se em um concurso na Secretaria do Exterior, - disse abruptamente. - Estou com vontade de entrar. - Baixou os olhos e, de cotovelos fincados na mesa, a cabeça nas mãos, ajuntou: Só assim eu me veria livre desta canalha. Somos nós dois apenas... - Dona Júlia olhava, sem compreender o que ele dizia. Mamãe não tem vontade de ver a Europa?

- Eu? Sair daqui? Deus me livre! Que vou eu buscar na Europa?

- Ora, que vai buscar... Pois eu ando a pensar nisso. A diplomacia foi sempre o meu ideal. Que futuro tenho eu aqui?

- Pois não estás estudando medicina?

- Ora, médicos há-os por aí aos centos, pedindo empregos públicos. Não vale a pena perder seis anos em uma Academia para andar, depois, atrás de ministros, implorando um lugar de amanuense. Demais, com essa história de Violante, não tenho coragem de voltar à faculdade. Enfim...

Levantou-se, foi à janela olhar através dos vidros embaçados.

- Deus me livre de sair daqui - resmungou Dona Júlia, raspando da toalha umas migas de pão. - Não abandono minha filha, isso nunca!

Uma cena estranha, que se passava à porta da cozinha, levou a atenção dos dois para aquele ponto. Felícia, ajoelhada na soleira, à chuva, a cabeça toda para trás, os braços abertos em cruz, olhava enlevadamente o céu, a chorar. De instante a instante esmurrava o peito suspirando agoniadamente. Os dois olhavam embasbacados, e a negra, sem dar por eles, continuava naquele êxtase, supliciando-se.

- Que tem Felícia, mamãe?

- Não sei.

- Essa rapariga não anda boa.

- Parece que, com a morte do filho, a coitada ficou sofrendo.

- De que morreu ele?

- Morreu na revolta. Dizem que foi degolado. Era marinheiro.

- Felícia! bradou o rapaz.

A negra voltou a cabeça, espantada e, vendo-o, levantou-se e desapareceu. Ele foi à cozinha, já a encontrou junto ao fogão, enrolando a trunfa.

- Que história é essa, Felícia? Fizeste alguma promessa? Perguntou a rir.

- Não ria, nhonhô... Vosmecê é muito criança ainda, está começando a viver. Não ria, não.

- Mas que tens tu?

- Que é que eu tenho? Eu sei, meu senhor? Olhe, nhonhô, - explicou com mistério, chegando-se muito ao rapaz, para que ele lhe ouvisse bem as palavras: A gente está aqui e está lá. Não é a alma dos outros que vem, é da gente que vai. Quem morre descansa, quem está vivo é que vai mexer com os mortos. O cemitério é como uma casa de marimbondos: vosmecê passando quieto, os bichinhos não mordem, mas bulindo... - e curvou-se, arregalando muito os olhos, a fitar o rapaz. - Eu fui bulir... - concluiu, encolhendo os ombros com resignação.

- E os maribondos caíram em cima de ti.

- É, sim senhor.

Paulo não conteve o riso e, rindo, tornou à sala.

- Que tem ela? perguntou Dona Júlia.

- Disse que os mortos são como os maribondos. Foi bulir com eles e não a deixam.

Depois da saída de Paulo, Dona Júlia, que logo atinara com a causa da "maluquice" da negra, foi ter com ela e pôs-se a dar-lhe conselhos. "Que se deixasse de espiritismo. Não acreditasse naquelas comédias, visse o exemplo das outras. Se quisesse fazer alguma coisa pela alma do filho, mandasse rezar uma missa. Aquilo era uma exploração, uma vergonha que a polícia devia proibir."

A negra protestou, defendendo a sua crença:

- Não! minh'ama, desculpe, mas vosmecê não tem razão; antes de eu ir lá era pior: não podia dormir. Agora ainda eu descanso, e dantes? Vosmecê não tem razão. Eu sei que meu filho vem me buscar, e minha ama pensa que eu tenho medo? Não senhora. Se fosse ele só, eu ficava contente, mas é que, atrás dele, vêm muitos e são maus. querem a minha perdição; desses é que eu tenho medo. Se eu dissesse a vosmecê os conselhos que eles me dão, vosmecê havia de dizer que eu estava variando. Desses é que eu tenho medo, desses sim.

- Mas não te metas mais com aquela gente, confia em Deus, entrega-te a Nossa Senhora. Tu não sofres mais do que eu: perdeste teu filho, e eu?

- Nhá Violante está viva, pode voltar. Damião... esse...

- Está com Deus.

- Qual, minh'ama, isso é o que a gente diz.

E as duas continuaram ainda conversando.

13

Paulo, chegando ao Largo da Carioca, avistou Mamede num grupo, à porta do Café Paris. Lembrou-se de Ritinha: estava só, podia ir vê-la com segurança. O mulato não dera por ele - lá estava a falar, com largos gestos, sacudindo as abas de um cavour cinzento. Era cedo para o seu jogo, tinha tempo de chegar à estalagem - e foi caminhando para a Rua da Carioca. Passou um bonde apinhado, com as cortinas esvoaçando, e Paulo, hesitante, com receio de ser pilhado pelo mulato, já seguia para a esquina, a espiá-lo, quando o viu passar, apressado, entrando na Rua da Uruguaiana, "Ia para o Cordeiro..." pensou, mas, para certificar-se, seguiu-o à distância, e só descansou quando o viu enveredar para a Rua da Conceição. Podia ir tranqüilo porque, ainda perdendo, Mamede só deixava a batota quando o banqueiro suspendia o jogo. Ficava peruando, a filar cigarros, esperando um amigo, um conhecido, que lhe emprestasse uns cobres e, quando saía, a pretexto de negócios, era para ir para a Rua do Ouvidor, pescar alguma coisa para tentar a desforra.

Entrou na confeitaria, escolheu doces, frutas e, tomando um tílburi, mandou tocar para a Rua do Riachuelo. Para o jogo era cedo, raros seriam os pontos àquela hora. Às vezes o Junqueira, para matar o tempo, arriscava-se a bancar o dado. A roleta só funcionava à noite.

A estalagem estava enlameada, com poças fundas, mas, apesar da chuva, o trabalho prosseguia. As lavadeiras lá estavam, dobradas sobre as tinas, cantando e esfregando a roupa. A máquina do alfaiate trepidava com fúria e, sob uma coberta de zinco, um velho amolador, em mangas de camisa, pedalava com lentidão, afiando um machado.

Antes de chegar à casa de Ritinha, ouvia-lhe o riso vibrante: tinha visita. Esteve um momento parado, protegendo os embrulhos sob o guarda-chuva, mas não querendo despertar a coscuvilhice daquela gente, entrou no pequeno jardim, e, abrigado sob a latada, que gotejava, pediu licença.

- Quem é? perguntou a mulata.

- Mamede está?

- Oh! É o senhor? Entre. Então precisa pedir licença? Mamede não está, mas é o mesmo.

Apareceu à porta, risonha. Uma crioula gorda, com a cara esfuracada pelas bexigas, levantou-se vexada, cumprimentando-o. Ritinha apresentou-a:

- Dona Castorina. É quem cose para mim. Fomos vizinhas muito tempo. Sente-se - e ofereceu uma cadeira ao estudante. - Bom tempo aquele! relembrou saudosa. Qual! eu ainda volto para aquela casinha, - disse com a cabeça pendida, alisando molemente os cabelos. - Tola fui eu em ouvir cantos de sereias... Podia estar muito bem.

A crioula arregalou os olhos e, sorrindo, acenou afirmativamente.

- A senhora não imagina como eu tenho saudades daquele lugar, a gente vivia independente, à sua vontade, não era isto! - e esticou um beicinho desprezível. - Não nasci para morar em cortiço. A gente tem casa e não tem: volta e meia é um vizinho pedindo uma coisa e outra. A senhora pensa? O que eles querem é meter o nariz na vida da gente. Comigo não! Eu passo por soberba, mas tanto se me dá como se me deu. Bom dia, boa tarde e acabou-se. Eu, não. A senhora não acha?

A crioula sorriu, já de pé, concordando:

- Ora! não há como uma casa: custa mais um pouco, mas a gente está sossegada. - E despediu-se desculpando-se: "Tinha ainda umas voltas..."

Estendeu a mão ao estudante e as duas caminharam para a porta, ficaram algum tempo cochichando, à risota.

- Cuidado com a lama. Vejam como está isto. Parece um chiqueiro.

E a crioula, abrindo o guarda-chuva, com a saia arrepanhada, despediu-se:

- Adeusinho! Apareça.

- Sim.

Voltando-se repentinamente, a mulata fitou o estudante com um malicioso.

- Então, como vais?

- Eu, bem; e o senhor?

Paulo foi buscá-la à porta, enlaçou-a pela cinta, beijou-a. Ela recebeu-o com indiferença, deixando-se levar molemente.

- Estás zangada? - perguntou sentando-a nos joelhos.

- Eu, não. Por quê?

- Tão fria...

- Como queria o senhor que eu estivesse?

- Tu não és assim...

- Eu danço conforme tocam, - disse baixando a cabeça.

- É por que não tenho aparecido?

- Decerto.

- Se soubesses como tenho andado atrapalhado.

- Faço idéia...! Já acharam sua irmã?

- Qual! Escuta, disse ele, evitando o assunto: Pensaste no que te propus?

- Que foi? Não me lembro.

- Vivermos juntos.

Olharam-se longamente, por fim a mulata meneou com a cabeça.

- Não. Tudo quanto o senhor quiser, menos isso.

- Por quê?

- Porque não.

- Gostas mais de Mamede?

Ela conservou-se calada, retorcendo a renda do casaco.

- Fala.

- Não é por isso.

- Então por que é?

Ela deu d'ombros.

- Fala.

- Não sou mulher para o senhor.

- Por quê?

- Ora... por quê! O senhor bem sabe.

E, de olhos baixos, com a voz arrulhante:

- A gente dá um passo desses, depois arrepende-se e quem sofre é a mulher. Olhe, uma companheira minha, por nome Belmira, vivia com um moço empregado na Estrada de Ferro. Ele não lhe dava luxo porque não podia, mas nada lhe faltava, verdade seja dita. Um dia, por uma coisa à-toa, brigaram e Belmira, que já andava de namoro com um mocinho como o senhor, deu um pontapé no seu homem e foi para a companhia do outro. Viveram bem durante um ano, mas o moço formou-se e foi para a terra dele prometendo voltar e a coitada ficou para aí com uma filhinha, sem um pão para comer. Não...

- E pensas que eu sou capaz de fazer o mesmo contigo?

- Ora! Eu sei o que são entusiasmos... - e esticou o braço para a mesa: que é que tem nesse embrulho?

- Frutas e doces.

- Para mim?

- Para quem hão de ser? Mas vamos ao nosso caso: Queres ou não?

- Não. - Voltou rapidamente a cabeça. - Mas me diga uma coisa: o senhor não vem aqui quando quer?

- Venho.

- E então?!

- Mas quero que sejas só minha! - exclamou apertando-a com frenesi.

- Isso é lembrança. Que tem uma coisa com outra?

- Tem muito.

- Qual nada!

Tomou o embrulho ao colo, desfê-lo separando os dois que vinham unidos. Palpou-os e, sentindo as frutas, rasgou o papel.

- Assim até tem mais graça e quando o senhor me enjoar pode dizer adeusinho.

E, arregaçando faceiramente o lábio, com a cabeça pendida trincou uma pêra.

- Então decididamente não queres?

- Olhe, quer saber? a coisa de que eu tenho mais medo neste mundo é barriga. Deus me livre! Se eu fosse como muitas que há por aí, isso sim, mas eu! Eu, se tiver um filho, na roda é que ele não vai - mal ou bem hei de criá-lo, o pouco que eu tiver há de chegar para ele. Não quero que Deus me castigue por causa de maluquices. Se vier...

- E Mamede?

- Ah! Mamede é da minha cor, não terá vergonha do meu filho. mas com um moço branco como o senhor... Não! Amanhã encontra uma moça bonita, quer casar... e Ritinha que se agüente no balanço.

- Má!

- Má, por quê?

Encararam-se e ele, apertando-a, ameaçou-a:

- Pois eu venho aqui todos os dias!

- Pode vir, contanto que Mamede não saiba.

- Que saiba! pouco me importa.

- Isso não, que eu não quero cenas comigo. Se o senhor tivesse uma moça por sua conta gostava que ela recebesse outro homem? Não, o direito é o direito. E para quê?

Olhou-o e, vendo-lhe os olhos abrasados, desatou a rir, resmungando:

- Hum! até faz medo à gente... Nossa Senhora!

- Pois eu já tinha apalavrado um cômodo.

- Eu não moro em cômodos.

- Por quê?

- Não gosto.

- Pois eu vejo uma casinha.

- Não quero, já disse. Que teima!

- Mas quero eu! - rugiu Paulo, apertando-a com fúria, procurando-lhe sofregamente a boca úmida que ela desviava encolhendo-se, a rir. Encontraram-se, por fim, os lábios e Ritinha, vencida, derreou a cabeça, retesando a gorja. Os braços penderam-lhe flacidamente, foram-se-lhe os olhos fechando... Súbito, porém, como se a ardência do estudante se lhe houvesse comunicado, correndo-lhe as veias, agitando-lhe os nervos, lançou-lhe os braços ao pescoço e enlaçou-o. Desprendendo-se, ofegante, com a boca entreaberta, levantou-se. Paulo correu à porta e ia fechá-la, quando ela avançou, retendo-o:

- Está maluco!? Pensa que essa gente não viu o senhor entrar? Deus me livre! Logo mais estava tudo nos ouvidos de Mamede. Não, deixe a porta assim mesmo.

- E se ele vier?

- Qual! Ele não vem agora. Está no jogo.

- Isso sei eu que o vi passar para a casa do Cordeiro.

- Pois então?

- Mas pode aparecer por aí.

- Qual nada! Só à noite.

Tomou outra pêra, mas Paulo arrancou-lha da mão.

- Deixa-te disso agora.

- Que é que tem?

- Ora!

Ela abandonou a fruta sobre a mesa, ele beijou-a.

- Olhe, eu digo a Mamede que o senhor esteve aqui antes que ele saiba por algum desses intrigantes. Não quero histórias comigo.

- Pois sim.

Eram quatro horas da tarde quando Paulo, com um último beijo, disse adeus à Ritinha. Chovia e a estalagem triste, de desusada tranqüilidade, com as compridas cordas gotejando e oscilando ao vento, as tinas abandonadas, os coradouros vazios, parecia deserta. Dois pequenos agachados à beira de uma sarjeta, impeliam para a correnteza barquinhos de papel; galinhas muito murchas, encolhidas a um canto, tiritavam encharcadas.

A porta de uma casinha robusta mulher, encostada ao umbral, uma das mãos engastando o queixo, olhava, com melancolia, o céu carregado, cinzento, sem esperança de sol. Adiante, em outra casinha, a família jantava. O homem, já grisalho, em mangas de camisa, à cabeceira da mesa, os braços muito abertos, as bochechas cheias, todo derreado sobre o prato, devorava. Um pequenote, balançando as perninhas escalavradas, esmagava o bolo de feijão; a mulher, magra, triste, comia lentamente, com ar enfastiado. De pé, na penumbra, ao fundo, uma rapariga ruiva, com um prato sob o queixo, chupava talhadas de laranja, chuchurreando tão alto que se ouvia de fora, e um cão negro, sentado, com as orelhas atentamente fincadas, olhava o homem, à espera de algum bocado.

Meninos, com as calças arregaçadas, chapinhavam sordidamente na lama, aos gritos. Entrava gente - um velho mascate, curvado ao peso da grande caixa; um vendedor de fósforos, com o tabuleiro suspenso à altura do ventre, coberto por um encerado; operários, com as ferramentas, e, à porta da venda, que comunicava com a larga entrada da estalagem, em túnel, havia um ajuntamento: homens de pé, outros sentados em pedras, fumando, conversando.

Fora, ao portão, um garoto apregoava os jornais da tarde. Cães morrinhentos dormitavam pelos cantos e, defronte, num sobradinho amarelo, uma mulher gorda, com fofos de renda à volta do pescoço, chupava roletes de cana, atirando o bagaço à rua.

Apesar da chuva insistente, Paulo adiantou-se para tornar o bonde mais em cima, receando que Mamede o encontrasse ali àquela hora. O bonde estava enlameado e, com o bater das cortinas, iam-lhe ao rosto friíssimos respingos.

Era cedo, talvez, para o jantar. Repentinamente um escrúpulo assaltou-o: "Não, não ia jantar à batota para que o não tomassem por um parasita; tinha dinheiro bastante para pagar-se um bom jantar, bem regado e silencioso".

Detestava as conversas da tavolagem: eram sempre os mesmos assuntos triviais - mulheres e sorte à banca, caprichos da roleta ou dos dados e fantasias de cocottes ou, então, a reles política, recapitulações de artigos de fundo, com os comentários imbecis dos críticos da Rua do Ouvidor.

Só o Junqueira sabia conduzir a palestra para as largas regiões da inteligência, e quando aparecia o Aurélio Mendes, autor do Incréu, romance macabro, vivido em eras obscuras, com alquimistas e bruxas, que era uma critica sutil aos costumes contemporâneos, então apontavam idéias, ressoavam frases, rebrilhavam imagens, explodiam paradoxos. Mas Aurélio andava adoentado e raramente subia à roleta, passando os dias no Laemmert, a folhear brochuras ou na Biblioteca, pesquisando, escavando assuntos para novelas e poemas.

Foi jantar ao Globo. Comia tranqüilamente, olhando as gravuras de uma revista inglesa, quando descobriu, em uma mesa fronteira, dois rapazes que trocavam segredos, olhando-o. Sentiu todo o sangue afluir-lhe ao rosto e, nervoso, carrancudo, chamou o criado e pediu uma garrafa d'água mineral.

Os rapazes continuavam a sorrir e Paulo, a mais e mais perturbado, acompanhava-lhes os movimentos, mirando-os de soslaio. Uma gargalhada estourou, ele recebeu-a em cheio, como uma afronta; o próprio criado, correndo com a garrafa de Seltz, a perguntar-lhe se queria gelo, tinha nos lábios um sorriso escarninho.

Era dele que tratavam e aquela zombaria ligava-se, com certeza, à fuga da irmã. Algum daqueles tipos conhecia-a, era, talvez, o seu amante, e ria-se, narrando, sem dúvida, ao companheiro, fatos miúdos da vida doméstica que lhe relatara Violante - as brigas, as ameaças e, finalmente, a fuga naquela noite agreste.

Mal encetou a costeleta que pedira, rejeitou a sobremesa e foi mais por vergonha do criado, que se serviu de um pouco de queijo. Pagou e saiu, atordoado, como perseguido pelo clamor de uma vaia. Canalhas! rosnou, descendo a escada.

A chuva jorrava torrencial e com muito vento. Ficou no botequim do pavimento térreo, abancou a uma mesa, pediu café e cognac, e quedou acabrunhado, os olhos ao longe, a pensar, com ódio, nos rapazes, desejando um desforço, uma vingança ruidosa. Canalhas!

Lançou os olhos ao relógio - eram cinco e meia, e estava escuro como se fosse noite. Que fazer com aquele aguaceiro? Revoltou-se contra o tempo; parecia um castigo e, como para justificar-se perante Deus, pôs-se a murmurar, passeando pela mesa o seu cálice de cognac:

"Se fosse por vício... Arranjasse eu um emprego... Mas que hei de fazer?" Calou-se, mas intimamente continuou a alegar razões: "Achasse eu um bom lugar... Como manter a casa? A culpa não é minha, bem que tenho procurado - negam-me sempre: que não há vagas..." E, convencido daquele sonho, como se efetivamente houvesse andado a implorar em vão, indignou-se contra os políticos, uns medíocres, que só queriam imbecis que os não suplantassem. "Pulhas!"

A esperança refugiou-o no jogo. Súbito os dois rapazes apareceram, rindo, e era dele que riam - haviam-no avistado. Pagou e levantou-se impetuosamente, sem que os rapazes dessem pela sua fúria.

Fazia um frio de inverno e, com as refregas de vento, a chuva penetrava, gelada, borrifando as mesas mais próximas da porta. Ouvia-se o gorgorejo d'água, que golfava das gárgulas, formando enxurradas. Tílburis passavam à pressa; as goteiras rufavam nos guarda-chuvas.

O botequim enchia-se de gente, que entrava a correr, fugindo à borrasca - uns, limpando os casacos, metiam-se para o fundo, procurando lugar às mesas; outros ficavam pacientemente à porta, esperando uma estiada.

Paulo não se atrevia a sair e começava a impacientar-se, quando viu vir um menino, a correr, rente com a parede, a procurar abrigo. Chamou-o. O garoto levantou a cabeça e deteve-se, com a chuva a bater-lhe nas costas, a escorrer-lhe pelo rosto. Paulo ofereceu-lhe uma gorjeta, para que lhe fosse buscar um tílburi. O pequeno curvou-se, ganhou a rua de um salto, a correr, logo desaparecendo, abrumado pelo aguaceiro.

Um velho, que se acolhera junto à escada, murmurou, aborrecido: "Que tempo!" e logo outro, refugiado, achando ensejo para desabafo, pôs-se a vociferar contra a Prefeitura e os "senhores intendentes", que se abotoavam com o dinheiro do povo, "o nosso sangue", deixando as ruas naquele lamentável estado. Era uma vergonha!

E toda aquela gente, que o temporal prendia, vitimas do mesmo suplício, buscando um derivativo para a cólera, rompeu em acrimoniosas censuras contra o governo, lamentando que tão linda cidade fosse assim esquecida, tornando-se um esterquilínio, um foco de moléstias. O velho ousou uma tímida referência ao tempo da monarquia:

"Era outra coisa. Havia mais cuidado, isso havia. Mais cuidado e mais respeito."

- Ora qual! Vem agora o senhor com a monarquia. No tempo da monarquia era pior. Eu também de lá venho! - berrou um sujeito magro, de pêra, levantando a gola do casaco. - A imundície data de velho tempo e há de acompanhar o país até a consumação dos séculos. É uma praga! Qual monarquia, qual história!

O velho investiu, nervoso, cruzando os braços sobre o guarda-chuva molhado:

- Era pior, era pior, diz o senhor; mas quanto custava um quilo carne? um cruzado!

- À pataca comprei eu muita, e da boa! - emendou outro

- Sim, senhor: à pataca, - confirmou o velho. - E hoje?

- Mas nós falamos de carne ou da imundície da cidade, dos meus esgotos?

- De tudo. É tudo uma patifaria! - rouquejou o velho. Não temos homens...

- Para que homens?

- Para quê?

- Sim, para quê?

- Para endireitarem isto.

- Endireitarem... Homens temos nós de sobra. Quer o senhor saber que é que nos falta?

- É vergonha! é patriotismo...!

- Histórias! O que nos falta é dinheiro. Os homens são os mesmos, os vícios são os mesmos, estamos como dantes. Houve apenas mudança de rótulo.

Explodiu um "apoiado", e o da pêra repetiu: "É isso... Houve apenas mudança de rótulo."

A algazarra crescia no fundo do botequim, ao tinir de copos, ao estourar de garrafas, e um bafio quente vinha de dentro, como de enorme calorífero.

- Decididamente esta coisa não passa, - disse o da pêra, com impaciência, e abrindo o guarda-chuva, despediu-se: "Boa noite, meus senhores!" e arrojou-se. Houve um surdo rufo e o homem lá se foi, a largas pernadas, muito esguio, como um cogumelo negro levado pela enxurrada.

Um tílburi apareceu vagaroso, e parou diante do Carceller; pouco depois o garoto surgiu, cansado, com as roupas coladas ao corpo, desenhando-lhe as formas mirradas.

- O tílburi está aí, moço.

Paulo meteu-lhe uma nota na mão e, abrindo o guarda-chuva, em pontas de pés, aos saltos, atravessou o passeio alagado ganhando o veículo e mandou tocar para o Largo do Rocio.

14

Logo ao entrar na batota soube, pelo porteiro, que lhe abriu a grade, que o jogo ainda não havia começado, por falta de pontos. Efetivamente, ao chegar ao fundo do segundo andar, já com todos os bicos de gás fulgurando, encontrou o Messias e os seus ajudantes, reunidos na sala do bilhar, onde reluzia a buvette de mármore, ouvindo as invectivas do Aurélio Mendes. Trocou ligeiros apertos de mão e sentou-se a um canto, discretamente, para não interromper a facúndia do "sinfonista verbal".

Aurélio, muito apiançado da asma, estava em um dos seus dias e. apesar da dispnéia, que o forçava a escancarar a boca de instante a instante, numa necessidade de ar, vociferava contra as "múmias", essa legião decrépita de lorpas, sem imaginação, sem estilo, que empanturrava o mercado de sandices, concorrendo criminosamente para a imbecilização do indígena. Citava autores e obras, recitava trechos, pedindo que lhe mostrassem, naquelas verbiagens insulsas, um período, uma frase, um só vocábulo que revelasse emoção, estesia. Era tudo palhada, tudo palhada! afirmou com desprezo, engrolando um grosso pigarro. Messias, muito míope, d'olhos apertados, em dois talhos, para manter a fama de espirituoso de que gozava, atirou-lhe uma piada:

- Deixa lá, Aurélio, há de chegar o teu dia. O diabo é essa asma que te arrasa. Mas não importa! Hás de ainda de passar aqui pelo Rocio num andor, com uma coroa como a de Camões, e nós lá estaremos à janela, com flores. Hás de ter o teu dia... Mas vê lá essa tosse, isso é que não vai bem.

Os ficheiros riram com estardalhaço e os olhos do Messias apertaram-se ainda mais. Aurélio, com a pilhéria do andor, ficou apoplético e bramiu:

"Não rissem. Lá isso de andor era uma história, mas a baboseira havia de acabar, a Arte Nova aí vinha, sonora e rica, luminosa e forte, veriam! O povo havia de convencer-se de que tudo aquilo não valia os bocejos que provocava e a verdadeira, a pura Arte seria largamente indenizada." E confessou que não desanimava, que havia de trabalhar sempre, com fé: tinha no fundo da gaveta dois poemas e outro romance, além do Incréu, cuja tese era a emancipação da mulher, com um protesto contra o celibato clerical.

- Hás de ter a tua estátua, Aurélio; afirmou Messias estalando os dedos.

- Não me preocupo com banalidades - retorquiu o poeta, abafando um acesso de tosse. E já se dispunha a dar um "pálido esboço" da sua grande tese feminista, quando Junqueira apareceu com um homem gordo, de óculos escuros, ferozmente carrancudo e barbado.

Messias, esquecendo o grande artista, levantou-se risonho, muito amável com o Junqueira que murmurava contra o tempo insípido. O gordo reclamou, com pressa, um cálice de cognac que um dos ficheiros logo serviu, açodado e sorrindo.

Era deputado por um dos Estados do Norte. Na Câmara encaramujava-se num silêncio obstinado, contentando-se em dar o seu voto de grande peso nos destinos da Nação. Fora, alijando a gravidade legislativa, era homem alegre e de aventuras - tinha amores, freqüentava assiduamente os cassinos e, uma vez por outra, palpitando, subia sorrateiramente à batota para fazer medrar uns restos escassos do subsídio, e era à mesa dos chopes ou com os cotovelos no pano verde que lançava as suas opiniões sobre a crise financeira, propugnando a necessidade da revisão e duma esquadra que vigiasse os mares.

Paulo, com a chegada do Junqueira e do deputado, animou-se, certo de que o jogo começaria logo, tão impaciente estava por aplicar os planos que imaginara. Aurélio convidou-o para uma partida ao bilhar, logo, porém, Messias anunciou "que iam começar". Paulo aventurou timidamente:

- Mas não há pontos.

- Como não? Para começarmos há o senhor, o Junqueira, o doutor e aqui o nosso Aurélio, que também joga. Não arriscas um pouco, poeta?

- Sim, um pouco, - murmurou complacente, atirando uma tacada.

Os ficheiros passaram à sala da roleta e Messias, no seu andar de palmípede, lá os foi seguindo, vagarosamente.

Chegavam outros pontos subindo as escadas com rumor. Por uma janelinha, ao fundo da sala do jogo, aberta sobre o telhado, esfuziava um vento áspero. Messias fechou-a declarando, com a sua voz macia e imperturbável: "Que chovia a potes". Em torno da roleta empilhavam-se fichas de várias cores e ao lado de Messias acastelavam-se maços de cartões.

Enquanto esperava, Paulo, indo e vindo, consultava-se: Se devia começar jogando forte, fazendo paradas atrevidas que, em dois ou três golpes, o levantassem; se devia insistir no joguinho manhoso, sem comprometer-se, até conseguir um bom lucro para atirar-se, então, afoitamente. Acercou-se de Messias, que já assumira o seu lugar à banca e, com a mão no bolso, acariciava as notas, olhando, ora as fichas, ora os cartões, indeciso, quando os dois outros pontos entraram, vociferando contra a noite estúpida.

Não os conhecia; logo, porém, notou que eram íntimos pela liberdade com que tratavam o banqueiro. Um deles, já velho, abrindo a bojuda carteira, pediu cem fichas; o companheiro contentou-se com a metade. Junqueira e o deputado pediram cartões. Aurélio esgueirou-se sorrateiramente com a coleção das vermelhas e foi sentar-se à cabeceira da mesa para esperar no grande. Na sala do bilhar havia mais gente e Messias voltava-se de quando em quando para espiar; por fim fez soar a campainha que retiniu longamente. De fora bradavam: "Já vamos!"

- É o Narciso, está no cognac, - disse Messias escolhendo uma bola.

Um dos ficheiros foi à lousa marcar o tempo da banca: 8 e 40. A roleta girava, macia e silenciosa. Paulo estendeu uma nota de cem mil-réis.

- Uma coleção.

- Tudo?

- Metade.

- Quer o troco em cartões?

- É indiferente.

- Para a terceira dúzia, não? Eu levo.

E o ficheiro, empilhando as fichas de madrepérola sobre cinco cartões, deixou-as à cabeceira da mesa. Aurélio, que calculava, levantou a cabeça:

- Vens jogar cá em cima?

- Sem dúvida. Sou fiel aos meus números.

- Deus queira que estejas com a sorte de ontem.

Junqueira e o deputado iam ladrilhando a cartões a segunda dúzia. O velho espalhava salteadamente, acompanhando um setor e o companheiro, muito atento, com o cigarro amolecido nos beiços, hesitante, passeava uma ficha de casa em casa, como se jogasse as damas.

Messias ia dar à bola quando um rapaz moreno, elegante, apareceu protestando contra a pressa. "Que, ao menos, lhe dessem tempo para fazer jogo. Que diabo! Limpassem-no, mas não com tanta ganância. Assim era demais."

- Sempre se espera pela pior figura, murmurou Messias.

- Quem sabe se eu havia de vir para aqui com os pés encharcados, sem tomar uma coisa? A culpa não é minha. Boa noite, meus senhores. E que cognac infame! Passem-me uma coleção. E a primeira bola? - e, espalhando montinhos de fichas, perguntava: Se haviam jogado durante o dia? Como se portara o zero? Quem ganhara?

O tapete estava coberto, mas o jogo crescia na terceira dúzia. Messias impeliu a roleta e a bola, atirada de resvalo, pôs-se a circular; foram depois saltinhos nas baias, aos estalidos. O deputado ainda aventurou dois cartões; o velho, a tremer, deixou umas fichas no 4. Houve um momento de contida atenção - todo o rumor cessara, posto que a bola ainda rolasse. De repente, a uma leve pancada, Messias anunciou:

"Jogo feito!" Aurélio fitou-o, Paulo ergueu-se na cadeira, à espera do número.

- 11.

E o rateau foi raspando fichas e cartões, numa confusão de cores, com um estralar de rocalha. Só o deputado levantou cinqüenta e dois cartões. Paulo insistiu nos seus números e Aurélio afirmou que vira o onze, vira-o, mas não jogava no pequeno.

- 3.

Narciso pôs-se a tossir e reclamou cognac. O número estava quase franco, apenas o companheiro do velho tinha lá uma ficha. Ele próprio acusou o lucro:

- 35 brancas, aqui.

- Sim senhor, seu Barroso, lá vão.

Ao quinto golpe, insistindo o pequeno, Aurélio levantou-se resmungando:

"Que não tinha vergonha. Se tivesse vergonha, nunca mais jogava um vintém. Vivia a engordar banqueiros." Deu uma volta pela sala, rondando Messias; logo porém, que a bola começou a girar, lá tornou ao seu posto. Paulo, sem uma ficha, brincava com os cartões, receoso.

- Não jogas? indagou o sinfonista.

- Estou sem palpite.

- Pois olha, eu é porque fiquei a tinir, senão atirava agora tudo no grande. Paulo tomou um cartão, ia-o levando para a segunda dúzia; ouvindo, porém, o trepidar da bola, numa inspiração, às pressas, nervosamente, espalhou os cinco cartões em vários números da última dezena e recuou, a esmoer o cigarro apagado, d'olhos no tapete. "Jogo feito!" O coração batia-lhe em sobressalto, faltava-lhe o ar e, quando Messias cantou "33!" ele sentiu um abalo de vertigem e respirou.

- 35 cartões, declarou um dos ficheiros.

- Eu disse! - afirmou Aurélio, esfregando as mãos triunfante. Era fatal!

E quando Paulo recebeu o maço de cartões, já resolvido a jogar forte, o sinfonista, roçando por ele, pediu-lhe "alguma coisa pelo palpite..."

Paulo amuou. O outro insistiu, humilde.

- Eu não gosto de emprestar cartões, Aurélio; isso traz caiporismo.

- Ó filho, pois tu, um homem de espírito, acreditas em baboseiras!

- Baboseiras, não: tenho visto. Enfim...

Passou-lhe dois cartões, e foi o bastante para que desistisse de jogar forte. Pediu uma coleção de fichas. Deu o 31. Trincou o beiço. Teve ímpeto de atirar um murro à cara ossuda e radiante de Aurélio, que levantara 105 fichas. Ele tinha apenas quatro fichas no número - um dos seus números! - e teria aventurado um cartão, talvez dois, se não fosse aquele pedido, que o encabulara.

Intimamente injuriava o glorioso autor do Incréu. Era aquilo sempre, não podia ver um conhecido ganhar. Que diabo! E trêmulo, frenético, bebendo as fichas, ia-as dispondo em ordem, carinhosamente. Junqueira, que estava de azar, volta e meia atirava uma cédula aos ficheiros. O deputado, rindo, atribuía a sua "macaca" à Leontine.

- Sempre que vou à casa do diabo da mulher é isto.

Paulo começava a aquecer-se. Pediu um kummel, disposto a fazer loucura. Não valia a pena estar ali a perder tempo com fichinhas: ou tudo nada; o melhor era atirar de uma vez, e, vendo a calma do Junqueira, que acamava cartões, cercando, com insistência, o 20, arrojou-se carregando no 29 e cobrindo corajosamente os demais números da última dezena.

- 7!

Narciso resmungou uma torpeza, e Barroso, sem tirar o cigarro da boca, mostrou três fichas. Paulo desabafou vendo os seus cartões, as suas fichas rolarem no monte, raspados pelo rateou:

- Estás vendo? Que te disse eu? Justamente quando a sorte começava, vieste com os tais pedidos...

- Ora qual!

- Pois sim, mas nunca me peças dinheiro quando eu estiver jogando.

- E tu não me pedes?

Paulo cresceu para o poeta, de olhos chispantes:

- Nunca! Nunca pedi, nem peço!

- Ora, não pedes...

Ainda resmungaram. O sinfonista, sorrindo, brincava com as fichas, deixando-as cair d'alto por entre os dedos apinhados. Paulo insistiu no grande, mas quando a roleta amorteceu, Messias, sorrindo, chasqueou:

- Não fale mal da Leontine, doutor... - e declarou com lentidão, arrastando a voz: 17.

Houve um largo suspiro de desabafo - o número estava carregado. O doutor tinha dois cartões em pleno, Junqueira tinha outros tantos, e alguns a cavalo e no esguicho; Barroso tinha duas fichas. E murmurava-se: "Era tempo... É número que não falha. Demora, mas sempre vem..."

O sereno Junqueira não se perturbara e continuava a fumar, sem uma ruga na face, sem mais brilho nos olhos, imutável. Paulo começava a desanimar - cem mil-réis já lá estavam nas cordas. Decididamente devia fazer como Junqueira - jogo forte e metódico, escolhendo um número, firmando-se nele - quando desse recuperava o perdido, e ainda lucrava, e, com uma repetição, estourava a banca. Aquilo sim, pensava, maravilhado e invejando, enquanto pagavam ao Junqueira a atrevida parada; aquilo é que era jogar, o mais... histórias!

O tempo da banca estava a expirar quando entraram outros pontos. O melhor era aguardar a outra banca, com o Faustino à bola. Messias era um "mão-de-ferro", ninguém escapava. Logo, porém, que a roleta recomeçou a girar, sem calma para manter o protesto, pediu fichas, concentrou-se no 29; pouco a pouco porém, irresistivelmente, foi, cobrindo números ao acaso, seguindo as mãos que andavam, aos esbarros, deixando fichas, arranjando cartões. Ainda o pequeno.

Retirou-se afogueado, sempre com a idéia fatal de que a sua sorte fora desviada pelo sinfonista. O seu olhar faiscava de ódio, tremiam-lhe as mãos, e todo ele escaldava, como em febre. Messias anunciou, em voz rolante, a "última bola!". Narciso pediu fichas para "aquele infamíssimo zero" e, acumulando-o, injuriava-o.

- Vê lá agora, bandido! Juro que nunca mais estrago uma ficha neste miserável, se ele não sair desta vez. Há três dias que acompanho este monstro...

- É capaz de dar agora.

Alguns seguiram o Narciso. Paulo, para não comprar fichas, amarfanhou uma nota e lá a deixou. Deu o 8. Narciso rugiu, e o velho Barroso, cuspindo a ponta do cigarro, acusou - cinco fichas, a sua maior parada da noite.

- O senhor foi o herói, Sr. Barroso, aclamou o deputado.

- É, estava com alguma sorte.

- Se tivesse jogado com mais largueza...

- Tinha perdido, doutor. Este jogo só assim, a brincar; é como dá. Conheço-o muito. Em me alargando um bocado, são favas contadas.

- Fichas a troco.

Paulo contou o dinheiro e achou duzentos e quarenta mil-réis. Aurélio, junto ao Messias, acompanhava, com avidez, o troco que os ficheiros faziam - só o velho Barroso ganhara quantia apreciável. Junqueira, interpelado pelo Narciso sobre o prejuízo, deu d'ombros com indiferença; o deputado pôs-se a passear resmungando uma cançoneta. A esperança do estudante passou-se para a segunda banca - faria jogo mais ousado, longe do Aurélio, que o encaiporava, sempre a dar-lhe conselhos, a discutir, a comentar-lhe as paradas, sapeando, com os cotovelos fincados na mesa, o rosto esmagado entre as mãos lívidas. Foi à buvette, engoliu sofregamente um grog, receoso de perder a primeira bola.

Os pontos fumavam, beberricavam apressados cognacs, todos ansiosos. O próprio Junqueira que, entre uma e outra banca, costumava estirar-se um pouco na chaise longue, saboreando o seu whisky a pequenos goles, deixou-se ficar na sala da roleta, olhos no tapete, como a querer sondá-lo, penetrar a razão da sua longa e pertinaz desfortuna.

Messias continuava a bancar - lá estava repoltreado, pilheriando.

Já os ficheiros iam e vinham, açodados, deixando coleções aqui, ali. Um ar turvo, denso, tresandando acremente a fumo, pesava na sala. Paulo rejeitou as "pérolas", preferiu as sangue de boi. A sua primeira parada foi de um arrojo atrevido. Aurélio aplaudiu com entusiasmo:

- Assim, homem. Assim é que se joga. Nada de piabagem. Ele implorou:

- Pelo amor de Deus! não fales.

Narciso, injuriando o zero, cercava o 17. Mas quando a bola começou a saltar nas baias, não se conteve e, num arranque, esmurrou o seu azar com seis fichas. Deu o 36. Aurélio saltou na cadeira de olhos esbugalhados, e, meneando com a cabeça, num espanto, pôs-se a repetir:

- Sim, senhor...! Sim, senhor...! assombrado com a sorte do estudante, que sorria, feliz, sem ânimo de tocar na rima de fichas que deixara sobre o número. O ficheiro contou: 23, e logo anunciou - 805.

- Homem, agora tiraste o pé do lodo.

- Já era tempo...!

- Boa tacada! - e saiu, circulando a mesa, a repetir: Boa tacada! Boa tacada! - Mas, tomando ao seu posto, segredou ao estudante, retorcendo nervosamente o bigode: Estás de sorte, atira-te!

Às l0 1/2, anunciando-se a última bola, Paulo contou 260 cartões. Aurélio rondava-o d'olhos compridos.

- Fichas a troco... - disse morosamente o Messias, desligando um maço de notas.

Paulo recebeu o bolo - dois contos e seiscentos, aparentando indiferença, mas os dedos tremiam-lhe e uma palidez cadavérica cobria-lhe o rosto. Messias felicitou-o pelo "tiro"; ele sorriu.

Os pontos espalhavam-se comentando o jogo extravagante da noite, e Junqueira, sacudindo os braços, espichou-se na chaise longue abandonadamente, trauteando uma ária de opereta. O deputado propôs um "lansquenetezínho honesto" até meia-noite. Paulo declarou superiormente - "que topava", mas os outros negaram-se; até o Messias, sempre pronto, escusou-se alegando um compromisso sério: "Alguém que o esperava no Recreio".

- Homem, aquilo hoje deve estar magnífico, declarou Narciso, levantando-se e tomando o sobretudo.

- Com esta noite? qual! resmungou o deputado.

- Não é o benefício da Eugénie?

- Sim, é...

- Então, meu amigo, está cheio.

Messias, que abrira o postigo, anunciou uma noite magnífica, estrelada e com lua. A notícia abalou o Junqueira que, molemente, estirando os braços, deixou a chaise longue.

- Pois vou também dar uma vista d'olhos. Tenho um camarote. Queres vir, Narciso?

- Não, estou esbarrondado; vou meter-me na cama. Boa noite.

Outros despediram-se; e Paulo, não sem pena, foi tomar o chapéu. Aurélio esperava-o na sala do bilhar, friorento, esfregando as mãos, muito encolhido no seu casaco cor de pinhão.

- Onde vais?

- Ao Recreio. Queres ir?

- Vamos lá.

Procurou a bengala e, lançando por uma janela os olhos ao céu, ainda acastelado de nuvens, picado de estrelas, com uma lua triste, que parecia correr, fugir, declamou:

Lune, quel esprit sombre
romene au bout d'un fil,
Dans l'ombre,
Ta face et ton profil?

15

No jardim do Recreio, ainda úmido, com poças d'água rebrilhando, a banda dos bombeiros estrondava requebrados tangos. Frias lufadas balançavam as lanternas, enfunavam as bandeiras, retorciam as flâmulas que faziam uma aléia triunfal à entrada e circulavam a pátio, subindo às negras folhagens das árvores raquíticas como estranhos frutos d'oiro e farrapos espadanando, alongando-se no ar, coleando, tufando.

A multidão, refluindo, em levas densas, do recinto iluminado e quente, fervilhava galrando. O mulherio alegre, em esgargalada e provocadora ostentação de carnes, saracoteava, abaixo e acima, às gargalhadas estridentes, roçando pelos rapazes com afetada lascívia.

Explodiam garrafas, tiniam copos, os caixeiros acudiam com pressa estonteada, aos berros, às rijas bengaladas que estrondavam nas mesas, aos tinidos das garrafas, às palmas estraladas com que os chamavam de todos os lados. E a murmúrio arrastado e incessante dos passos dava a impressão dum grande vento a vergar frondes, a torvelinhar folhagens.

Eugénie, conhecedora do seu "mundo", atraíra à sua festa, como engodo, todo o parasitismo galante. Fora, à gandaia, circulava a miuçalha, a fina flor impunha-se nos camarotes fazendo, em lento passeio, a volta da varanda ou em palestra junto à balaustrada.

O botequim transbordava e por toda a parte era um sussurro de festa, uma alegria estróina, risadas, gritinhos ou, modestamente, em algum recanto mais calmo, em penumbra, um casal em colóquio, sorvendo licores - ela a fazer-se ingênua, tímida, d'olhos baixos; ele todo inclinado, meigo, segredando com doçura.

Quando Paulo e Aurélio chegaram, a orquestra atacava, com fragor, uma sinfonia e o jardim esvaziava-se, todos corriam para o recinto ou iam tomar lugar à volta da balaustrada que circula a platéia, com curiosidade de ouvir a Eugénie, que devia abrir a segunda parte. Os floristas levantavam as varas apinhadas de ramos, oferecendo-os; de longe em longe, à mesa de indiferentes, rolhas espocavam ou era um cão, tosado á feição leonina, que se punha a ganir, de rojo pelo chão, aos rebolos.

Os dois rapazes deram volta, olhando friamente. Aurélio notou o grande número de cocottes:

- Como está isto! Nem uma família... Enoja! Fez um momo e cuspiu.

Paulo, sem responder, varava a multidão, levando, de vez em vez, a mão ao peito para apalpar, sentir o dinheiro no bolso interior do casaco abotoado. Aurélio queixou-se do frio. "Estava picante..." e propôs uma dose de whisky e Seltz, ali fora, longe daquele tumulto sórdido que tresandava. Mas o pano ia subir.

Fez-se um movimento de atenção; as curiosos apertavam-se, oprimiam-se, espichavam-se, d'olhos alongados, à espera da beneficiada. Subitamente a pano enrugou-se, subiu. Houve uma explosão de palmas, voaram ramos e flores soltas ao palco e, sorrindo, com os dedos apinhados em beijos, viva, duma graça desembaraçada de efebo, muito escorreita num costume de jóquei, Eugénie desfazia-se em galanteios, comovida, atendendo a toda a sala, avançando, recuando, o busto curvado, pisando ligeiramente, com as botas muito lustrosas, o boné junto ao seio, a cabeleira loura toda arrufada em cachos.

O regente ergueu-se no estrado e ofereceu-lhe uma corbeille cheia de fitas esvoaçantes, com um casal de inquietos pombos brancos batendo as asas entre rosas. De novo as palmas estrondaram, e das torrinhas, num delírio, aos berros, o nome da cocotte era aclamado.

De repente, dum lado e doutro, em palpitante revoada, papéis esvoaçaram. Braços levantavam-se, esticavam-se colhendo-os no ar, amarfanhando-os, disputando-os; alguns ficavam em pedaços, mas continuamente, em torvelinho, vinham outros baixando a granel, e no recinto frufrulhava alegremente aquele perene rumor de vôos. Aurélio conseguiu apanhar um dos papéis e, lançando os olhos ao texto, arrevessou:

- Súcia! versos a uma biraia como esta... e assinados, Quem é o animal? Conheces?

- Não.

- É por infâmias tais que a Poesia tem baixado tanto. Besta!

E, furiosamente, rasgou a papelucho. Eugénie começara a cantar, numa vozinha infantil, com muitos rr e sorrisos.

- Vamos ao nosso whisky?

Paulo não respondeu - estava lívido, imóvel, d'olhos cravados num camarote, insensível a tudo, vivendo apenas para aquela visão.

Aurélio seguiu-lhe o olhar e murmurou, com enlevo:

- Bela mulher! Quem é?

O outro não respondeu, estatelado, como de pedra. De repente, recuando sem atender aos protestos dos que lhe ficavam em volta, afastou-se. Aurélio estranhava-o: "Que tens?" Ele encolheu os ombros, sacudiu o braço, nervoso, e distanciou-se da companheiro, mas hesitando, deteve-se, ficou a pensar, d'olhos em terra e, numa resolução, retrocedeu. O poeta seguia-o com o olhar, intrigado.

- Olha, Aurélio, preciso ficar só, deixa-me - é um caso. Se queres alguma coisa...

- Não, filho. Mas que diabo tens? Que foi isso? É com a rapariga?

Depois dum instante, forcejando um sorriso, Paulo afirmou: que era. Aurélio, maravilhado, riu daquela ingenuidade.

- Pois que... com dinheiro no bolso? Ainda estás muito peludo, homem. Aquilo é só abordar. Se queres, apresento-te.

Paulo fitou-o com um grande espanto nos olhos que faiscavam:

- Conheces?

- Não, mas é o mesmo. Isso a gente chega, fala e está pronto. É como um tílburi que se ajusta, que diabo...! Pareces criança. Queres?

- Não. Até amanhã.

Vendo-o decidido a deixá-lo, Aurélio reteve-lhe a mão e sussurrou:

- Tens aí uns miúdos?

- Tenho.

- Pouca coisa. Aquela infame batota deixou-me a tinir e estou com um apetite de canja que não te digo nada.

Paula passou-lhe uma nota.

- Obrigado. Então até amanhã e bonne chance!

Romperam aplausos estrondosos e a poeta, esticando-se nas pontas das pés, pôde ainda ver Eugénie, toda inclinada e risonha, a atirar beijos, perdendo-se, aos recuanços, por trás do pano que descia.

Paulo afastou-se caminhando para a larga escada dos camarotes e, já com o pé no primeiro degrau, hesitou pensativo. Estrugiram novas palmas recebendo um equilibrista famoso. "Que é ela, não há dúvida..." foi, escada acima, degrau a degrau, receoso, com o coração oprimido, imaginando escândalos: um ataque, uma desfeita ruidosa, uma gargalhada cínica. E a outra? Quem seria?

Uma rapariguita loura e fina, debruçada à balaustrada, cantarolava, alheia às palavras amuadas de um bonifrate de chapéu branco e polainas. Paulo passou pelo "arrufo" vexado, pisando de leve e, à medida que se aproximava do camarote, mais lhe cresciam os receios. Sentia as pernas frouxas, trêmulas, a boca seca e revoltava-se contra aquela covardia, reagindo, avançando sorrateiramente, a relancear as olhos pelos camarotes, vendo, pelas frestas, bustos graciosos, eretos, plumas petulantes, brilhos de jóias. Chegando ao camarote alvejado, dando com a porta largamente aberta, esteve para voltar.

Correu por todo o teatro o murmúrio de uma emoção malcontida, palmas isoladas vibraram, mas foram instantaneamente abafadas por psius! enérgicos e impôs-se súbito silêncio. Ele adiantou-se e, parando, ficou pregado ao soalho, a olhar, comovido e medroso.

As duas mulheres, entretidas, não davam por ele. Uma gorda, flácida, com as carnes moles esparrimadas e a espocarem, os cabelos ralos, grisalhos, dando-lhe um tom cinzento à nuca, era uma sombra que fazia realçar, com mais esplendor, a graça da companheira, delicada e esbelta, de ombros largos, colo farto, cinta delgada, braços roliços, pele alambreada e fina.

Os cabelos, muito negros, reluziam à claridade sob as gazes e as flores do chapéu que lhe tombava sobre os olhos, como um alparluz. e o pescoço, sem uma ruga, dum torneado irrepreensível, subia direito, altivo, da gola de veludo branco.

Era ela, Violante, mais desenvolta, mais forte, em pleno viço, sem a suavidade da graça virginal, mas com o encanto das linhas acentuadas da mulher que desabrochou para o amor.

Tinha-a ali ante os olhos, a dois passos; podia falar-lhe, ouvi-la, conhecer todos os pormenores daquele drama que trazia em pena a pobre velha, àquela hora, talvez, ajoelhada, debulhada em lágrimas a pedir por ela aos santos.

Bravos frenéticos atroaram a sala. Paulo continha o hálito, temendo denunciar a sua presença e ansiava, ao mesmo tempo, por um lance do acaso, que o descobrisse à irmã.

Ela moveu-se lentamente, inclinou-se para a companheira, com o leque à boca, risonha, segredando uma confidência. O busto tremeu-lhe de leve sacudido por um risinho, a outra reboliu-se, a rir grosso. Ele hesitava sufocado, d'olhos fitos, quando Violante, como fascinada, voltou a rosto e descobriu-o.

Empalideceu, os olhos abriram-se-lhe desmedidamente, a boca ficou em hiato de espanto e, medrosa, achegou-se à companheira numa necessidade de socorro, compondo o chapéu, alisando o vestido, incerta e trêmula. De novo, rápida, lançou um olhar à porta como para certificar-se e puxou uma tosse seca, logo abafada no lencinho,

Era ela, mais linda! Animado com aquela turbação, forte diante da inesperada covardia da irmã, Paulo adiantou-se até à porta do camarote e, em voz surda, que tremia, pediu licença. A gorda voltou-se, mirou-o d'alto, mas Violante levantou-se arrebatadamente e, antes que a companheira interviesse, rompeu numa exclamação de surpresa feliz:

- Oh! Paulo!... - e, afastando, de repelão, uma cadeira, saiu à varanda.

O estudante recuou até á balaustrada do fundo, carrancudo. Os dois irmãos encararam-se em silêncio, numa comoção que os enleava e foi ela quem primeiro falou, precipitando as palavras, em voz surda e difícil, que lhe saía aos arrancos:

- Como soubeste que eu estava aqui? Quem te disse? Estás magro! Que é isso?

Mirava-o com um sorriso forçado. Ele conservava-se de cabeça baixa, verrumando a botina com a ponteira da guarda-chuva.

- Tens estado doente? Fala!

Um risinho alegre ressoou-lhe na boca vermelha e fresca.

- Olha, não te ponhas com amuos agora. Temos muito tempo para brigar, ouviste? Como vai mamãe?

Ele resmungou:

- Ainda perguntas...!? Mamãe está à morte.

- De que, meu Deus! - exclamou num doloroso espanto, juntando as mãos enluvadas.

Paulo levantou a cabeça de ímpeto e, cruzando os braços energicamente, interrogou-a em murmúrio:

- Mas tu estavas doida, Violante?

Ela baixou o olhar, encolhendo os ombros.

- Não sei. Agora está feito. Não falemos nisso.

- Ah! não falemos nisso... E nós? mamãe, eu,..? Depois duma pausa perguntou: Onde estás morando?

- Em Botafogo.

- Onde?

- Na praia.

Deu-lhe o número, descreveu-lhe a casa, entre árvores, ao fundo de um jardim.

- Desde quando?

- Há uns quinze dias.

- E antes?

- Cheguei de Buenos Aires no sábado.

- De Buenos Aires!

- Sim.

- Grande doida! E agora?

- Agora quê?

- Pretendes ficar aqui?

- Então? Onde hei de ficar?

Lançou um olhar ao camarote e, vendo a companheira voltada para a cena, chegou-se mais ao irmão.

- Nós aqui não podemos conversar. Aparece amanhã lá em casa.

- Eu?

- Então? Que tem? Olhem o inocente... - fez ela com um beicinho.

- Pensas que não tenho vergonha...?

- Vergonha de quê? Eu moro só. Vai amanhã.

- A que horas?

- Às duas.

- E mamãe?

- Mamãe... Se ela quiser ir contigo...

O bonifrate de chapéu branco encaminhava-se para o ponto em que se achavam os dois. Ela despediu-se.

- Até amanhã. Olha, o melhor é não dizeres nada a mamãe por enquanto, tem tempo.

Caminhou para a camarote, com um ruflo de sedas, mas retrocedeu, sorrindo, e segredou-lhe:

- Olha, a meu nome é Diana... não te esqueças.

- Diana!

E ela, já a entrar no camarote, afirmou de cabeça, sorrindo. Paulo contemplava-a e, quando a viu de novo sentada, repuxando o chapéu, indiferente, sorrindo para a companheira, teve um assomo de revolta e esmoeu um insulto. Por fim seguiu, e pôs-se a percorrer a varanda a lentas passadas, até que, enfarado, e com uma ponta de despeito por haver sido despedido, ele, o irmão, desceu sorumbático, sentou-se a uma das mesas, pediu cognac e ali ficou a divagar, imaginando as múltiplas aventuras daquela rapariga que, depois de errar em terras estranhas, reaparecia, mais vela e mais forte, sem mácula do vício, triunfante, gloriosa na miséria infame.

Lembrou-se do dinheiro, apalpou-o, sentiu-o em volume cheio e mole. E, sacudindo a perna, ficou a banzar, inerte, numa apatia, cortada de acessos de furor. Mas aquela temerária aventura da irmã, apenas indicada em um nome - "Buenos Aires", a viagem, a instalação, o gozo bem desfrutado na opulenta cidade, a vida entre beijos e flores, em palácios monumentais, as suas noites de amor mercenário nas braços dum e doutro, foram-lhe, a pouco e pouco, despertando um árdego desejo carnal.

E admirava aquela audácia feminina, decompunha aquela vida, seguindo mentalmente todos os passos da irmã; a bordo, na terra estrangeira, pompeando em luxo régio nas frisas deslumbrantes, rodando em carruagens de molas flácidas, tiradas por parelhas de raça, esplêndida, sedutora nas suas formas rijas, mal desabrochadas, rolando em leitos forrados a seda, à luz velada de lâmpadas coloridas, em quartos nobres de palácios.

Uma mulher percorria vagarosamente o jardim em passos sutis, sacudindo o leque. Olhou-a; os olhares encontraram-se. Era alta, robusta, loura, dum louro claro e quente que fulgurava. Esteve para chamá-la, oferecer-lhe qualquer coisa, tomar-lhe a noite. Mas a mulher passou, indolente, deixando na ar a toada suavíssima dum doce canto, uma canção do seu país, talvez.

Não se resolvia, indeciso, hesitando entre recolher-se a casa e ficar na cidade, pernoitando em companhia duma daquelas andejas que enxameavam o jardim, imiscuindo-se nos grupos, sentindo o fim da noite vazia.

Passavam rindo, chalrando, d'olhos aguçados, à caça de homens, procurando ajoujar-se a qualquer; umas, desenxabidas, desanimadas, outras trêfegas, de uma alegria canalha, empurrando-se, travando dos braços dos rapazes, fazendo voltas de dança ao estridor clangoroso das metais da banda, encostando-se às mesas, reclamando bebidas, propondo ceias, ou evitando, às rabanadas, os beliscões lúbricos da rapazio.

Paulo fugiu à multidão e seguiu, ruminando idéias extravagantes, incerto da seu destino naquela noite. Achou-se, com surpresa, parado junto à escada, a olhar para a varanda. Teve um movimento de repulsa, raspando a asfalto com a guarda-chuva. "Agora espero. Quero vê-la sair. Hei de ver quem é a sujeita."

Passou-lhe pela mente a figura da Junqueira; depois desenhou-se a do Messias, d'olhos finos, em dois talhos, as pés enormes, esparrimados. Ele falara dum compromisso no Recreio, uma pessoa que a esperava. Não, não podia ser... - Então, encolhendo as ombros com indiferença, afastou-se, em andar vagaroso, medindo os passos. "Ora!" Achando-se na aléia da entrada, em súbita resolução apressou o andar e saiu.

À porta cambistas cercaram-no, pedindo a senha. Carros reluziam estacionados na rua escura; doceiros apregoavam e, na taverna da esquina, um ror de homens cercava o balcão, bebendo em estridente algazarra.

Foi-se, rua abaixa. "Ora! que se arranje!" Deteve-se surpreendido, olhando uma aguazinha que rebrilhava entre as pedras da rua.

"Só, hein?! Sozinha pela Prata... é coragem! E nós aqui, como idiotas, perdendo tempo, amofinando-nos. Eu bem dizia. E mamãe a orar..." Serenou, porém, a um pensamento iníquo e a frase que o exprimia saiu-lhe da boca docemente, regozadamente: "Mas está bonita!..." Foi-se.

À porta da Maison Moderne sorriu descobrindo Messias e Junqueira, muito juntos, encapotados. Saudou-os e entrou.

À luz intensa da sala teve um deslumbramento, e, abancando a uma das mesas mais discretas, sacou do bolso um maço de notas, escolheu uma de cem e esperou a caixeiro. "Água de Seltz..." Recebendo o troco, separou uns miúdos para o tílburi. "Até que enfim!" exclamou pondo-se de pé e, acendendo um cigarro, caminhou vagarosamente a porta.

A noite desanuviara-se. A lua, num recorte esguio, luzia no céu ponteado de estrelas.

- Vamos ter amanhã um dia magnífico! - disse alguém tocando-lhe no ombro; voltou-se e viu Narciso todo atrapalhado com um embrulho e o capote.

- Oh!... boa noite. É verdade.

- Esteve na Recreio?

- Um instante.

- Um casão, com certeza?

- À cunha!

- Pudera!

Já à porta, perguntou risonho:

- E os versos do Aurélio... Que tais? Não foram distribuídos?

- Sim, espalharam uns versos; um soneto, creio... Mas a assinatura é doutro.

- História! São da Aurélio. Fê-los ontem, depois da jantar, a pedido do Messias. Um tipo! Bem, boa noite.

Paulo não conteve o riso, lembrando-se da revolta do poeta. Ficou um momento à porta olhando o céu. Súbito meteu-se num tílburi, que estacionava junto ao passeio e mandou tocar para a Lapa.

Uma densa multidão esgorjou da Rua do Espírito Santo espraiando-se no largo - era a gente que saía do Recreio. O cocheiro teve de suster o animal para deixar passar o povo e Paulo, olhando a turba que se espalhava, com uma pressa de fuga, via apenas um vulto que se afastava subindo da terra, ganhando o espaço em leve ascensão, como um anjo que remontasse serenamente.

Com o arranco do animal que partia foi de encontro ao fundo do tílburi. O cocheiro resmungou contra a "súcia". Ele conservou-se calado, imóvel, a rever a visão, que era ela, Violante, cujo perfume o cercava como se todo o ar estivesse impregnado. Dilatou-se-lhe o peito e um suspiro saiu-lhe, largo e vagaroso: "Mas como está bonita!" E sorriu deliciado recostando-se abandonadamente.

16

Toda a noite, noite imensa e morosa, rebolcando-se na cama a esmagar os travesseiros ou espichado, a olhar o teto, à luz trêmula da vela, fumando seguidos cigarros, Paulo pensou em Violante com simpatia. Afinal, que podia ela esperar?

Pobre, casando não passaria da vida insípida que levam todas as mulheres, na monotonia enfadonha dos afazeres domésticos, mal-amanhada, envelhecendo, mortificando-se no trabalho insano, arrastando a fecundidade penosa, sempre rodeada de filhos, talvez brutalizada pelo marido, sofrendo privações entre as quatro paredes duma casa.

Assim, não - era livre, tinha todo o gozo, podia saciar-se à larga, sem preocupar-se com a sociedade com a qual rompera abertamente.

Era uma revoltada. Tinha, para impor-se, a mocidade e a beleza - que importava o resto? A sociedade só despreza a miséria - as desonras que vexam são a fome, a nudez e as moléstias; o dinheiro tem sempre o seu prestigio, ninguém lhe pede a origem... e ela nadava em ouro.

Resolveu visitá-la na manhã seguinte para conhecer todos os pormenores daquele romance. E gozava, imaginando a vida solta da irmã, sempre em festas, deslumbrando com a sua formosura, disputada pelos argentários, amante de influências, podendo até protegê-lo, impô-lo à fortuna.

Sentia uma ponta de orgulho comparando-a às outras mulheres fanadas que a remiravam com despeitada inveja. "Vai longe!" murmurou num bocejo, estrincando os dedos.

Lembrou-se, porém, do dinheiro que guardara na gaveta. Saltou da cama, tomou-o e, espalhando-a na mesa, com volúpia de avaro, pôs-se a contá-lo separando as notas pelas respectivas valores. E imaginava compras: um farto fornecimento para a despensa, roupa, livros, o resgate das jóias.

A vida pareceu-lhe de facilidade suave. "Agora sim, a questão era ter um pequeno capital para começar..." E pensou em Ritinha.

A mulata havia de ceder porque, afinal, a vida de expedientes de Mamede não lhe garantia a tranqüilidade. Quando ela o visse com dinheiro não relutaria. Repôs os maços na gaveta, bem acamados, deu volta à chave, deitou-se, soprou a vela e, na escuridão silenciosa, ainda pensou na fortuna, em amores, no futuro que se anunciava propício.

Já as carroças rodavam pesadamente quando adormeceu ouvindo o rumor grave, soturno das ondas aos rebolões na praia.

Acordou tarde e logo, deixando o gozo macio, a preguiçosa moleza tépida da cama, pôs-se de pé, com pressa e dirigiu-se ao banheiro. Dona Júlia falava à Felícia aconselhando-a e, quando ele reapareceu, esfregando a cabeça, a reclamar a café, ela disse-lhe que a negra se havia despedido.

- Por quê? Deve-se-lhe alguma coisa?

- Só as dias que estão correndo. Mas não é por dinheiro: Felícia está com a cabeça virada, vê coisas... Andou toda a noite pela casa resmungando. Diz que é o filho. Desde que viemos para aqui é isto. Não pode ver o mar. Se vai à rua fica um tempo enorme, às vezes volta sem as compras, perde o dinheiro. Tenho pena, coitada! mas o melhor é deixá-la ir.

- E quem há de fazer o serviço? Ela que fique até eu arranjar outra. Ponho hoje um anúncio. Mas quem sabe se não é bebida, mamãe?

- Ela não bebe. Está assim por causa do filho. De mais a mais foi meter-se com o espiritismo, ficou perdida de todo.

- Ah! então... Pois hoje mesmo eu ponho um anúncio, descanse.

E caminhou para o quarto.

Quando saiu esteve um momento à porta, hesitando entre ir à casa da irmã e descer à cidade. Era muita cedo. Tomou o bonde resolvido a fazer o sortimento. Foi uma prodigalidade. Queria tudo em abundância e do melhor - conservas, doces finos, vinhos, licores, queijos. Feitas as compras exigiu que lhas mandassem imediatamente a casa. Depois encaminhou-se para o hotel, almoçou desatento, com o espírito muito longe, preocupado com a visita que ia fazer.

Depois de haver percorrido lentamente a Rua do Ouvidor, parando diante das vitrinas a olhar as jóias cintilantes, os bibelots graciosos, os manequins esbeltos, resolveu-se a tomar um tílburi e mandou tocar para Botafogo.

A casa, de aspecto nobre, com todas as janelas fechadas, ficava ao lado de um jardim sombrio, de sinuosos caminhos areados de saibro escuro. Duas alvas figuras de mármore destacavam-se na sombra das ramagens. Hesitou um momento, impressionado com o silêncio, receando encontrar o "homem".

Despediu o tílburi e ficou parado ao portão a olhar, tímido, indeciso. Não aparecia ninguém; no interior, um silêncio de abandono. Seria ali? decidiu-se, por fim, a apertar a botão da campainha. Uma criada loura, de avental, apareceu à varanda, debruçou-se olhando por entre a folhagem da ipoméia que formava uma verde e florida empanada. Vendo-o, desceu ligeiramente e os seus passos vinham crepitando no saibro lucilante. Ele lembrou-se da recomendação da irmã e perguntou:

- Mademoiselle Diana?

A criada mirou-o dos pés à cabeça, e murmurou em tom de receio:

- Está; mas ainda não desceu. Pode dar-me o seu nome?

- Paulo, ela sabe.

Imediatamente a criada abriu o portão e, sorrindo, afastou-se dando-lhe passagem. Ele seguiu-a à varanda, entrou numa saleta luxuosa, que um alto tapete forrava. Pesados reposteiros coavam a luz filtrando suave claridade confidencial.

Duas cegonhas de bronze flanqueavam a otomana de damasco amarelo, vivamente ensangüentado a flores de púrpura. Pelas paredes, floridas a ouro, sobre aveludado fundo carmesim, acumulavam-se retratos, grandes quadros pendiam mostrando paisagens tristes - campos de trigo esfumados pela crepúsculo e gados que recolhiam e uma gravura idílica em que havia uma redouça, entre flores, unindo um jovem casal amoroso no mesmo balouço. O silêncio era absoluto como se tudo dormisse naquela casa. A criada reapareceu em passos surdos, como uma sombra.

- Pode subir. A senhora espera-o lá em cima.

Guiou-o ao longo de um corredor forrado de esparto e mostrou-lhe a escada.

- Sobe! convidou Violante.

Paulo sentiu viva emoção ouvindo a voz da irmã e foi com o coração aos esbarros que galgou a escada iluminada par uma clarabóia de vidros policrômicos.

- Entra e espera um instante na sala.

Dirigiu-se para o suntuoso salão atapetado.

O lustre cintilava a um raio de sol. O mobiliário era rico, adaptado à volúpia - moles divãs orientais sabre pelegos que formavam macia alfombra, de cores quentes; grandes almofadões de seda com borlas, fundas poltronas. Os consolos altos, esguios, com espelhos finos, eram todos dourados e rebrilhavam.

Cortinas escuras temperavam a luz, quebrando a violência do sol que entrava por quatro janelas abertas sobre balcões. Na mesa do centro, incrustada de marfim, dentro duma linda jarra de porcelana, morriam rosas. Aroma tépido e voluptuoso impregnava o recinto. Os rumores da rua chegavam abafados, ensurdecidos, como se viessem de muito longe.

- Espera um instantinho. Estou arranjando o cabelo. Vou já.

- Não te incomodes.

E, de pé, os braços cruzados, pôs-se a examinar os quadros, as estatuetas das peanhas. Uma sandália cor-de-rosa jazia no meio do salão embarcada. Sobre um dos divãs uma saia de rendas amarrotada parecia uma grande e estranha flor, murchando em abandono.

- Como vais?

- Vai-se indo. Estás num palácio!

- É. A casa é boa. Grande demais.

- Moras só?

- Sozinha.

Abriu a porta e apareceu deslumbrante, num penteador de rendas que a envolvia como em frocos de espuma. Os cabelos soltos cobriam-lhe as costas até a cinta. Nos braços, que as largas mangas deixavam nus, cintilavam pulseiras.

- Não repares, - disse sorrindo, como vexada. - Apareço assim para não te fazer esperar. Saí do banho. Senta-te. - Sentou-se muito encolhida, cruzando as pernas com desembaraço e Paulo viu-lhe as sandálias de veludo, um pouco da perna bem feita, carnuda. - Como vai mamãe?

- Como sempre.

- E Felícia?

- Felícia... Felícia está maluca. Despediu-se hoje.

- Maluca?

- Meteu-se com o espiritismo e anda a ver coisas. Fala com o filho.

- Que filho? Ela tem filho?

- Tinha. Era marinheiro. Morreu na revolta.

- Mas doida mesmo?

- Varrida.

Houve um silêncio. Os dois olhavam-se embaraçados.

- E tu? perguntou por fim Violante.

Paulo deu d'ombros.

- Por aqui, lutando sempre. De repente: Por que não vais ver mamãe?

- Tenho vergonha. Ela fala em mim?

- Se fala em ti...!

- Coitada!

- E tu não estás arrependida, Violante?

- Eu? - acenou com a cabeça negativamente. - Arrependida, por quê? Esta vida tem as seus aborrecimentos, tem; mas a gente não é obrigada a aturar um homem de que não gosta. Serve? muito bem; não serve? adeusinho. Sempre é outra coisa. Não nasci para o casamento... - e fez um momo de enjôo.

- Afinal... com quem saíste?

- Com um moço. Não conheces. Podia ter casado com ele - era bonito, rico e adorava-me; não quis. Não imaginas - uma fúria de ciúme. Eu não tinha licença de abrir uma janela. Sofri horrores! Hoje vivo tranqüila, nada me falta e tenho o melhor que é minha liberdade. Vou aonde quero, faço a que me dá na cabeça. Os outros... - encolheu os ombros com desprezo esticando um beicinho. - Não me importo com o mundo. Sei que falam, que não me poupam: que sou isto e aquilo, mas se eu fosse pedir aos tais um pedaço de pão viravam-me as costas. Conheço essa gentinha... Oh! se conheço! Um dos que mais falaram de mim não me deixa com recados e bilhetinhos... o tal boticário que queria casar comigo. Deus me livre! São todos muito honestos, por trás da cortina vão fazendo das suas. Eu não os incomodo nem os envergonho - quando passo por eles finjo não os ver. Não nasci para mãe de família, essa coisa com que os chamados homens de bem enchem a boca. Cada qual para o que nasceu. Nem todas as mulheres têm vocação para freira.

- Lá isso...

- Eu podia fazer o que fazem muitas - casar e depois andar por aí arrastando no lodo o nome do meu marido. Preferi sacrificar-me sozinha - em vez de duas desonras já apenas a minha. Sou uma perdida, as outras são virtuosas senhoras. Que lhes saiba. A Lola, que é hoje madame não sei quê, levou toda a vida a ajuntar dinheiro para comprar virtude e consideração para a velhice. Até arranjou uma filhinha. Eu já a conheci casada, mas em Buenos Aires contaram-me toda a história. Se tiver tempo e paciência farei o mesmo. - Riu. - Queres um cálice de licor? cerveja?

- Não, nada.

- Pois é assim. Não estou arrependida. Tudo me tem corrido bem. Às vezes tenho saudade, não da vida que levava: de ti, de mamãe, mas procuro distrair-me, disfarço e as horas levam os pensamentos tristes. A vida é muita curta - quem mais vive é quem mais goza, não achas? Falam no futuro, no dia d'amanhã. Eu vejo as outras, coitadas! umas, viúvas, cheias de filhos; outras, sofrendo horrores com os maridos. O amante é um escravo, o marido é um senhor. É como dizia uma argentina que conheci: "Os homens são encantadores, o homem é insuportável." Ter de aturar um sujeito toda a vida é o mesmo que não ter senão um vestido que vai envelhecendo e ao qual é necessário a gente ir pondo e sobrepondo enfeites para esconder as manchas e os remendos. Não me serve.

- Ainda gostas muito de romances?

- Leio. E tu? A tua mania era o casamento. Já tens noiva?

- Deus me livre!

- Deus te livre?! - Fez um momo faceiro. - Pensas que não te conheço.

- Não, estás enganada. Namorei por troça, passatempo apenas, Casar! upa!

E gravemente, com a entono da responsabilidade:

- Preciso cuidar da velha. Ela não tem mais ninguém no mundo, bem sabes.

- É verdade... Eu, compreendes, não tenho coragem de oferecer-lhe a minha casa, nem ela havia de querer.

Paulo não contestou.

- Enfim, sempre posso fazer alguma coisa... A questão é saber se ela aceita.

- Por que não? Não és filha?

- Talvez tenha escrúpulos: dinheiro mal ganho.

- Qual! histórias.

- Mamãe!? Tu não a conheces.

Levantou-se e, contendo um bocejo, perguntou:

- Queres ver o meu quarto?

- Vamos.

Ela caminhou direito às portas, abriu-as de par em par e afastou-se dando passagem ao irmão que parecia embaraçado, tímido.

- Entra. Tens vergonha? - perguntou sorrindo. - É um quarto como outro qualquer.

O tapete, alto e fofo, abafava maciamente os passos. A cama estendia-se sob um baldaquino de cujo fundo, dum amarelo de ouro, irradiando em pregas, pendiam sanefas e pesadas dobras de um pano de seda púrpura. Os móveis lampejavam lustrosos, com altos espelhos que refletiam, afundavam o aposento. As paredes eram ramilhetadas de ouro.

Um perfume cálido errava na ar. Havia no silêncio um quê de sedução, um convite misterioso: era o ambiente lascivo que sugeria e vergava ao amor. Paulo não se atrevia a avançar - olhava tolhido, perturbado, sentindo o prestígio inelutável da mulher, a influência poderosa da carne como se ali não estivesse a irmã, mas uma mercenária que o fosse arrastando, vencido, para a amor lúbrico que todo aquele interior aconchegado e discreto insinuava.

Violante abriu o guarda-vestidos - evolou-se uma bafagem aromal em que havia o perfume alucinante da carne e ele viu a policromia das sedas que escorriam dos cabides em saias esguias, plumagens ondulantes, nuvens de rendas. Abriu um cofre, mostrou-lhe as jóias, umas em escrínios, outras soltas.

No psichê ainda rolavam anéis, grampos e numa concha de nácar rebrilhava um escaravelho cravejado de rubis e uma grande pérola piramidal alvejando na encarna dum broche.

Ele olhava, mas a atenção fugia-lhe para o corpo lânguido, flexuoso, cujas formas desenhavam-se sob as rendas do frouxo penteador. Recuou, sentia-se abalado, começava a fraquear diante da mulher. Respirou largamente caminhando para a sala, como a fugir:

- Sim, senhora. - Logo pensou no homem e, com os olhos incendiados, perguntou numa voz presa em que havia desejo: E ele?

- Ele!... É uma excelente criatura. Muito delicado, quer-me muito. Dá-me tudo quanto quero, faz-me todas as vontades. É como um pai. Tem ciúme, mas isto é mal de todos. Não há remédio senão aturar um pouco. Vivo aqui como vês. Pouco saio. É lendo, dormindo, conversando.

- E já apareceste na Rua da Ouvidor?

- Eu? Quantas vezes!

- Então?

- Então, quê?

- Não encontraste conhecidos?

Ela deu d'ombros.

- Já te disse que não os vejo. Quero que não me aborreçam.

Deixou-se cair em um dos divãs, em derreado abandono. Paulo contemplava-a. Parecia-lhe outra - não era a mesma Violante. Se perdera aquela graça leve e arisca da donzela, ganhara beleza mais empolgante, o olhar tornara-se mais quente, a boca mais sangüínea, as faces mais coradas: desabrochara soberba.

Se ela o fitava sentia-se acanhado, o sangue subia-lhe ao rosto incendiando-o.

- Senta-te.

- Não. Vim apenas ver-te.

- Já vais?

- Tenho que fazer.

- Onde estás trabalhando agora?

- Por aí. Topo a tudo.

- Deixaste a jornal?

- Ora! Dias depois da tua saída.

- Por quê?

- Histórias...

Estendeu-lhe a mão.

- Espera, homem. Que pressa! - Levantou-se e, a correr, com um crespo ondular de rendas, foi ao quarto e voltou, momentos depois, com um envelope. - Dá isto á mamãe e dize-lhe que não seja má, que me venha ver.

- E tu, por que não vais até lá?

- Quando?

- Quanto quiseres.

- Só à noite.

- Pois sim, à noite. Hoje, por exemplo. Por que não vais hoje?

Ela pensou um momento, mordicando o lábio. Por fim disse:

- Pois sim. Hoje à noite.

- Eu previno-a para que ela não sofra um choque. Porque ainda não sabe que te encontrei.

- Ah! não?

- Não.

- Coitada!

- Às sete horas...

- Às sete, não; é muito cedo. Às oito e meia.

- Pois sim. Mas não faltes.

- Não falto.

- Então até logo.

- Até logo.

Acompanhou-o à escada. Ainda de baixo ele insistiu:

- Olha lá!

- Não falto.

17

Na rua, Paulo respirou desafogadamente como se houvesse escapado a um perigo e, cheio ainda da volúpia que lhe inoculara aquele ambiente, deteve-se na calçada sem ânimo de partir, como se uma força misteriosa o prendesse, o atraísse, o arrastasse, solicitando-o para o amor.

Por que teria ela insistido em mostrar-lhe o quarto com tanto despudor? por simples vaidade ostentosa ou para martirizá-lo vingando-se, com uma tortura sensual, de tudo quando ele lhe fizera: das pirraças, das violências, das grosserias, de todas as afrontas? Não compreendia aquela visita ao aposento íntimo senão como uma premeditada provocação, ainda agravada com aquela roupagem leve que mal pousava sobre as carnes, deixando visíveis todas os contornos, realçando todos os relevos, numa excitante exposição, apenas velada pela discrição de um leve tecido, de umas rendas soltas.

Teve um vivo movimento de revolta; logo, porém, lembrando-se do envelope que recebera, abriu-o e desdobrou uma nota de duzentos mil-réis. Guardou-a de novo. Passava um bonde, tomou-o, saltando à porta de casa. Dona Júlia recebeu-o com recriminações carinhosas.

- Tu estás doido, meu filho!? Para que tudo isto? Nem eu tenho lugar para meter tanta coisa. Isto vai estragar-se. Imagina o dinheirão que está aqui.

A mesa estava abarrotada de latas, frascos, embrulhos, pacotes; grandes sacos de papel espocavam repletos. Pelo chão, junto à parede, havia caixotes, gordos sacos acaçapavam-se, empilhavam-se latas. Paulo, de mãos nos bolsos, sorria superiormente.

- Estamos livres dos caixeiros, pelo menos durante dois meses.

- Tu não podes ter dinheiro na mão. E como foi? Tiraste alguma sorte?

- Ganhei.

- Onde?

- Por aí.

- Olha lá, Paulo...

Ele voltou-se arrebatadamente:

- Olha lá o quê, mamãe? Quem sabe se a senhora pensa que roubei?

- Não diga isto... Mas não quero que te sacrifiques por minha causa.

- Qual sacrifício! Fiz um bom negócio. Quando eu digo que a senhora não tem confiança em mim. Eu trabalho, mamãe, - afirmou com empáfia. - Entramos nos dias prósperos. Quer ver? Prepare-se para um choque. - E, tirando o envelope da bolsa, entregou-o. - Veja.

- Que é?

- Veja, insistiu.

Ela abriu, tirou a nota e, tomando-a em dois dedos, ficou a mirá-la.

- Duzentos mil-réis.

- Sim, senhora. Mas dou-lhe um doce se adivinhar de que mãos vem esse dinheiro.

- Do compadre.

- Pois sim.

Pôs-se a passear pela sala fumando.

- Adivinhe.

- Eu posso lá adivinhar.

- De Violante.

Ela estremeceu e, boquiaberta, os olhos escancelados, pálida, não teve uma palavra, não se arredou de junto da mesa, amparando-se, sentindo as pernas vergarem. Oscilava arquejando como se lhe faltassem o solo, o ar, a luz. Paulo precipitou-se, amparou-a:

- Então, que é isto, mamãe? Sente-se.

Foram-se-lhe os olhos enchendo d'água. De repente, dobrando-se sobre a mesa, rompeu a chorar, soluçando.

- Ora aí está! Trago uma notícia alegre e a senhora recebe-a assim.

Felícia apareceu à porta da sala atarantada, com a trunfa desfeita, olhando e sorrindo idiotamente. Contemplou um momento o grupo e, com um muxoxo, tornou para a cozinha. Dona Júlia levantou a cabeça e, fitando os olhos no filho, que a afagava, perguntou:

- Onde está ela?

- Em Botafogo.

- Boa?

- Forte e bonita como nunca!

- Como conseguiste descobri-la?

- Encontrei-a ontem no teatro.

E referiu toda a cena da Recreio; depois a visita que fizera à casa Botafogo, descrevendo tudo com entusiasmo, muito parcial da irmã, louvando-a, defendendo-a. "Fez muito bem. É feliz." Dona Júlia ouvia sem dizer palavra, cabisbaixa, e as lágrimas caiam-lhe dos olhos em grossas bagas. Quando ele anunciou a visita prometida para a noite, a velha levantou a cabeça e cravou nele os olhos, muda e comovida, com espanto.

- Ela vem cá?

- Prometeu. Vem, com certeza; afirmou.

- Eu não devia recebê-la, - disse, ressentida. - Depois do que fez...

- Ora, mamãe.

- Eu é que sei o que tenho sofrido, as lágrimas amargas que tenho chorado. Outra não a recebia. - Levantou-se, ficou um momento parada, indecisa, o olhar perdido e lacrimoso, e repetiu por entre soluços: - Não devia recebê-la.

- Pois é contar com ela logo à noite; e fazer o que eu fiz, se não quer que ela nos deixe de visitar.

- Que é?

- Nada de recriminações. Agora é tarde, o mal está feito e não há remédio. Estive com ela. Conversamos, mas não lhe fiz a menor censura.

- Violante! - murmurou a velha, como se falasse ao coração. - Enfim...

- Eu volto à cidade, tenho ainda que fazer. Venho jantar. E tenha calma. Hoje a nossa casa deve enfeitar-se como a do velho da parábola no dia do regresso da filha pródiga. Até logo.

Abraçou-a e saiu. Ela ficou encostada à mesa, pensando, a chorar; lentamente, dirigiu-se para o quarto, acendeu a lamparina diante dos santos, ajoelhou-se e, de mãos postas, balbuciou as primeiras palavras de uma oração, mas numa explosão de lágrimas, abateu no soalho e ali ficou, soluçando, com palavras de recriminação e palavras de carinho para a filha ingrata que, afinal, voltava, que ela ia, enfim, rever e beijar.

Nunca um dia lhe pareceu tão longo como esse. As horas arrastavam-se; por mais que buscasse afazeres para distrair-se, volta e meia lá estava na sala a olhar o relógio. Arranjava a casa para receber a filha, trazia vasos de plantas para a sala, sacudia os tapetes, mudava a roupa das camas, num afã satisfeito.

Não podia contar com Felícia, que resmungava enfezada, repelindo visões, bradando furiosamente a seres imaginários, ora na cozinha, ora no quintal, ao sol. A pobre debatia-se lutando com as trevas que se lhe iam adensando no espírito. Por vezes, num momento lúcido, ficava imóvel, pensando; logo, porém, o delírio a retomava e, trabalhando maquinalmente, sempre a murmurar, a esconjurar, sacudia-se, esfregava os olhos irritada, aspergia os cantos, a mancheias d'água, sapateando frenética, grugrulhando em desespero crescente.

Atirava punhados de sal ao fogo e desvairada, excitada pela crepitação, bradava expulsando os espíritos, apanhava-os no ar, lançava-os pela porta, injuriando-os, soprando-os, como se fossem leves plumas e, d'olhos altos, acompanhava-os imaginariamente, esconjurando-os.

Dona Júlia começava a temê-la. Quando lhe ouvia os gritos, estrangulados como ganidos, afastava-se, ia para a sala da frente, receando alguma violência, mas a negra não se arredava da cozinha, onde rolava em crises furiosas, escabujando, lutando com as larvas que os seus olhos assombrados descobriam.

Quando Paulo entrou, ao cair da tarde, Dona Júlia insistiu na necessidade de despedir Felícia. Não era prudente tê-la em casa naquele estado. Estava ficando furiosa.

- Hoje não me lembrei do anúncio. Também, com o dia que tive... Amanhã.

- Tu compreendes... eu sozinha em casa com uma doida.

- Sim, tem razão. Fique tranqüila, amanhã arranjo uma criada.

Jantaram. Felícia servia carrancuda, resmungando. Ia até à porta, retrocedia olhando airadamente, murmurando, às vezes rindo.

- Vai, Felícia.

- Uê! Então vosmecê pensa? É assim mesmo. Eles derrubam tudo, derrubam, mas a minha casa é sagrada. Curvou-se, traçou uma cruz na soalho. - Eu não... aqui ninguém bole! Uê!

Lá ia, a dar de ombros, chuchando muxoxos. Rompia a cantar, sapateando diante da fogão. Era necessária chamá-la. Paulo repreendeu-a:

- Que é isto, Felícia? Tu estás doida!

- Doida! Vá falando, vá falando. Vosmecê nem sabe. Eu não... Meu filho é meu filho. Quem foi que me deu ele? Olhe... - mostrava o céu. - Está lá em cima, foi Nosso Senhor. Quem foi que tirou ele? - inclinava-se prestando atenção ao rumor das andas. - Vosmecê esta ouvindo? Não fala não, nhonhô, mar está aí perto, pertinho. O melhor é vosmecê ficar quieto.

À noite, a aflição de Dona Júlia aumentou. Estremecia ao mais leve rumor, o coração batia-lhe precipitado, sentia o sangue fugir-lhe. Quando Paulo bradou da sala: "Está aí Violante", ela quis precipitar-se, correr, mas faltaram-lhe as pernas; levou ambas as mãos ao peito contendo o coração que parecia querer rebentar e foi indo, arrastadamente, já com os olhos rasos de lágrimas.

A parta da rua abriu-se e ela viu aparecer a filha agasalhada em uma capa que lhe chegava aos pés, com um grande chapéu de plumas negras. Encostou-se ao umbral da porta da corredor, chorando, abalada, sem forças para seguir. Violante precipitou-se e, abraçando-a apertadamente, pôs-se a acariciá-la com palavras meigas, levando-a devagarinho para a sofá. Quando se sentaram ela ficou sucumbida, em atitude humilde, sem coragem de levantar as olhos para a filha que a amparava.

- Então, mamãe? Não quer olhar para mim?

Ela encarou-a, então, com as lágrimas correndo em fios e sorriu tristemente, contemplando-a com toda a ternura da sua imensa saudade. Achou-a linda, mais forte.

- Sou eu, Violante.

- Ah! sim... Violante... Olha para mim, vê como estou magra, cheia de cabelos brancos.

O pranto tomou-lhe, de novo, a voz.

- Tu não tens pena de mim?...

- Ora, mamãe, - interveio Paulo, - assim Violante fica com medo de voltar.

- Por quê? Que mal lhe estou eu fazendo?

- Vamos conversar.

- Foi uma maluquice, mamãe, - disse Violante, - mas não falemos nisso.

- E não estás arrependida?

Ela meneou com a cabeça negativamente, sorrindo e, estouvada, tomando as mãos da velha, pôs-se a afagá-las às palmadinhas:

- Vamos falar de coisas alegres. Eu não vim aqui recordar tristezas. O que passou, passou. A senhora como vai? Tem tido saudades de mim? diga...

- Como vou...! esperando a morte. Não queres tirar a capa?

- Não, não posso demorar-me.

- Onde vais?

Ela sorriu, titubeou:

- Tenho visitas, amigas. Descanse; muito breve venha passar um dia inteiro com a senhora.

- Se eu ainda for viva.

- Ora, mamãe.

- Ora, hem? Não vês como estou inchada? Olha bem para mim.

- Não acho. A senhora não deixa as cismas.

- Cismas... Antes fossem. Mas que foi que te deu na cabeça, minha filha?

Deu d'ombros, fez um momo e dando à voz um tom infantil:

- Vamos falar de outra coisa. Assim eu fico triste... - E logo, fugindo ao assunto: E Felícia? É verdade que está maluca?

- Perdida duma vez. Não diz coisa com coisa, sempre resmungando, praguejando. Daqui para a Hospício. Ainda hoje, não imaginas o que fez.

- Por quê?

- Por causa do filho. Os filhos... vocês! acentuou.

- Eu não sabia que ela tinha filho.

- Tinha, era marinheiro; morreu na revolta.

- Coitada!

- E tu? como vives?

- Vivendo: ora alegre, ora triste. Mas nada me falta, graças a Deus.

- E não ficas vexada?

Ela tornou-se séria, sacudindo as borlas da capa:

- Vexada, por quê? É uma vida como as outras. Vai, talvez, mais ligeira, mas é mais agradável. Tristezas, todos as têm. Eu podia ter casado, não quis.

- Por quê?

- Porque sim. - impôs a mão ao peito e afirmou: - Não tenho coração.

- Isso sei eu.

Paulo, que se conservara calado, fumando, interveio.

- Se ela é feliz, que mais?

- Pois sim, mas eu penso em Deus.

- Deus... Bem se importa ele comigo.

Levantou-se.

Começava a sentir a melancolia daquele lar taciturno; aquele ambiente de tranqüilidade pesava-lhe, não era a seu elemento, sentia-se como sufocada. Fez menção de despedir-se, mas a mãe convidou-a a ver a casa. Cedeu submissa e seguiu-a olhando indiferente, sem curiosidade, com um sorriso artificial no rosto. Diante da quarto que lhe fora destinado houve maior demora: a velha levantou a vela, uma luz mais larga projetou-se.

- Este era o teu.

- Bem bom. A casa é pequena, mas muito cômoda. Muito melhor que a outra. E Felícia?

A negra preocupava-a. Queria ver a desgraça, sentir a miséria, contemplar a agonia.

- Deve estar na cozinha.

Paulo deu luz ao gás e avançou chamando a rapariga, aos berros. Não houve resposta.

- Ela, ás vezes, sai para a quintal, fica lá fora sentada, resmungando.

Paulo procurava. Uma senhora ergueu-se junto ao fogão e ficou imóvel. Violante adiantou-se e a negra esperou-a hostil.

- Ó Felícia! Como vai você? Então que é isso? Não me conhece mais?

A negra olhou-a muito, sem pestanejar; de repente, com uma rabanada, saiu da cozinha e sumiu-se no quintal, aos resmungos.

- Coitada! - lamentou Dona Júlia; - é melhor deixá-la.

Na sala de jantar Paulo insistiu com a irmã para que aceitasse alguma coisa; ela recusou: "Jantara tarde. Não tinha vontade." A velha procurava pretextos para ficar a sós com ela, Paulo, porém, rondava-as fazendo as honras da casa, muito solícito e franco. A mãe atreveu-se a pedir, carinhosa:

- Deixa-me ficar um instantinho com Violante, meu filha.

- Pois não.

Retirou-se contrariado. Foi para a sala. As duas olharam-se, caladas. Dona Júlia tomou uma das mãos da filha, a tremer; pôs-se a beijá-la, sôfrega. Súbito, como se lhe faltasse a equilíbrio, oscilou e teria caído se Violante não a amparasse. Cerraram-se-lhe os olhos, todo o corpo amoleceu, inerte, tombando sobre uma cadeira. Violante gritou; Paulo acudiu a correr:

- Que é?

- Mamãe... Olha como está. Não vá ser do coração, meu Deus.

- Eu já contava com isto.

Foi precipitadamente ao quarto, trouxe um vidro d'água sedativa. A velha não fazia o menor movimento; a respiração era estertorosa e cerrada.

- Nem há aqui uma pessoa para chamar um médico. Espera, eu mando o cocheiro. Aqui mesmo na Rua da Lapa há um.

Correu à sala, deu uma ordem. O carro partiu. Tornou para junto da irmão, atônita. Por fim, como se se habituasse, sentou-se calma.

- É o coração, - cochichou Paulo.

Violante fez um gesto de desânimo. O relógio bateu vagarosamente no silêncio.

- Nove e meia! - exclamou em voz surda, alarmada. - E eu que não preveni Lucília. O homem é capaz de pensar que ando por aí...

- Dize-lhe o que houve.

- E pensas que ele acredita? Pois sim. - Inclinou-se, pôs-se a chamar a mãe, não para aliviá-la, mas para libertar-se. - Não tens um pouco de éter?

- Não.

- A que horas vou eu sair daqui, meu Deus! E o médico? Ainda se ele chegasse...

- Se queres, vai. Eu fico com ela.

- Não! Isso não. Não quero que ela se zangue.

- Zangar-se, por quê?

- Se eu fosse livre, mas tu compreendes. - Ao rumor do carro Violante correu à sala, abriu a janela. Estava um homem parado à porta. - É o doutor?

- Sim, minha senhora.

Era um homem de idade, alto, magro, feição austera. Entrou vagarosamente e perguntou, em voz pausada, pela doente.

- É minha mãe, doutor. Está lá dentro, teve uma síncope. Nem tivemos tempo de a levar para a cama. Foi de repente. Entre, doutor.

Falava com grande volubilidade, voltando-se para o médico, que a seguia, sempre vagaroso. Justamente chegavam à sala de jantar quando Paulo sussurrava palavras meigas à mãe que parecia haver recobrado os sentidos. Efetivamente abria os olhos, balbuciava, movia a cabeça como atordoada. Violante precipitou-se:

- Então, mamãe? Está melhor? Olhe o doutor. É melhor deitá-la, a senhor não acha?

Lançou um rápido olhar ao relógio e franziu a fronte contrariada. O médico fez um ligeiro exame, receitou um calmante, recomendou repouso. Paulo segredou:

- Ela é cardíaca, doutor. Não há perigo?

- Sim, é preciso cuidado. Se houver alguma coisa mande-me um recado.

Despediu-se. Dona Júlia sentia-se alquebrada, faltavam-lhe as pernas, todo o corpo doía-lhe. Ampararam-na até a cama. Deitando-se, olhou para Violante enternecidamente, dizendo:

- Nem conversamos, minha filha. Isto está por pouco. Quando vocês mal pensarem estou morta. Também, que faz um trambolho como eu no mundo?

- Deixe-se disso, mamãe.

Violante ia e vinha, arranjava os travesseiros, estendia, alisava a colcha, aparentando cuidados que não encobriam a sua impaciência; animava-a, prometia ser muito assídua.

- Estarei aqui sempre, há de ver. Quando estiver triste venho para cá passar o dia ou a senhora vai lá para casa fazer-me companhia. Havemos de viver como dantes.

Sentou-se estabanadamente na cama, abraçou a velha que se conservava de olhos baixos, em atitude de humildade e de resignação.

De repente ergueu-se e, assustada, procurando o relógio entre as rendas soltas, exclamou:

- Dez e meia! Nossa Senhora!...

- Vai, minha filha. Deus te abençoe.

- A senhora não precisa de mim, felizmente. Até amanhã.

Beijou-a nas faces, beijou-lhe a mão. Saindo à sala, ouviu um estrupido surdo e uma voz soturna que resmoneava.

- Que é isso, Paulo?

- Que há de ser? É Felícia com as maluquices.

- Que agouro! Credo!

Ainda falou para o quarto: Até amanhã, mamãe.

- Vai com Deus.

- Adeus, Paulo. A que horas vou eu chegar a casa.

Seguiu ligeiramente pela corredor, com um rascante esfrolar de sedas, deixando um rasto de perfume. Paulo saiu à rua acompanhando-a ao coupé.

- Até amanhã.

- Até amanhã.

18

Dona Júlia não se pôde levantar na manhã seguinte.

Quando Paulo entrou no quarto para vê-la, achou-a a chorar.

- Que tem, mamãe?

- Nada. Deixa-me. Também não possa chorar?

- Mas isso faz-lhe mal. O médico recomendou a maior calma.

- Ora, o médico... O médico sabe lá o que eu tenho. Não hei de chorar. Ver minha filha assim... Eu mesma não sei que é que você pensa, rapaz. Ninguém era mais severo, agora só porque ela anda de carro, coberta de jóias, já você não se importa. Pois eu não. Preferia... - calou-se recalcando a frase que lhe subira do coração e ficou um momento de olhos perdidos, arfando.

- Que hei de eu fazer? Só se a senhora quer que eu lhe feche a porta. Se quer...

Ela não respondeu.

- Fiz o que fiz porque a senhora vivia chorando por ela. Eu devia ter ficado quieto. É assim: nunca o que faço agrada. Eu é que sou tolo.

- Paulo, pelo amor de Deus! deixa-me. Não me amofines mais. Se soubesses como tenho este pobre coração não vivias a torturar-me. Hás de sentir mais tarde, deixa estar. Velha assim mesmo e doente, como estou, sempre sirvo para alguma coisa. Deixe estar.

Felícia pôs-se a vociferar na cozinha, atirando panelas.

- Olha, vai lá ver aquela rapariga.

Paulo saiu a conter a negra. Quando ela deu com ele aprumou-se hostilmente, com os olhos muito brilhantes, parados. Ele receou repreendê-la. Chamou-a com mansidão procurando acalmá-la:

- Então, velha? que barulho é este?

A negra avançou e curvando-se, com o braço hirto, como a mostrar alguma coisa ao longe, rouquejou:

- Está ouvindo? Então não é assim? Vosmecê pensa que o mar não conta? vá lá na praia escutar. Eu estou aqui, estou ouvindo. Que é que ele fez? Mode quê? Uma voltou, outro não volta. Mode quê? Ela é melhor? não é. Eu também sou mãe. Quem manda está lá em cima.

Saiu precipitadamente ao quintal, o braço erguido para o céu luminoso.

- Ele há de vir também.

- Pois sim, mas é preciso que fiques quieta, que cuides do serviço como dantes. Deus não gosta de gente má.

- Má... Quem é que é má?

Resmungou uma obscenidade e foi encostar-se ao fogão, ainda apagado.

- Má. Eu sou mãe como sua mãe! - gritou com fúria frenética fitando nele os olhos lampejantes.

- Sim senhor. Mãe como sua mãe.

Paulo deixou-a e a negra ficou a bradar esmurrando as paredes. Dona Júlia chamou-o:

- Olha, meu filho, o melhor é despedires essa rapariga. Vê se arranjas alguém que fique comigo porque eu até tenho medo que ela me faça alguma coisa, no estado em que está.

- Mas como hei de sair? Quem ficará com a senhora?

- Vai e leva a chave. Eu fico só. Não te demores.

Ele hesitou:

- Para fazê-la sair só se eu chamar uma praça.

- Prendê-la? Isso não, coitada! Olha, manda-a cá. - Soergueu-se e chamou: Felícia!

A negra respondeu do fundo da cozinha:

- Nhora!

- Vem cá.

Ela apareceu à porta do quarto com as roupas em frangalhos, o colo seco descoberto, as magras pernas à mostra.

- Chega aqui.

A negra adiantou-se humilde, arrepanhando os andrajos.

- Eu estou doente, não me posso levantar. Se não queres tomar conta da serviço dize porque eu faço um sacrifício e vou assim mesmo para a cozinha.

Rapidamente a negra levou as mãos aos olhos e, atirando-se de joelhos junto à cama, rompeu a chorar.

- Que foi que eu fiz, sinhá? Que foi que eu fiz? Eu não estou quieta no meu serviço? Por que é que vão mexer comigo? Eu não faço mal a ninguém... Coitada de mim!

- Mas ninguém mexeu contigo. Tu é que andas a fazer criançadas, não tens pena de mim que sou tão tua amiga.

- Então eu não quero bem a vosmecê?

- Não parece.

- Eu já abandonei vosmecê?

- Não; mas agora não pareces a mesma Felícia.

- É, vosmecê fala assim... Quem ouvir há de pensar que eu sou exigente, que peço mundos e fundos. Que é que eu peço? Porque falo com meu filho? Então não sou mãe?

Levantou-se de salto, escancarou a porta do quarto, mostrou a cozinha:

- Ele vai para lá, fica comigo, eu converso com ele. Que é que tem? faz mal? Vosmecê não fica até tarde esperando nhonhô? Nhá Violante não esteve ontem aqui? Então eu não vejo? Eu estou calada, estou quieta, mas vejo tudo. Vosmecê é mãe, eu também sou. A dor que vosmecê sentiu eu também senti. O leite é da mesma cor: por ser preta não sinto menos, sinhá.

Ficou a encará-la, com uma expressão dolorosa no rosto escaveirada; e concluiu:

- Mãe é uma só. Eu vou fazer o meu serviço, mas não bulam comigo que eu não bulo com ninguém.

Deu alguns passos e retrocedeu:

- Vosmecê olhe e há de ver; eu vou para o meu serviço, daqui a pouco a cozinha está cheia. Não me deixam fazer nada. Vosmecê fique olhando.

E, arrepanhando as molambos, foi-se. Depois dum silêncio Dona Júlia murmurou:

- É tudo, meu Deus! Uma rapariga tão boa...! Eu é que sou a infeliz. Chego, às vezes, a pensar que espalho desgraças. É o meu caiporismo. Até parece coisa feita. Enfim, há de ser o que Deus quiser.

Vendo o filho encostado à cômoda, pensativo, disse-lhe:

- Vai, tens que fazer. Não te prendas por minha causa.

- E a senhora?

- Não te incomodes comigo.

Ele ainda hesitou. Ela insistiu:

- Vai.

- Então eu vou, porque tenho mesmo que fazer e volto cedo.

- Pois sim. Fecha a porta e leva a chave.

- E se vier alguém?

- Quem vem aqui?

- Quer alguma coisa lá de baixo?

- Não.

- Então até já.

Sentia necessidade de ar, de movimento. A casa, cada vez mais triste, sempre a ecoar esconjuros e lamentações da louca, tornava-se-lhe insuportável. A mãe, por outro lado, a suspirar, a chorar no quarto alumiado dia e noite pela lamparina devota. Vestiu-se e saiu, fechando a porta e levando a chave.

Ia à aventura, sem destino. Foi caminhando vagarosamente, preocupado com o estado da velha.

"Achava-a mal... e só, com a louca... Enfim, como contava voltar cedo... Onde poderia encontrar uma criada?" Seguia pensando, sem dar pelo caminho. De repente lembrou-se de Ritinha. Súbito calor aqueceu-lhe o sangue reavivando desejos. Se fosse vê-la? Talvez que ela lhe pudesse inculcar alguém, conhecia tantas raparigas. Era uma idéia. Estugou o passo e no Largo da Lapa tomou um tílburi, mandando tocar para a estalagem.

Ao chegar à casinha de Mamede ficou surpreendido vendo a porta e a janela fechadas e já se decidia a voltar, quando, da cerca da casa contígua, uma mulheraça, em mangas de camisa, com grandes peitos derramados sobre o ventre cheio, disse-lhe chuchando os dentes:

- Bata. Tem gente.

Ele agradeceu, atravessou o jardinete e bateu à porta. Falaram dentro, ele reconheceu a voz da mulata.

- Sou eu, Paulo.

- Responderam? perguntou a mulher.

- Sim, senhora. Obrigado.

A parta entreabriu-se e Ritinha, reconhecendo-o, não teve sequer um sorriso. Ele entrou e, na meia escuridão da sala, exclamou espantado:

- Que é isto? Tudo fechado. Por quê?

Ela deu d'ombros, amuada.

- Que é dele?

- Quem?

- Mamede.

- Sei lá!

Sentou-se aborrecida.

- Houve alguma coisa entre vocês?

- Sei lá!

- Brigas, ciumadas; aposto.

- Ciumadas. Eu é que vou procurar a minha vida. Estou farta de aturar grosserias e de passar vergonhas. Quem não pode com o tempo não inventa modas. Aquilo é lá homem?! Não se importa com a casa - se tem dinheiro é pro jogo, se não tem, mete-se aqui bebendo, resmungando desaforos e eu que me vire em comida. O senhorio não sai aí da porta e, volta e meia, são cobradores batendo, com atrevimento. E ele? Há três dias que não aparece. Estão dizendo que foi preso numa casa de jogo. Não sei.

- E você agora?

- Eu vou por aí. De fome é que não hei de morrer.

Depois dum silêncio Paulo aproximou a sua cadeira e, tomando a mão da mulata, voltou à proposta antiga.

- Bem podias estar livre de tudo isto. Não queres...

- O quê?

- Sair comigo.

Ela baixou a cabeça, calada.

- Não queres viver em cômodos. Pois vem morar comigo.

- Com o senhor? Que é isso?! E sua mãe?

- Que tem? Mamãe é uma criatura excelente, estou certa de que te hás de dar muito bem com ela. Só depende de ti.

- Mas então sua mãe vai recebendo assim uma pessoa que não conhece? que nunca viu?

- Que tem isso? Eu saí mesma para procurar alguém que a acompanhe. Ela está de cama, muito mal. Tu aqui trabalhas como uma moura, para quê? Vais lá para casa, eu tomo uma criada, só tens que dirigir o serviço.

- Mas... para viver com o senhor?

- Então?

A mulata ficou pensativa. Ele insistiu:

- Decide.

- Não sei. Isso assim de repente... Sei lá!

Ele acentuou:

- Olha, vamos fazer uma coisa. Eu vou agora para casa, digo a mamãe que tu, a companheira de Mamede, te ofereceste para fazer-lhe companhia. Ela aceita, estou certa, porque a rapariga que nos servia ficou maluca e temos de despedi-la; eu venho buscar-te ou tu vais, à noite, e, depois de lá estares, o mais arranja-se.

Ela ouvia, escabichando as unhas.

- Mas então eu vou como criada?

- Não, filha; vais como pessoa de amizade, fazer um favor. Amanhã mesmo eu tomo uma criada e ficas como dona da casa, porque mamãe está de cama e creio que, infelizmente, não se levanta mais.

- Está assim?

- Perdida!

- De quê!

- Coração.

Houve um silêncio. Paulo fitava-a, acariciando-lhe a mão.

- A questão é sair daqui.

- Por causa dos trastes?

- Os trastes são dele; mas a minha roupa, o que é meu. O senhorio, com certeza, não me deixa tirar. Mamede está devendo tanto!

- Isso é simples: vais ao senhorio, dizes que retiras apenas o que é teu, dás-lhe algum dinheiro, se ele exigir.

- Era bom que eu tivesse!...

- Tenho eu. Quanto queres?

- Sei lá!

- Chegam cem mil-réis?

- Acho que sim.

- Pois toma.

Deu-lhe o dinheiro escolhendo vagarosamente no maço, entre as notas grandes, duas de cinqüenta.

- E agora é tratar de arrumar as coisas e sair. Já devias ter feito isto. Mamede é um bom rapaz, mas não te serve. Levantou-se.

- Bem, vou para casa; deixei mamãe só. E olha que fico à tua espera. Vê lá. Não vás fazer alguma.

Ela respondeu, sem levantar os olhos:

- Já disse que vou.

- A que horas?

- À noitinha.

- Pois bem. Então até logo. E se precisas de mais alguma coisa...?

- Não.

Frente a frente encararam-se; ela sorriu e, num movimento repentino, atirou-lhe os braços ao pescoço, ofereceu-lhe a boca, cerrando as olhos lânguidos.

Entrando em casa, Paulo foi direito ao quarto da mãe, bateu de leve na vidraça da porta.

- Quem é?

- Eu, mamãe.

- Entra.

O ar morno, denso, cheirava a alfazema. A lamparina ardia tristemente diante das imagens. Ele sentou-se à beira da cama:

- Então? Como vai?

- Assim...

- Pus a anúncio. Felícia não veio cá?

- Andou aí pela sala mexendo, resmungando.

- E a senhora comeu alguma coisa?

- Não tenho fome.

- Mas precisa comer.

Depois duma pausa anunciou:

- A companheira de Mamede vem ficar aqui, com a senhora.

- Quem é?

- A rapariga que vive com ele.

- Não quero.

- Por quê?

- Não quero.

- Mas se a lembrança partiu dele! Encontrei-o na rua, disse-lhe como a senhora está, falei de Felícia e ele imediatamente ofereceu a sua companheira para vir ficar aqui uns dias. Vamos que eu não arranje uma criada, quem há de cuidar da senhora, tratar da casa? Eu não posso, não havemos de pedir aos vizinhos. Felícia está como a senhora vê. Aceitei o oferecimento e a moça ficou de vir à noitinha. E agora que hei de eu dizer?

- Que tipo é?

- É uma pardinha. Vive com ele como se fosse casada. A senhora há de gostar dela.

- E cômodo? Onde vai dormir essa moça? Tem o quarto de Violante, mas cama, o mais?

- Eu cedo-lhe o meu quarto, é por dias. Armo a rede no quarto de Violante e está pronto. O que eu não quero é que a senhora fique aqui assim, com uma doida que nem para lhe trazer um copo d'água serve. Tudo se há de arranjar. Hoje, por exemplo, a senhora não imagina como andei na cidade, com um ror de coisas a fazer. Deixei tudo e vim para casa, a correr, com medo.

- Medo de quê?

- De quê? de Felícia. Assim, estando aqui uma pessoa de confiança, não me incomodo.

- E conheces bem essa moça?

- Conheço.

- E séria?

- Então, mamãe!

- Sim, porque eu quero respeito aqui em casa. Lá fora, tudo quanto quiseres; aqui não.

Paulo não achou uma palavra para responder, ficou como atordoado, olhando a enferma que continuava em resmungo, defendendo a seu lar como se houvesse adivinhado a intenção do filho.

- Bem sabes como sou. Se é uma pessoa honesta, muito bem; mas troças aqui, isso não!

- Que troças, mamãe. Então eu havia de meter em casa uma vagabunda?

- Não sei... Conheço Mamede: bom rapaz, bom rapaz, mas lá fora. Vem a mulher, amanhã é ele que se mete aqui. Não quero. Prefiro morrer sozinha. Deus me acompanhará.

- Ele não vem.

- Pois sim, faze lá o que quiseres, contanto que haja respeito aqui.

E ele, procurando desviar a palestra do assunto escabroso, perguntou:

- E Felícia? posso despedi-la?

- Sim, mas não a maltrates, tem pena dela. Enquanto teve juízo foi muita boa para todos nós, agora, coitada...!

- Descanse, mamãe.

Foi à cozinha. A negra não estava, procurou-a no quarto, chamando-a. Saiu ao quintal, lá a encontrou acocorada, cavando a terra. Chamou-a. A negra voltou-se de ímpeto e fitou nele as olhos que ardiam.

- Felícia, nós vamos sair. Mamãe está mal, precisa mudar de ares. Vamos para longe, não podemos levar-te. Tens aqui o teu dinheiro. Arranja o que é teu e procura casa onde fiques. Quando voltarmos irei buscar-te.

A negra ouvia com um sorriso estampado no rosto. Levantou-se, sacudiu as mãos e foi caminhando devagar para a cozinha. À porta, porém, deteve-se e, voltando-se impetuosamente, como se fosse responder com fúria, olhou-o serena e, de novo, o sorriso abriu-se-lhe no rosto macilento e fulo. Entrou e, diante do fogão, repentinamente tomada pelo delírio, apanhou as pontas do vestido roto, ergueu-a e pôs-se a sapatear, a voltear, cantarolando:

Vou-me embora! Vou-me embora.
É mentira, não vou, não...

Dobrou-se a rir, derreando-se sobre o fogão, e ali ficou na rinchavelhada insana, sem dar pelo rapaz que a contemplava, parado à porta. Vendo que ela não se decidia, Paulo chamou-a, enérgica:

- Então, Felícia!

- Uai!

Outra gargalhada ralou, sinistra.

- Uai! Vancê vá inda, eu vou depois.

- Não, hás de sair agora.

- Agora não, respondeu a louca com toda a calma, meneando com a cabeça. Agora não.

Sentou-se a um canto, espichou as pernas magras e pôs-se a raspar o soalho, sempre com a cabeça em movimento negativo.

- Meu filho não falou. Quando meu filho falar. Tudo tem seu tempo. Pois então? Vosmecê quer, ele não quer. Eu fico esperando. O mar está aí. Vá, vá, nhonhô. Não bula com quem não faz mal. Que é que eu estou fazendo? Vancê olhe - e, apontou o ângulo do teto, negro de fuligem: Ali é que ele mora.

Paulo começava a irritar-se. Avançou alguns passos e, violentamente, agarrando a negra por um braço, puxou-a, rasgando-lhe a camisa e, como não encontrasse resistência, numa raiva que crescia, que a inércia da louca parecia acirrar, esmurrou-a, atirou-lhe pontapés, e a miserável rolava, enrodilhava-se, com os braços pela cabeça, chorando humildemente. Dona Júlia, ouvindo a rumor, chamou o filho. Ele saiu, deixando a negra por terra, descomposta, gemendo.

- Que é? perguntou a velha assustada.

Ele respondeu ofegante:

- É demais! Também não se pode ter paciência de santo.

- Deste na pobrezinha, Paulo?

- Ah, não... Está uma fera. Não se lhe pode falar: assanha-se como uma víbora. Não estou para aturá-la. Louca, pois que vá para o Hospício.

A negra chorava alto, lamentando-se. Paulo quis voltar à cozinha.

- Deixa-a, pediu Dona Júlia. Não lhe batas, coitada! Não tem consciência do que faz. Deixa-a.

Ele deu uma volta pela sala e, lembrando-se de que a mãe nada havia comido até aquela hora, tomou o chapéu e, chegando-se à porta do quarto, disse:

- Eu vou a um hotel mandar vir alguma coisa. Até já.

E saiu resmungando.

19

Paulo estava à janela quando uma carrocinha de mão parou à porta. O carroceiro adiantou-se e ele, antes que o homem falasse, disse: "É aqui mesmo." Era a bagagem de Ritinha: um baú de couro, uma pequena lata, dois caixotes e a gaiola do canário que esvoaçava, assustado. Justamente o carroceiro arrastava a baú pesado, tombando-o sobre a calçada, quando a mulata apareceu risonha. Paulo recebeu-a e, dizendo ao carroceiro que deixasse tudo na sala, levou-a para o sofá. Ela queixou-se de cansaço.

- Vieste a pé?

- Não, vim de bonde até o Largo da Lapa, mas de lá toquei-me numa batida até aqui e com este calor... E sua mãe?

- Está lá dentro. Nós precisamos conversar. Deixa o homem acabar o serviço. Temos uma combinaçãozinha. - E, voltando-se para o carroceiro, que deixara a gaiola a um canto: Pronto?

- Sim, senhor.

- Ajustaste? perguntou à Ritinha.

Ela disse-lhe o preço. Pagou, fechou a porta e tornou ao sofá sentando-se muito chegado à mulata que parecia examinar a sala, escura àquela hora da tarde.

- Ouve, eu falei à mamãe: disse-lhe que vinhas a mandado do Mamede. Tendo-lhe eu dito que ela estava sem uma pessoa de confiança em casa, ele fez questão de que viesses para tratá-la. Dormes no meu quarto, eu vou lá para dentro... Isto é só nas primeiras dias, já se vê; depois... fica por minha conta. - E beijou-a. - Agora vamos lá, quero apresentar-te á velha. Hás de gostar dela.

Ritinha estava receosa, e, no sofá, retorcendo o lenço, parecia meditar.

- Anda!

- Olhe lá! Veja bem o que vai fazer...!

- Não tenhas medo. Deixa de tolice. Mamãe está doente, não se levanta. Anda.

- Se ela me disser alguma coisa eu volto, vou-me embora. Isso tão certo...

- Ora... Vamos.

A mulata levantou-se e foram juntos pelo corredor escuro. Paulo acendeu o gás na sala de jantar e, chegando à porta da quarto, anunciou:

- Mamãe, está aqui a moça de que lhe falei. Ela pode entrar? A velha desculpou-se:

- Oh! meu filho, isto está num desarranjo... nem foi varrido. Pede desculpa.

- Ela sabe, mamãe.

- Não sou de cerimônia, - disse Ritinha já no quarto.

A luz da lamparina mal aclarava uma parte do aposento. A enferma sentou-se na cama e procurou ver a mulata que se adiantava, estendendo a mão. Houve um momento de travado silêncio - as duas mulheres pareciam examinar-se. Por fim Dona Júlia falou tranqüilizada, como se a fisionomia de Ritinha a houvesse serenado:

- É ainda muita mocinha.

- É o que parece. Então que é isso?

- Eu sei, minha filha?! Estou fazendo horas para seguir o meu destino. E queira Deus que não demore porque já estou cansada de sofrer.

- Qual! a senhora fica boa. Eu estou aqui para o que for preciso. Não valho muito, mas os meus préstimos ficam às suas ordens. Antes mesmo de Mamede me falar eu já tinha dito a seu filho que, se fosse preciso...

- Obrigada. Nem sei como a senhora vai se arranjar nesta barafunda. Isso lá por fora está que é uma vergonha. Eu imagino! A nossa criada, coitada! lá está na cozinha gemendo, gritando.

- Ainda!

- Ora!

- Se eu digo à mamãe que o melhor é pedir que a mandem tirar daqui...

- Tenho pena... - E tomando à Ritinha: A senhora compreende, foi uma criatura que sempre nos acompanhou com a maior dedicação, muita amiga de todos. Teve a infelicidade de ficar assim e eu, francamente, não tenho coração para tocá-la de casa.

- Aqui é que ela não pode ficar, mamãe. É impossível. Não há tanta gente boa no Hospício? Aquilo não é um presídio, é uma casa de caridade.

- Sim, mas a gente sempre tem pena. Enfim, tu é que sabes. Eu não digo nada.

Paulo convidou Ritinha para ver o quarto, ela devia querer ficar a gosto.

Levou-a à sala e, ligeiramente, atirando-lhe os braços ao pescoço, rosto contra rosto, perguntou:

- Então?

- Parece uma boa criatura.

E na sombra uniram as bocas demoradamente.

Instalando-se no quarto de Paulo, Ritinha pôs-se logo à vontade e, cheia de solicitude, muito carinhosa com a enferma, insistiu com ela para que tomasse alguma coisa: um pouco de chá, ao menos.

Dona Júlia cedeu ao carinho e a mulata entrou na despensa, acompanhada de Paulo, que fazia empenho em que ela tudo visse. Abria latas, pacotes, com uma grande vaidade de dono de casa a exibir a abundância. Foram à cozinha. A um canto, encolhida, Felícia resmungava como um animal medroso. Os seus olhos luziam na sombra, de quando em quando um suspiro subia-lhe do peito. Arrepanhava os molambos, fazia-se humilde, chegava-se à parede como se procurasse refúgio.

- Esta é que é a maluca? - perguntou Ritinha inclinando-se, com a vela muito chegada ao rosto da negra.

- É. Um diabo que só nos dá trabalho. É até capaz de morrer aqui. Não come, nem sei como vive. A noite é um horror.

- Coitada!

- Coitada!? Hás de ver logo mais: grita, sapateia, chora.

Ritinha pôs-se a acender o fogo juntando gravetos, Paulo ajudava e, passando por ela, sem importar-se com a louca que os olhava, beliscava-a, atirava-lhe beijos à nuca, emprazando-a para a noite alta, quando a velha dormisse.

- Olhe lá! não comece com imprudências. Eu não quero histórias comigo.

- Quê! pensas que eu hei de dormir sozinho tendo-te aqui em casa, minha, minha só?...

Num frenesi lúbrico agarrou-a, levantou-a nos braços e a sombra dos dois corpos enlaçados tremia nos muros negros da cozinha fuliginosa. Felícia foi-se arrastando, meteu-se debaixo da pia, sem sentir a umidade, ficou a olhar assombrada. Dona Júlia chamou:

- Paulo!

- Senhora!

- Dá-me um bocadinho d'água.

Ele foi pronto em servi-la. Depois de beber, a enferma perguntou:

- Que estás fazendo lá dentro?

- Fui mostrar a despensa, a cozinha.

Sentou-se e, meigo, perguntou:

- Então, que lhe parece?

A velha não respondeu; ele continuou:

- É uma excelente criatura e a senhora não imagina o que ela sofre do Mamede.

- Por quê?

- Ora! Não lhe dá vintém. Tudo quanto ganha é para o jogo; e ela, a bem dizer, quem sustenta a casa com o que faz lavando e engomando. A senhora há de gostar dela. Eu já lhe disse que vou tomar uma criada para o serviço pesado. Ela fica apenas para fazer-lhe companhia.

- E Violante? perguntou Dona Júlia.

- Que tem?

- Não tens tido notícias?

- Não. Talvez vá vê-la amanhã. Quer que ela venha cá?

- Sinto-me tão mal, esta falta de ar...

- Isso passa. É questão de dias. Foi uma felicidade acharmos esta moça, porque a senhora não imagina como ando agora cheio de trabalho. Se for feliz, como espero, em certos negócios em que me meti, talvez faça exame em março. Tudo depende de tranqüilidade.

Ritinha apareceu à porta perguntando onde estava o pão. Paulo precipitou-se, abriu o guarda-comida, solícito:

- Quer umas torradas, mamãe?

- Umas duas, não tenho fome.

A mulata tornou à cozinha. Pouco depois aparecia com a bandeja e, acendendo o gás no quarto, ficaram os dois juntos à enferma, vendo-a comer, animando-a. Distraíram-se em conversa. Ritinha a falar de uma moléstia que também a martirizara durante meses. Andara nas mãos de um bando de médicos e ficara boa com remédios caseiros.

- A gente não acredita, mas a verdade é que não é um caso nem dois, quantos!?

- Mas a minha moléstia não tem cura. Não imagina como estou inchada e esta aflição que me mata. As vezes, de noite, fico sem ar, levanto-me, abro as janelas. É uma agonia que só Deus sabe! Dizem que é o coração, não sei.

Palmas estrondaram na sala. Paulo saiu precipitadamente do quarto e, chegando ao corredor, viu a porta da rua escancarada e um vulto branco de pé no limiar: era a vizinha.

- A sua criada saiu correndo e deixou a porta aberta. Foi lá para baixo, atirando murros, desesperada.

- Há muito tempo?

- Não, senhor. Agora mesmo. Parece que ela não está muito boa da cabeça.

- Está perdida. Nós conservamo-la aqui por pena.

- Vai por aí à toa. São até capazes de prendê-la.

- Isso com certeza.

- Bom. Boa noite.

- Muito obrigado. Entrou, fechou a porta, exclamando: Melhor! Reaparecendo no quarto, deu logo a notícia de chofre: Felícia fugiu.

- Como? perguntou a enferma, emocionada.

- Sei lá. Foi a vizinha que bateu, porque a maluca deixou a porta escancarada.

- E agora, meu filho! - exclamou Dona Júlia de mãos postas.

- Agora o quê, mamãe?

- Que há de ser dela?

- Sei lá. Eu é que não me vou cansar por aí atrás de doidos. Foi melhor assim. Tinha de sair mesmo, se havia de ser com escândalo, à força, foi melhor assim. Acham-na, levam-na à polícia, mandam-na para o Hospício e está tudo acabado.

- Pobre coitada! - suspirou Dona Júlia e, voltando-se para Ritinha, murmurou: Filhos, vê a senhora? é o que eles fazem. Era uma criatura excelente, não imagina. Veio para aqui e, duma hora para outra, virou a cabeça. Deus tenha pena dela.

- Mas não se incomode. Que se há de fazer? Trate de descansar.

A velha revoltou-se contra a indiferença do filho.

- Ah! Paulo, tu não tens coração... Não sei a quem saíste assim.

- Hei de chorar?

- Não digo que chores, mas a gente tem pena: é uma infeliz.

Ele resmungou passando à sala e, sentando-se diante da janela, ficou a olhar a noite estrelada, ansioso pelo silêncio, pelo sono da enferma, para realizar o desejo tantas vezes sufocado no seu quarto quando, recolhendo ao leito, cansado da vida errante, excitado com o contato das mulheres que se roçavam lascivamente por ele, insone, punha-se a pensar em Ritinha, vivendo-a na imaginação.

20

No silêncio da casa, guiando-se por uma réstia de luz que vinha do quarto, cuja porta ficara entreaberta, Paulo, que se deitara na rede, armada no chamado quarto de Violante, levantou-se pé ante pé, contendo o hálito, as mãos estendidas, e atravessou a sala.

As suas articulações estalavam irritando-o - era o seu próprio corpo que o denunciava. Parava, apoiando-se às paredes, à escuta, e lá ia, vagaroso, cauteloso, excitado, como a farejar o almíscar lascivo da mulata. Seguiu pelo corredor. Na sala foi com o maior cuidado para evitar esbarros e, chegando à porta do quarto, empurrou-a de leve. Um estalo ríspido dos gonzos pareceu-lhe um estrondo; recuou, nervoso. A cama rangeu e Ritinha sussurrou no escuro:

- Que maluquice, meu Deus!

- Cala a boca!

Curvou-se, os braços estendidos, varrendo o vazio, a procurá-la; as mãos encontraram-se.

- E sua mãe?

- Está dormindo.

- Olhe lá.

Encolheu-se, chegando-se à parede. Ele meteu-se na cama. O mar rouquejava na praia. De espaço a espaço a casa estremecia, trepidava, à passagem de um elétrico.

Saiu cedo no dia seguinte. Sentiu-se como transfigurado - era outro, com outros gozos; homem, com uma mulher sua, inteiramente sua, vivendo sob as mesmas telhas.

Sentia necessidade de comunicar a sua ventura, de contá-la a todos, de ser invejado. As mesmas despesas, pelas quais se tornara responsável, como que lhe davam maior prestígio, engrandecendo-o aos seus próprios olhos. Mas a outra paixão chamava-o, atraía-o. Saciado um desejo, corria alucinadamente ao outro; mesmo porque o dinheiro começava a minguar. Era necessário refazer o maço, aumentá-lo, para que a mulata sentisse a sua superioridade sobre o amante que deixara.

Queria humilhar o outro, inutilizá-lo de vez, receoso de que ela pudesse vir a ter saudade do Mamede. Era necessário esmagá-lo, torná-lo esquecido, substituí-lo vantajosamente e ele havia de o fazer.

Já, então, conhecia os segredos da roleta, podia fazer jogo franco, dar um golpe de mestre que lhe assegurasse lucro de vulto e não miseriazinhas de contos de réis. Sabia de uma casa, na Rua Sete, onde se jogava forte durante o dia. Lá foi. Perdeu. Atirou-se ao dado: foi infeliz e, contendo-se, procurando justificativas para o caiporismo, descobriu um homem calvo, de casaco no fio, lenço ao pescoço, que seguia atentamente o seu jogo. Irritou-se. De ímpeto, deu a troco as fichas que lhe restavam e, resmungando, passou por diante do homem, carrancudo. Tomou o chapéu e saiu.

Na rua, sem destino, desesperado com o prejuízo, arrependido de haver entrado naquela "espelunca", seguiu direito ao Largo do Rócio, mas voltou à Rua do Teatro, dirigindo-se à do Ouvidor. Havia de encontrar amigos.

Entrou no Pascoal - todas as mesas estavam ocupadas; nenhum conhecido. Saiu, e depois de haver descido a rua, sempre a pensar no jogo que fizera, desconfiado da roleta, sem poder explicar a insistência do "pequeno", resolveu descansar um bocado para estar pronto, à noite, para a desforra. Mal entrou em casa, Ritinha, que demorara em abrir a porta, perguntou-lhe em tom receoso: "Se não vira o Mamede."

- Não. Por quê? Andou por aqui?

- Toda a manhã. Esteve muito tempo ali defronte, encostado ao cais, olhando para cá. Acho que me viu porque cheguei à janela para chamar um quitandeiro, quando ele vinha vindo. Tome cuidado. Mamede não é bom.

- Histórias...!

- Histórias!? O senhor pensa que ele é uma coisa e ele é outra. Eu é que posso falar. Basta que eu diga que vivi com ele dois anos, não foram dois dias.

Paulo sorriu; e ela ajuntou: que haviam aparecido duas criadas. Não ajustara por não saber o preço que convinha.

- É verdade! Nem me lembrei de prevenir-te. E... para onde foi ele?

- Não sei. Anda por aí rondando, com certeza. Mamede é mau; ouça o que lhe estou dizendo. Mamede tem maus bofes.

- Pois sim.

Fez-lhe uma festa no rosto e entrou para falar à mãe. Achou-a agitada, aflita, queixando-se de falta de ar, pedindo que abrissem largamente as portas do quarto; não podia respirar, sentia um peso enorme no peito.

- Quer que eu vá chamar o médico?

- Para que médico? Pede para me fazerem um pouco de chá.

Não lhe passou despercebido o mau humor de Dona Júlia, que evitava encará-lo, desviando o olhar. Teria ela desconfianças? Tê-lo-ia visto passar, à noite, sentido algum rumor através da parede que separava os dois quartos? Falou à Ritinha, comunicando o desejo da enferma e, para sondá-la, sem dar a perceber a sua suspeita, perguntou:

- Ela passou bem o dia?

- Não quis comer; está até agora com o café que tomou de manhã. Tem dormido muito; sempre que vou ao quarto encontro-a dormindo.

Paulo empalideceu, compreendendo que a velha descobrira a cena da noite e que começava a hostilizar a mulata. Resolveu defendê-la a pé firme, sustentá-la, custasse o que custasse. Não trocaram mais palavras toda a tarde. A noite, quando ele se foi despedir, ela mal o abençoou.

- A senhora está sentindo alguma coisa?

- Não.

- Eu tenho que fazer, mas se está incomodada, não saio.

- Não tenho nada.

- Então, até logo.

Ritinha não o acompanhou à porta, e ele, ao despedir-se, falou para que a mãe ouvisse:

- Pode dormir tranqüila, Dona Ritinha; eu levo o trinco. Boa noite.

21

Eram 2 horas da manhã quando Dona Júlia, que não dormira, ouviu ranger de leve a porta da rua. Esperou atenta, o ouvido alerta ouviu os surdos passos do filho ao longo do corredor, sentiu-os junto ao quarto; compreendeu que ele a espreitava. A lamparina dava uma luz escassa que apenas manchava as paredes, fazendo bailar sinistramente as grandes sombras das imagens e dos mais objetos pousados na cômoda. Os passos continuaram, vagarosos, cautelosos, com um rangido de solas, e cessaram. Ela não se movia, decidida a certificar-se. Uma hora imensa passou, muda, no silêncio da casa escura e quieta.

Não sem cuidado, os olhos no quarto da velha, que parecia dormir tranqüila, Paulo atravessou devagarinho a sala e foi-se pelo corredor. Dona Júlia sentiu-o passar, chegou mesmo a mover-se, revoltada contra o desrespeito, mas conteve-se. Talvez se houvesse iludido. Tentou erguer-se e, com grande esforço, trêmula, sentou-se na cama, tocando o soalho frio com os pés nus. Custava-lhe acreditar que o filho a houvesse enganado, abusando do seu estado para meter em casa uma mulher perdida. Amparou-se à cama e ficou de pé. Sentia-se fraca, arvoada, oscilando. Sentou-se de novo, sem ânimo, mas a indignação impelia-a; fez o primeiro passo, chegou à porta e, no escuro, encaminhou-se para o quarto em que dormia o filho. Foi d'encontro a uma cadeira: com o rumor deteve-se, assustada; pensou em voltar e quedou hesitante, o ouvido atento, receosa de que o filho aparecesse e a encontrasse de pé, espionando.

Paulo, efetivamente, ouvira o barulho do esbarro e logo pensara nela. Sentando-se na cama, ficara à escuta, e os dois, mãe e filho, imóveis, temiam-se - um, sem coragem de deixar o leito em que se metera, outra sem ânimo de prosseguir. Ritinha perguntou baixinho:

- Que é?

Ele murmurou:

- Pareceu-me ter ouvido barulho lá dentro.

- Quem sabe se sua mãe precisa de alguma coisa?

Ele não respondeu. A velha atreveu-se a continuar na treva, mais cautelosa. As pernas tremiam-lhe violentamente, mal a sustinham. Quando chegou à porta do quarto, firmou-se ao umbral, respirando cansada, com o coração a bater sôfrego.

Entrou: os braços estendidos encontraram os punhos bambos da rede: não estava ali ninguém. Ainda curvou-se, apalpou e, convencida, aprumou-se e ficou inerte, em grande desânimo, de olhos muito abertos na escuridão.

Era a amante; ele lá estava com ela. Vivia com ela, trouxera-a para casa, instalara-a sob as mesmas telhas que a agasalhavam. Voltou-se e retrocedeu no mesmo passo cauteloso, entrou no quarto e deitou-se, chorando aflitivamente.

Estava explicada a repentina saída de Felícia. Fora ele que a expulsara para ficar à vontade, sem o testemunho incômodo da pobre louca. Onde andaria a infeliz? Pobrezinha!

Paulo não ousou sair da cama, certo de encontrar a mãe, porque era ela que andava lá dentro, tinha certeza. Ritinha, vendo-o indeciso, sentou-se também e ficaram os dois muito juntos, à escuta, como à espera de que se repetisse o rumor que os havia alarmado. Ela deitou-se, puxou-o.

- Não é nada. Deixa lá. Que pode ser? Se fosse ela, chamava.

- Não sei.

- Se quer, eu vou ver.

- Não; não vale a pena.

E deitou-se. Mas ficou imóvel, preocupado. Às vezes parecia-lhe ouvir passos no corredor, na sala; sentia empurrarem a porta do quarto; levantava vivamente a cabeça, atento.

- Que medo tolo!

- Não é medo.

- Então que é?

- Sei lá.

Falaram de Mamede: ela, pedindo que se acautelasse contra o mulato, que estava preparando alguma; ele, sempre indiferente, não ligando importância. Que havia ele de fazer? Se o ameaçasse, dava queixa à polícia e estava tudo acabado.

- Sim, mas ninguém se defende de uma traição.

- Qual traição! Mamede o que quer é dinheiro para jogar. Pensas que ele tem saudade de ti? Pois sim. Quem quer bem não faz o que ele fazia. Histórias!

- Eu não digo que ele me queira bem, nem que se vingue por amizade, mas por capricho é capaz de tudo, eu sei.

- Pois que venha!

- Eu aviso para que o senhor se previna. Quem anda avisado vale por dois. Ele não é bom, isso não é. Eu sei por que falo.

- Pois sim, mas deixemos Mamede; - e, lânguido, passou-lhe o braço por baixo da cabeça, atraindo-a.

Pela madrugada, voltando ao seu quarto, Paulo percebeu que a mãe estava acordada - sentia-a mexer-se na cama, voltar-se, arquejar na aflição. Esteve a embalar-se de leve na rede, preocupado, não com o que ela lhe pudesse dizer, mas com o que faria Ritinha se fosse maltratada.

A passividade da enferma, a resignação de que dava provas constantes tranqüilizaram-no.

"Ora! que há de fazer? Se duvidar digo-lhe tudo. Afinal quem paga a casa sou eu... Não posso ter liberdade? Não posso ter um gozo? Falta de respeito? Ainda faço muito em guardar reserva. Não sou uma criança." E adormeceu resolvido a manter a mulata, a lutar por ela, a defendê-la da mãe cuja animada aversão sentia. Despertou em sobressalto, com Ritinha que sacudia a rede, chamando-o.

- Sua mãe não está boa, venha vê-la.

- Que tem?

- Não sei.

Saltou da rede em ceroulas, descalço, correu ao quarto. Dona Júlia, imóvel, de olhos cerrados, a boca entreaberta, seca, deixando ver os dentes, ralava com o cirro. De instante a instante, com esforço, sorvia o ar que lhe passava pela garganta com um gargarejo rascante, difícil, estrangulado. As faces cavavam-se-lhe; as pomas do rosto, muito salientes, luziam; as têmporas afundavam; os olhos perdiam-se enterrados. Paulo ficou atordoado, e, com os olhos cheios d'água, arrependido, com um remorso a remordê-lo, inclinou-se sobre a moribunda, chamando-a:

- Mamãe! Mamãe!

Respondia-lhe, de espaço a espaço, a respiração estertorosa da agonia. Mamãe! Apalpou-lhe os pés, esfriavam; as mãos inertes, com os dedos encolhidos, repousavam no colo imenso que parecia crescer na angustia.

- Ah! Ritinha... Mas, como foi? Por que não me chamaste?

- Eu não sabia. Foi só agora que vi, entrando no quarto com o café. Pensei que estava dormindo, mas quando ouvi o cirro compreendi tudo e fui acordar o senhor. Não há uma vela?

Paulo chorava em silêncio e a moribunda, entre os dois, continuava a estertorar abrindo muito a boca para a respiração.

Ritinha acendeu uma vela e colocou-a à mesa de cabeceira, ao lado de um pequeno crucifixo. Paulo arrancava os cabelos, retorcia as mãos.

- Nem uma pessoa para avisar Violante, para chamar um médico. Eu não tenho coragem de sair deixando-a assim. Como há de ser, meu Deus! Se tu pudesses, Ritinha... É perto, na Praia de Botafogo. Minha pobre mãe, coitada! Morrer assim, tão só. Vai, minha velha, faze-me este favor.

Ela ficou indecisa, receando um encontro com Mamede; por fim resolveu-se e murmurou:

- Pois sim.

- Tem paciência.

A mulata dirigiu-se para a sala, foi direito à janela, entreabriu-a e espiou. Ao longo do cais, ao sol, um homem passeava olhando o mar. Era o mulato.

Fechando vagarosamente a janela, Ritinha tomou ao quarto e, indiferente ao transe lúgubre, inclinou-se ao ouvido de Paulo, que se sentara à cabeceira da cama e lentamente enxotava as moscas que teimavam em pousar no rosto da moribunda e sussurrou:

- Ele está ali defronte.

O rapaz encarou-a pálido, transido de medo, e, em voz surda, num sopro, perguntou:

- Onde?

- Venha ver. Eu não dizia?

Ele lançou um triste olhar à agonizante. O ruído estertoroso continuava rouco, e, de quando em quando, com o enrijamento túmido do pescoço, a cabeça derreava-se no travesseiro.

- Ela pode morrer.

- É um momento.

Ele passou ao seu quarto, vestiu-se ligeiramente e seguiu a mulata.

Segredavam, pisavam devagarinho, em pontas de pés. Ele entreabriu cautelosamente a janela e deu logo com o mulato junto ao cais, ao sol, guardando a casa.

- E agora?

- Eu não lhe dizia? Olhe, o melhor é eu ir-me embora.

Ele voltou-se de repelão:

- Por quê? isso não! Então és obrigada a viver com um homem de quem não gosta?

- Não vou viver com ele. Vou por aí.

- E se eu o chamasse?

- Para quê?

Sem uma idéia, acabrunhado pela covardia, Paulo sentou-se no sofá, abatido, e ficou raspando o soalho com os pés nus. De repente. fitando a mulata, lembrou:

- Há um meio, Ritinha. - Olharam-se em silêncio e ele expôs a sua idéia: Eu chamo-o, digo-lhe que tu vieste para cá a meu pedido porque eu não tinha quem ficasse com mamãe...

- Pois sim!... - interrompeu incrédula a mulata esticando o beiço. - Não vê que ele é tolo!

- Então não sei, resmungou. Que faça o que quiser. Tu é que não devias ter medo, afinal não és escrava, não tens obrigação de viver com ele. Se não fosse o estado de mamãe eu sei o que faria, assim não posso. Não hei de deixar a pobre coitada sozinha para dar trela a Mamede.

E tornou para junto da velha. Ritinha ficou na sala.

22

Habituada a viver entre valentes, homens atrevidos que não recuavam diante de perigo algum, achava desprezível o seu novo amante.

Percebera-lhe a fraqueza, o medo, e aborreceu-a. Lá fora estava o homem destemido, o capoeira apontado por todos como um herói. As suas façanhas eram célebres, os próprios companheiros respeitavam-no e, pensando nele, sentiu-se atraída. Deu d'ombros e, levantando-se, abriu resolutamente a janela e debruçou-se. Mamede avistou-a; sorriu, um sorriso mau, de ameaça. Ela fez-lhe sinal, chamando-o.

O mulato atravessou a rua, carrancudo, gingando e parou diante da janela:

- Que é que você quer?

Ela abriu a porta.

- Entra. Vem ver. Você pensa que estou de pagode, não é? Vem ver.

O mulato entrou.

- Lá não te disseram nada?

- A mim? Que haviam de dizer? resmungou.

- Pois eu pedi para te dizerem.

Sentou-se. Mamede, de pé, encostado à mesa, balançava a perna.

- Eu estava mesmo pensando em sair para procurar um cômodo, porque não podia mais com a amolação de seu Lisboa, que não me deixava a porta, quando seu Paulo me apareceu chorando, pedindo para eu vir para cá, fazer companhia à velha que estava nas últimas. Eu disse que estava devendo a casa, ele emprestou-me dinheiro, ofereceu-me um cômodo para guardar os meus trastes. Você não aparecia, eu vim. E estou aqui.

- Fazendo quarto? - troçou o mulato com ironia.

- Você não acredita; pois vem ver...

- Quero lá saber de histórias... Não pense você que eu vim aqui pelo faro. Mulheres, minha filha, isso é coisa que não falta. O que me arrancou do meu sossego foi o desaforo.

- Mas se eu estou dizendo a verdade, Mamede. Vem comigo.

Tomou-o pela manga do casaco, o mulato repeliu-a com um safanão.

- Sai! Você não vai com cachorro não sei por quê. Fica, eu vou-me embora, Eu só queria olhar essa cara. O outro não perde por esperar, só se eu não sou filho de minha mãe. Não pense você que eu tenho rabicho, o que eu tenho é vergonha, não engulo afronta. Vocês são todas umas vagabundas.

- Se você começa com má-criação eu vou-me embora.

- Pois vai! Quem te pega? Vai e diz ao menino que tome tento. Porcaria!

- Mas vem ver, rapaz. Deixa de estar dizendo desaforo à toa. Vem ver. Se for mentira minha...

Encaminhou-se para o corredor, ele resolveu-se a segui-la. Quando Paulo o viu aparecer no quarto ficou lívido e chegou-se tanto à cama, tão estabanadamente que o corpo da moribunda estremeceu. O mulato ficou espantado, a olhar, e ouvindo o estertor, meneou com a cabeça, compadecido. Paulo rompeu a chorar, nervoso, entre a angústia piedosa e o medo covarde.

- Tem paciência, nhozinho; consolou Mamede penalizado.

O rapaz desoprimiu-se e transbordou:

- Não imaginas como a coitada tem sofrido, Mamede. E eu só... Nem sei que seria de mim se não fosse Ritinha, tão boa. Ela já te disse, não? Pois foi, meu velho. Felícia fugiu, deixou-me só. Não tenho uma pessoa para ir avisar Violante.

Depois dum silêncio, ele falou lentamente, cedendo:

- Eu vou, nhozinho. Onde é? - Ele deu-lhe o endereço, foi buscar dinheiro. Fazia maior a aflição, deixando as lágrimas correrem livres, com soluços altos, muito humilhado de dor. Defendia-se entrincheirado no desastre, opunha à fúria do mulato o corpo da agonizante e vencia, triunfava à custa da sofrimento. - Então vai e volta, vem ficar conosco. Não tenho cabeça para nada. Não demores... Nem sei se Violante ainda a encontrará com vida. Olha, passa primeiro pelo médico, aqui na Rua da Lapa; dize-lhe que ela está assim.

O mulato acenava com a cabeça. Saiu, Ritinha acompanhou-o e na sala, tomando-lhe a frente, sentindo-se justificada, exclamou:

- Então? Acreditas agora?

- Dá cá um fósforo.

Ela foi ao quarto, trouxe uma caixa de fósforos.

- É aí que você está dormindo? - perguntou ele chegando à porta e olhando o leito ainda desmanchado.

- Dormindo... É aqui que eu descanso; ninguém dorme nesta casa.

Acendeu vagarosamente o cigarro e tomando a chapéu:

- Bom, vou ver a menina.

A mulata prendeu-o, com um grande desejo dele, contorcendo-se de volúpia, mole, a entregar-se. Ele afastou-a:

- Deixa disso, criatura. Você está maluca?

Abriu a porta e saiu. Com as pernas bambas, nervosa, irritada, vibrando, ela deixou-se cair em uma cadeira e, quando sentiu os passos de Paulo, nem forças teve para levantar a cabeça derreada no espaldar. O rapaz fez um sinal interrogativo.

- Foi-se embora, - disse ela molemente, com os olhos amortecidos.

- E então?

Ela sorriu. Os seus lábios úmidos reluziam, o peito arfava em ansioso desejo.

Estendeu languidamente os braços, deixando-se escorregar na cadeira. Paulo olhava-a sem compreender, atônito, d'olhos muito abertos. Ela sussurrou um apelo, retorcendo-se como um vime ao fogo, a remorder os lábios, cerrando os olhos lacrimosos. Súbito, como o pássaro atraído pela serpe, ele caiu-lhe nos braços.

23

Quando Paulo tornou ao quarto a moribunda arquejava em agonia maior, respirando a espaços, ficava longo tempo imóvel, como se já houvesse acabado; de repente, porém, abria-se-lhe a boca imensa e o ar entrava de raspão como se fosse rompendo passagem. Ritinha chegou-se ao leito e ficou contemplando a velha, cuja fisionomia cavava-se com a angústia.

Apalpou-a, sentiu-a fria até o ventre - era a morte que começava a subir. Súbito abriram-se-lhe dilatadamente as olhos vítreos, assombrados e fitos. Os dois recuaram, um estremecimento sacudiu-a toda. Os braços enrijaram-se, a cabeça soergueu-se de leve, um gargarejo rolou no fundo da garganta, as pálpebras tremeram.

Ritinha pôs-lhe a vela na mão. Paulo ajoelhou-se soluçando. Fecharam-se-lhe os olhos e ficou imóvel. Ele ainda esperou ouvir o estertor angustioso, mas a morte passara - aquele fora o último olhar à vida, cheio de agonia, cheio de saudade, talvez de queixas, antes de apagar-se para todo o sempre na eterna sombra da morte.

- Então, Ritinha?

- Acabou. Deus a tenha!

- Coitada de minha mãe!

A mulata apalpou o peito procurando sentir o coração - todo o movimento cessara.

- Paciência, disse: Está no céu.

Ele saiu do quarto soluçando, atirou-se à rede e ali ficou, sem coragem, numa prostração invencível, recordando, com remorso, as cenas das últimas noites: "Coitada! Quem sabe se não foi o desgosto que a acabou mais depressa? Fiz mal! Devia ter esperado um pouco. Ela era tão boa, coitada!" Sentiu, então, um grande vazio, achou-se só, sem um afeto sincero, nas ruínas da casa. Foi, dia novo, ao quarto e, sentando-se na cama, a olhar a morta, pensou que não fizera o bastante para salvá-la. Esquecera-a, deixara-a acabar sem os necessários cuidados. Pobre velha! Tomou-lhe a mão, beijou-a repetidas vezes e baixinho, pedia perdão, desculpava-se: "Minha pobre mãe! Minha mãezinha... tão boa...!" Quando Mamede chegou perguntando se o médico já viera, Ritinha deu-lhe a notícia.

- Coitada da velha! A menina disse que só pode vir mais tarde. Estava lá de troça com uns moços. E nhozinho?

A mulata fê-lo entrar. Paulo recebeu-o soluçando, abraçaram-se

- Tenha coragem, nhozinho. Vosmecê é homem. Descansou, coitada. Coragem! Eu fico aqui para ajudar no que for preciso. Sou seu amigo, nhozinho. Tenha paciência. Conforme-se com a vontade de Deus.

A vizinha, sabendo que a velha havia morrido, apareceu, muito enternecida, lamuriando. A mulata levou-a ao quarto. Ficaram as duas diante do cadáver, em contemplação silenciosa. Paulo chegava à porta, olhava e retrocedia chorando.

A vizinha ofereceu-se para ajudar a vestir o corpo. Foi um devassar de móveis: armários abertos, canastras revolvidas à procura de roupa; camisas, saias, um vestido decente. E os linhos puídos, remendados, tresandando a ervas, empilhavam-se aos pés da cama sobre retalhos, restos de rendas, pedaços de fitas. Paulo lembrou um velho vestido de merinó preto; acharam-no, e os dois homens passaram à sala da frente enquanto as mulheres, abrindo de par em par as portas do quarto compunham o cadáver.

Quando reapareceram, Mamede propôs trazerem o corpo para a sala. Arranjaram a mesa colocando-lhe em cima duas tábuas e foram buscar o cadáver. Mamede saiu a comprar velas, acendeu-as e reuniram-se na sala. Paulo, sucumbido, suspirava de quando em quando. Ninguém ousava falar; foi a vizinha quem quebrou o silêncio para elogiar a finada:

- Nem parecia que morava gente aqui. A não ser o falatório da preta no quintal, era um silêncio completo. Boa criatura.

E referiu-se à família que anteriormente habitara a casa - um casal e dois filhos. Eram brigas desde que amanhecia e as crianças insuportáveis, muito atrevidas, sempre esmolambadas, sujas, trepadas no muro, atirando pedras, dizendo obscenidades. Deixaram a casa como um chiqueiro.

Mamede interveio. Falou dos bons tempos da velha, da sua beleza, da sua vida feliz em companhia do marido e, pouco a pouco, estabelecendo-se intimidade, conversaram; o próprio Paulo chegou-se ao grupo e falaram de tudo - da carestia da vida, dos crimes que os jornais referiam, das moléstias que devastavam. A vizinha, sem reservas, disse à Ritinha, não tão baixo que não pudesse ser ouvida dos homens:

- Eu, por mim, prefiro ficar sem um pedaço de pão para o dia seguinte, mas gente que eu não conheça não me dorme em casa. Ninguém sabe se o homem que se recebe é uma pessoa de bem ou um assassino. Deus me livre! Eu não! Os malfeitores não trazem sinal. Eu vejo o que se passa por aí, nos pontos mais freqüentados. Mesmo de dia não há segurança, quanto mais de noite e numa rua deserta como esta. Entram, fazem o que muito bem querem e saem muito frescos.

Ritinha concordou.

Ao cair da tarde Paulo chamou Mamede, deu-lhe dinheiro, pediu que fosse a um hotel encomendar alguma coisa. O mulato saiu. Pouco a pouco a tristeza foi-se desvanecendo. Ritinha convidou a mulher a entrar e, já íntimas, conversavam sobre Violante. A mulher vira-a na noite da visita.

- É a filha da velha?

- É.

- Mas, pelos modos, é moça da vida?

- Saiu de casa. E foi isso que matou mais depressa a pobre de Deus.

- Bonita?

- Dizem que sim. Eu ainda não a vi.

- Com quem vive?

- Não sei.

- Com certeza vem hoje cá. Já sabe?

- Sabe. Mamede foi lá.

- Onde mora?

- Em Botafogo.

- Também já morei lá.

- A senhora?

- Sim. Morei lá com um doutor. Isto é: tive casa, ele vivia com a família, ia só à noite. Morreu e eu fui obrigada a cair nesta vida de receber todo o mundo. É o fim de todas.

- Infelizmente! - suspirou Ritinha.

24

Ao jantar Paulo insistiu com a mulher para que ficasse. Sentaram-se à mesa. O corpo ficou solitário na sala, entre as quatro velas, com Cristo à cabeceira.

Mamede fez pilhéria a propósito de um guisado de miolos: "Não, o que tinha na cabeça bastava, não queria mais..." e afastou, com repugnância, para a borda do prato, a porção que lhe haviam servido. E foi pretexto para que todos falassem de comidas, expondo, cada qual, os seus gostos.

Paulo apenas defendeu a cozinha francesa, mais saborosa e mais delicada. E reprovou a mania do empanturramento que caracteriza o brasileiro: um nunca acabar de pratos, tudo a esfriar. Perde-se até a vontade de comer.

- História, nhozinho. A gente vê logo tudo, come do que gosta. Eu não tenho paciência para estar esperando e quando vem a comida é um nadinha, no fundo do prato; é preciso a gente ter boa vista para enxergar um bife. Não há como a nossa mesa, deixe falar. Isso de francês pode ser muito bonito, mas ninguém come com os olhos. A moda é para a roupa, agora para o que diz com a barriga prefiro os costumes da nossa terra.

- Pois eu não.

- Ah! vosmecê é moço elegante.

A vizinha pensava como Mamede. "Nada de luxos. Comer é comer. Isso de pasteizinhos, saladinhas, não era com ela."

Escurecia. Mamede acendeu o gás. Só, então, lembraram-se da finada. Paulo propôs que o café fosse tomado na sala para que o corpo não ficasse sozinho. Ritinha, a pretexto de medo, pediu à vizinha que a acompanhasse.

- Não sou medrosa, mas hoje não que tenho - estou só vendo coisas, só ouvindo estalos. Parece que vou encontrar a maluca lá perto do fogão resmungando.

- Pois eu fico com a senhora.

- É favor. - E foram as duas para a cozinha.

Violante chegou às nove horas da noite, de carro. Ao entrar, vendo o cadáver hirto, de negro, as mãos enclavinhadas ao peito entre as quatro velas, ficou atarantada, a olhar para um e para outro. De repente, com um grito, arremessou-se para o corpo e derrubada sobre o peito, já rígido, da defunta, os braços molemente atirados, gania estorcegando-se, aos surdos arquejos trágicos, chamando a mãe em altas vozes. Um homem apareceu à porta, pedindo licença, muito cortês. Todo de flanela clara, botinas brancas, gravata frouxa com as pontas soltas, esvoaçando: deteve-se cerimonioso.

Já as duas mulheres, com muita meiguice, procuravam arredar Violante, cujos gritos longos, percucientes, vibravam. Levaram-na em braços para o quarto do irmão, deitaram-na, afrouxaram-lhe as roupas. Ela debatia-se, esperneava, escabujava rolando, a rilhar os dentes com um ofego d'agonia.

O homem, perplexo, torcia nervosamente os bigodes; sentindo, porém, a porta abrir-se com o vento logo a fechou, receoso de que o vissem da rua e, mais calmo, dirigindo-se a Paulo que o rondava, suspirando e limpando lágrimas, perguntou com interesse:

- Como foi?

O rapaz, com a voz sacolejada, descreveu a morte, toda a agonia da infeliz, lamentando a grande perda, a sua solidão no mundo. De repente, porém, a um grito mais agudo da irmã, notando que o homem afligia-se, franqueou-lhe o quarto:

- Entre, sem cerimônia. Minha pobre mãe!... - e precedeu-o, afastou-se escancarando a porta.

O homem agradeceu e, chegando-se ao leito, inclinou-se sobre Violante, chamando-a. As duas mulheres arredaram-se e Mamede, muito solícito, impondo-se, perguntou - "Se queriam alguma coisa da botica. Ia num pulo." O homem tranqüilizou-o:

- Isto passa, e sentou-se à beira da cama, afagando Violante, enxugando-lhe o rosto.

Houve um momento de calma, ela pareceu haver adormecido. De repente, porém, rompeu a chorar e todos desabafaram: "Agora sim. Era disso que ela precisava." E, discretamente, retiraram-se, deixando-a só com o irmão e o amante.

Quando ela recobrou os sentidos, quis ver a mãe, o homem opôs-se:

- Tem tempo. Estás muito nervosa. Descansa.

Ela, então, indagou como fora; e ao irmão:

- Por que não me mandaste dizer que ela estava tão mal? Coitada de mamãe! A que horas foi? E o enterro?

O amante consolou-a:

- Não te preocupes, há de arranjar-se tudo à tua vontade.

Paulo esmoía desculpas, muito humilde.

Só muito tarde, providencialmente, Mamede aparecera. Não tinha uma pessoa para mandar - estavam os dois sós, acompanhando-a - ele e aquela moça; a vizinha chegara depois. Demais, fora tudo tão rápido. Ainda na véspera ela conversara até tarde, muito calma; até pedira café. Uma coisa inexplicável!... e passeava arrepelando-se. Vendo, porém, que o homem sentava-se à beira da cama, oferecendo o ombro para que Violante repousasse a cabeça, retirou-se. Chegando-se, então, ao cadáver, descobriu-lhe o rosto, inclinou-se com o cotovelo fincado na tábua, a fronte nas mãos, e ficou numa atitude desolada, imóvel, como pesando para uma alegoria fúnebre.

Quando Violante reapareceu todos se puseram de pé, olhando-a. Ela caminhou vagarosamente e, diante da mesa, com as lágrimas nos olhos, ficou esquecida, em contemplativa mudez. Paulo fitou-a e disse surdamente:

- Estamos sem mãe, Violante.

Mas o homem passou por ele, tocou-lhe de leve no braço.

- Dê-me o atestado, eu encarrego-me de tudo. O senhor, no estado em que está... Basta que vá à pretoria, é perto. - E, referindo-se à Violante: É melhor distraí-la. Vamos levá-la lá para dentro.

Ele concordou:

- Como queira; - e foi oferecer-lhe o braço.

Ritinha lembrou o café, era necessário para passarem a noite.

As dez horas o homem retirou-se. Violante acompanhou-o à porta, segredou muito tempo sobre o enterro, coroas, um vestido para mudar. E ele, afagando-a, desculpou-se:

- Bem sabes que não posso ficar contigo...

- Já fazes muito, meu velho. Vai, e não te esqueças. O vestido preto, sabes?

- Sei. Até amanhã. Cedo estou aqui. E descansa.

- Até amanhã.

- Até amanhã. - E, ao entrar no carro: Linda noite, hem?

- É verdade.

O homem fizera sensação. Quando, depois do café, de novo reuniram-se para a vigília, Violante tomou-se o alvo de todas as atenções.

Sentada no sofá, muito quieta, mal respondendo às palavras do irmão, que referia pormenores tristes, de quando em quando suspirava. As duas mulheres, muito juntas, cochichavam.

Mamede passeava ao longo da sala, parando de instante a instante junto à mesa para espevitar uma das velas ou arranjar uma dobra do vestido da finada. A rua caíra em silêncio, o próprio mar parecia dormir.

Na pequena sala, nublada de fumo, tresandando a cera, o calor sufocava. Mamede ousou propor abrir uma janela.

- Não é melhor?

Paulo consultou a irmã.

- Que achas?

Ela encolheu os ombros:

- Se quiserem...

Logo o mulato escancarou as janelas. Uma lufada de ar entrou curvando as compridas chamas das velas e enfiou pelo corredor levando papéis esparsos.

Dentro uma porta bateu com estrondo.

25

Noite admirável. Nas águas mansas da baía o luar alastrava em esteira trêmula. Vultos negros de navios destacavam-se na sombra, com as lanternas altas, vizinhas das estrelas. Na fortaleza luziam focos opalescentes; longe estendia-se a iluminação do litoral fronteiro.

Um barco, todo negro, as velas abertas, deslizava. De repente entrou na zona iluminada e resplandeceu. Raro em raro um bonde passava com rumor; apitos trilavam e o murmúrio da onda na praia era suave como um respirar tranqüilo.

As velas crepitavam e, como o silêncio se fosse tomando incômodo, o mulato, mais ousado, rompeu-o:

- E é assim. A gente vai indo. Quem diria!... Parece que foi ontem que vosmecês nasceram. Eu ainda estou vendo Nhá Violante de vestido curto, puxando estica com nhozinho por causa de brinquedos. Nem vosmecês se lembram. Também eram tão pequeninos. E ela, coitada! contendo um, contendo outro, para não brigarem. Parece que foi ontem.

Violante ouvia com a cabeça inclinada ao ombro. Paulo falou lentamente:

- Tu nem te lembravas do Mamede, hem, Violante?

Ela fitou os olhos no mulato e murmurou:

- Lembrava-me.

- Qual! Estou velho.

- Nem por isso.

- Nem por isso? É porque vosmecê está me vendo de noite. - E, passando a mão na poupa da gaforinha: Cabelo branco aqui é mato. Vosmecê sim, é que está uma mocetona de pancas! Eu hoje, quando dei com vosmecê, palavra! até duvidei...

- Querias encontrar-me ainda de vestido curto, brincando com bonecas?

- Uai! Nhazinha, a gente fica com as pessoas no coração. Eu, quando falava em vosmecê, só via a menina que conheci no tempo do velho. De repente sai diante de mim um pedaço de moça, quase da minha altura. Fiquei tonto, palavra.

- E que faz você, Mamede?

- Eu Nhazinha? por aqui, cachimbando tristezas. Nem todo o mundo é feliz como vosmecê.

- Feliz, hem? Achas que sou feliz...

- Uai? Que mais então?

- Cada um sabe de si e Deus de todos.

- Isso é que é verdade! - sentenciou a vizinha.

E a conversa generalizou-se. Pouco a pouco a morta foi-se tornando esquecida. Entretidos com a palestra, só de quando em quando um ou outro lançava os olhos para o seu lado a ver se havia necessidade de cortar um morrão às velas ou de arranjar o lenço que o vento, por vezes, levantava.

Um carro parou à porta e a criada de Violante desceu com um embrulho - era o vestido que ela pedira ao amante.

- A senhora precisa de mim?

- Não, podes ir. Vai e vê lá aquilo...

E levava a criada, como que a expulsava para que não tivesse tempo de ver a pobreza de onde ela saíra, a casa dos seus e, como a rapariga levantasse piedosamente o lenço que encobria o rosto da finada, ela pareceu envergonhar-se da própria morta e despachou-a mais apressada: Vai!

- Deus lhe dê o reino do céu.

- Amém, - sussurraram as duas mulheres.

Já na rua a criada ainda perguntou:

- E é só?

- Só.

- Boa noite!

E o carro partiu com estrépito na rua calada e deserta.

Violante não resistiu à fadiga e adormeceu recostada ao sofá. Mamede, a pretexto de arranjar cigarros, saiu. Paulo rondava o cadáver, mas como a mulata fosse ao interior da casa, seguiu-a disfarçadamente deixando a vizinha de guarda ao corpo. Quando Ritinha o sentiu voltou-se.

- Que é que o senhor vem buscar atrás de mim?

- Você fica comigo ou não? - interpelou sem preâmbulos.

- Sei lá! Mas agora é que o senhor quer tratar disso? Vá para a sala. Temos muito tempo.

- Não, eu quero que tudo fique decidido já. Mamede está aí, ele há de querer continuar contigo e eu não estou disposto. Escolhe: ou ele ou eu.

- Já disse que temos muito tempo.

- Não, não!

A mulata quis passar, ele tomou4he a frente:

- Hás de dizer...

- Oh! meu Deus! que homem! Pois o senhor nem respeita o corpo de sua mãe!?

- Que tem uma coisa com outra? Tu o que queres é fugir do assunto, mas eu não sou tolo.

Ameigando-se sussurrou:

- Somos agora nós dois, és a dona da casa, senhora de tudo. Eu quero resolver a minha vida. - se ficas comigo, continuo aqui, se não vendo tudo isto e tomo um quarto.

- Pois deixe a casa como está.

- Ficas comigo?

- Fico.

- Então sim. E Mamede? Como há de ser?

- Como há de ser...?! Eu digo que não quero mais saber de estalagem, que estou muito bem. Isso fica por minha conta. Mas vá lá para a sala - sua irmã pode acordar e essa mulher do lado tem uma língua muito comprida.

Verdadeiramente Ritinha hesitava entre os dois homens - um atraía-a pela vida aventurosa, de ousadia e troça: sentia-o forte e lembrava-se, com saudade, dos dias felizes que passara com ele quando, com um pouco de dinheiro, entrava a alegria em casa. Tinha orgulho em ser dele, um valente de fama, chefe de malta temido. O outro era um fraco, mas dispunha de recursos, podia garantir-lhe a tranqüilidade e adorava-a. Precisava cuidar de si... Depois, se tivesse um capricho, que custava? Não fora amante de Paulo enquanto vivera com o Mamede?

O mulato não a estimava. Se a estimasse não teria procedido como procedera. Um brigador como ele que, por qualquer coisa, puxava a navalha, depois de tanto rondar a casa... nem nada. Prosa! E a mulata sentia-se melindrada com a submissão do amante - preferia, talvez, que ele a houvesse maltratado, ferido, ameaçado com armas àquela quieta, resignada condescendência com que se portara. Assim, que se arranjasse...

Quando tornou à sala Violante, que despertara, estava à janela olhando o mar, tremulamente de luzes. Paulo contemplava o corpo e a vizinha, acaçapada na cadeira, a cabeça descaída, a boca aberta, dormia com um silvo nasal.

À hora do enterro, quando fecharam o caixão, Violante, que se vestira de preto, um rico vestido de gorgorão, rebrilhante de vidrilhos, teve uma crise de lágrimas beijando desesperadamente a face lívida, as mãos engelhadas da finada.

A vizinha arranjava as flores, a mulata ainda compunha o vestido ruço acomodando-o. Mamede apanhava as duas coroas, uma pobre, de flores de pano, lembrança de Paulo; outra, que viera com o caixão, de biscuit, com largas fitas roxas onde, em letras de ouro, a filha mandara colar a sua "saudade eterna", quando o homem da véspera, todo de preto, saltou de um coupé e entrou com liberdade, indo direito a Violante.

Tanto que ela o sentiu, logo calou os gemidos e, erguendo a linda face, perguntou tristemente:

- Veio o carro?

- Está aí. - E baixinho, com meiguice: Então? Está a teu gosto?

Ela lançou um olhar ao caixão que Mamede ia fechando:

- Muito bom. Não sei como te hei de agradecer tanta bondade. - E olharam-se com ternura.

- Eu queria acompanhar, mas... É a minha hora de trabalho, depois... - e sorriu, um triste sorriso em que havia a leve sombra de uma contrariedade.

- Oh! já fizeste tanto...

Todos esperavam por eles e olhavam imóveis, calados. Paulo, por fim, adiantou-se:

- Vamos, Violante? Ela pôs-se de pé, choramigando, com o lenço nos olhos. Mamede saíra à porta e dois homens entraram para ajudar a levar o caixão. Paulo, atarantado, voltou e estendendo a mão à irmã: Esperas aqui?

- Não, estou com muita dor de cabeça.

- Então, adeus.

Abraçaram-se longamente.

- E aparece, Paulo. Vai lá.

O homem corroborou:

- Quando quiser. Tem uma casa às ordens. Sem cerimônia.

Ele agradeceu comovido e, como passasse perto de Ritinha, que retirava os castiçais da mesa, sussurrou:

- Até logo. Olhou em torno, apressado, procurando alguém: Que é da senhora?

- Já foi... - disse Ritinha.

- Então até à volta.

E, chamando Mamede, meteu-se com ele no único carro que havia para acompanhar o enterro. E o féretro partiu.

Violante lançou um derradeiro olhar à casa, e pondo o chapéu ao acaso, falou à Ritinha:

- Fica aí um vestido meu. Mando-o buscar logo mais.

E saiu apressada, como a fugir daquela miséria onde a morte deixara o seu fortum funéreo, feito dum misto de aroma de flores fanadas e do cheiro aborrecido das velas de cera. O homem despediu-se dela à porta do coupé que partiu. A mulata ficou a remorder-se de fúria, abriu a janela e explodiu:

- Grosseirona! Quem sabe se eu sou criada! Uma vagabunda e tão cheia de empáfia. Comigo não!

A vizinha apareceu à janela e a mulata desabafou:

- A senhora já viu? A tal sujeitinha. .. Nem para agradecer o que fiz pela mãe... como se eu tivesse obrigação.

- Já foi?

- Já, com o amigo.

- Ah! minha senhora, essa gente... Enquanto está por cima é assim: presunção até o diabo dizer basta! Mas também dura pouco. Eu é que nunca fui orgulhosa.

Calou-se, como recolhida às recordações do seu tempo de fastígio. De repente, tomando ao acaso:

- E a senhora pensa que ela sentiu alguma coisa? tudo fingimento.

- Isso sei eu... Pois não vi?!

- A pobre da velha é que se foi, coitada!

- Ora, antes assim... Está com Deus.

Depois de um silêncio a vizinha, lançando os olhos ao céu azul, ao mar luminoso, disse extasiada:

- E foi com um dia lindo!

- Muito bonito!

Calaram-se, d'olhos alongados, contemplando o mar azul palhetado de sol. Foi a mulata que interrompeu o êxtase:

- Bom, até logo. Vou varrer e defumar a casa para acabar com este cheiro de morte.

- É sim, confirmou a outra. Até logo.

E despediram-se risonhas, com adeusinhos íntimos.

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